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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.73 Belo Horizonte June 2017

 

Teoria e Clínica psicanalítica

 

Das impressões mnêmicas freudianas às letras de Lacan: Realisso

 

From the freudian mnemonic impressions to the lacanian letters

 

 

Thiago Silva Martins

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Trata-se neste trabalho dos elementos psíquicos diferenciais que sinalizam as primeiras modulações energéticas, intensidades e descargas, constitutivas do isso freudiano. Para tanto, serão utilizados os conceitos freudianos de impressões mnêmicas, Affekt e pulsão, e do conceito lacaniano de letra na estruturação do inconsciente.

Palavras-chave: Impressão mnêmica, Letra, Pulsão, Isso, Real, Inconsciente.


ABSTRACT

This works deals with the different psychic elements that signal the first energetic modulations, intensities and discharges which constitute the Freudian “this”. Therefore the following concepts will be used: Freudian mnemonic impressions, Affekt and drive, and the Lacanian concept of letter in the structuring of the unconscious.

Keywords: Mnemonic impression, Letter, Drive, Id, Real, Unconscious.


 

Freud ([1895] 1996, p. 351) diz: “Uma teoria psicológica digna de consideração precisa fornecer uma explicação para a memória”. Para tanto, Freud precisou propor os termos elementares do psiquismo, ou seja, a matéria-prima do aparelho de memória. Assim, no Projeto, Freud parte da energia física, tanto somática (origem endógena), que nomeia de Qn, quanto da proveniente do mundo externo, nomeada por ele de Q, ambas incidindo, de formas distintas, no sistema nervoso.

Freud postula, então, a existência de duas classes de neurônios: os neurônios φ (fi), que não sofrem alterações com as passagens de Qn, e são permeáveis, destinados à percepção; e os neurônios ψ (psi), que por sua vez sofrem alterações em função de reterem Qn, e, por isso, são os portadores da memória.

A respeito dos neurônios ψ Freud diz:

Os dessa última classe podem, depois de cada excitação, ficar num estado diferente do anterior, e fornecendo assim uma possibilidade de representar a memória (FREUD, [1895] 1996, p. 352, grifo nosso).

Sob essa perspectiva, as excitações que se dão no sistema nervoso, oriundas de fontes endógenas e exógenas, ao serem retidas nos neurônios ψ, seriam responsáveis pelas primeiras impressões de memória.

Por meio dessa teoria, ao fim do século XIX, Freud tentava estabelecer a interface entre os sistemas biológico e psíquico. Isto é, como alterações nervosas temporárias, provocadas por estímulos fisico-químicos internos e externos, imprimiriam memórias primitivas permanentes de dor e de satisfação.

Freud, tateando as impressões elementares do aparelho psíquico diz a respeito dos elementos dos quais depende o que ele denomina facilitação:1

[...] a memória de uma experiência (isto é, sua força eficaz contínua) depende de um fator que se pode chamar de magnitude da impressão e da frequência com que a mesma impressão se repete. Traduzindo em teoria: a facilitação depende da Qn que passa pelo neurônio no processo excitativo e do número de vezes em que esse processo se repete. Daí se vê, portanto, que Qn é o fator operativo e que a quantidade mais a facilitação que resultam de Qn são ao mesmo tempo algo capaz de substituir Qn (FREUD, [1895] 1996, p. 353).

Portanto, as facilitações não seriam os elementos irredutíveis do psiquismo. Esses, seriam as impressões mnêmicas relativas aos fatores energéticos (fisico-químicos) endógenos e exógenos, sugerindo que uma facilitação se daria pelo agrupamento de algumas impressões mnêmicas.

Nada melhor que uma metáfora – Freud sabia bem disso – para dar sentido a algo enigmático. Portanto, intuindo entender melhor as impressões mnêmicas no aparelho de memória freudiano, pensou-se no processo de tatuar como metáfora alusiva. A tatuagem moderna é realizada por meio de uma máquina repleta de agulhas e movida à energia elétrica. No início do processo de tatuar, períodos de energia elétrica aplicados sobre a pele por meio das agulhas embebidas em tinta, imediatamente se transformarão em excitações dolorosas, deixando grafados, atrás de si, traços distintos de tinta no corpo. Neste momento do processo ainda não se pode identificar a forma de uma figura, mas apenas rabiscos doloridos. Alguns traços são reforçados pelo tatuador ao reaplicar certa quantidade de energia da máquina sobre eles, deixando-os mais intensos, com mais tinta. Vale ressaltar que o processo de tatuagem envolve excitação, dor, alívio e cicatrizes.

Permanecendo no trilhamento da construção metafórica, vamos imaginar, utilizando uma “loucura sábia”2, que essa máquina de tatuar se encontre tanto dentro quanto fora do corpo do vivente. Imaginemos no interior desse corpo a presença fantástica do tatuador (aquele que tatua a dor) com sua máquina de agulhas, o qual seria, homologamente, no psiquismo, a energia Qn incidindo de forma direta nos neurônios psi e deixando atrás de si impressões mnêmicas – traços de tinta no corpo ou, se preferirmos, sinais.

A respeito da incidência direta de Qn em psi, Freud nos presenteia com um facão afiado, capaz de facilitar a abertura de nossa trilha:

Se é assim, porém, psi está exposto, sem proteção, às Qs provenientes dessa direção, e nesse fato se assenta a mola mestra do mecanismo psíquico (FREUD, [1895] 1996, p. 368).

Verifica-se aqui que a Qn pode ser o traço teórico de um dos quatro elementos da pulsão – facilitado por Freud anos mais tarde em Os instintos e suas vicissitudes –, o drang. Segundo Freud ([1915] 1996), por drang compreende-se o “fator motor” da pulsão, sua força.

O outro tatuador, exterior ao corpo do vivente, teria como homólogo o que Freud denominou no Projeto de nebenmensch (“ajuda alheia”), com sua máquina repleta de agulhas – a voz, o seio, o toque, o olhar, o odor, o leite, a falta, entre outras – prontas a marcar, via neurônios fi – e não mais de forma direta como o tauador interno, fantástico – o corpo psíquico do vivente, alterando permanentemente os neurônios psi do “aparelho neurônico”.

A respeito do complexo do Nebenmensch Freud nos fornece um objeto suntuoso, uma bússola, para continuarmos o desbravar da trilha, ao dizer:

Em consequência, os complexos perceptuais3 se dividem em uma parte constante e incompreendida – a coisa – e outra variável, compreensível – os atributos ou movimentos da coisa (FREUD, [1895] 1996, p. 439).

Nesta passagem do Projeto pode-se escandir o que parece ser também um traço teórico – isto é, as qualidades e os deslizamentos da coisa – de mais um elemento da pulsão, o objeckt:

É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação (FREUD, [1915] 1996, p. 128).

Para que seja oportuno à satisfação pulsional, o objeckt deve trazer consigo atributos da coisa. Dito de outro modo, o objeckt pode ser um canto, uma jura de amor, um xingamento, um sussurro, tanto faz, desde que seu timbre, sua altura e sua amplitude remeta à voz (coisa) da qual se goza.

A Outra parte do complexo Nebenmensch – constante e incompreendida, das Ding –, é o elemento concebido por Freud no Projeto como exterior ao psiquismo, portanto, não pertencente ao espaço da representação, “mas que nem por isso deixa de fazer presença embora ausente” (GARCIA-ROZA, 2004a, p. 163).

A este respeito Lacan nos ensina em seu seminário A ética da psicanálise, que é em torno da coisa, tida em todo caso como o “primeiro exterior”, que se orienta todo o encaminhamento do sujeito. Segundo Lacan, Das Ding diz respeito ao Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar, mas que “[...] reencontramo-lo no máximo como saudade” (LACAN, [1959] 1997, p. 69).

Retomando-se a metáfora, a sensação das agulhas penetrando a pele pela primeira vez nunca mais será sentida como tal; ficarão apenas os traços de tinta que a sinalizam para o sujeito, embora ocultos na imagem da tatuagem pronta.

A partir disso, depara-se, então, com os elementos que aparentam ser os mais primitivos do aparato psíquico – a Qn e das Ding –, responsáveis por constituir a pulsão. Vale lembrar que ambos os termos foram caracterizados por Freud no Projeto sob a especificidade de constância. Vejamos como essas constantes energéticas se periodicizam tatuando sinais no psiquismo.

Então, vamos condensar as duas obras de Freud, O Projeto e Os instintos e suas vicissitudes, na tentativa de ilustrar os elementos irredutíveis do aparato psíquico; em outras palavras, as impressões mnêmicas dos elementos da pulsão. Para tanto, adotamos a linguagem utilizada por Freud no Projeto (a física), porém de forma alegórica em vez de categórica, apropriando-se de gráficos de ondas senoidais para representar diferentes frequências e períodos de energia, estes essenciais às impressões psíquicas mais primitivas, as dos elementos da pulsão – drang, objekt, quelle, ziel.

O Gráfico 1 ilustra, através da linha contínua, o caos pulsional, momento indiferenciado da pulsão, o puro drang, ou, se preferirmos, a Qn do Projeto sem nenhuma periodicização da energia.4 Pode-se dizer que esse continuum seria a pura excitação, denominada por Freud de Reiz (impulso), uma “[...] impressão que permanece como pura intensidade não passível de integrar à cadeia significante” (PIMENTA, 2007, p. 60). Essa inscrição é representada aqui pela letra T:

T

Gráfico 1

Fonte: Elaboração do autor.

O Gráfico 2 demonstra, por meio de uma onda seinodal, a modulação de um quantum de energia impresso no aparelho de memória, proveniente do “encontro” da Qn, de origem interna (soma), com o Nebenmensch, o “primeiro exterior”, o que sinalizará outro elemento da pulsão: o objekt, que representaremos pela letra R. Esse “contato” entre a Qn e o Nebenmensch seria responsável por modular a constante Qn em períodos distintos de Drang, correlatos aos registros dos atributos da coisa.

R

Gráfico 2

Fonte: Elaboração do autor.

O Gráfico 3 ilustra, por meio de um outro período de energia na forma de onda, um quantum de excitação relativo ao encontro de uma parte do corpo do infans, sob efeito do Drang, com o Nebenmensch, o que imprimirá o outro elemento da pulsão, localizando-a, denominado por Freud de Quelle: “Por fonte [Quelle] de um instinto entendemos o processo somático que ocorre num órgão ou parte do corpo, e cujo estímulo é representado na vida mental por um instinto” (FREUD, [1915] 1996, p. 128), que representaremos pela letra I.

I

Gráfico 3

Fonte: Elaboração do autor.

O Gráfico 4 figura, através de mais uma onda distinta das demais, a descarga energética promovida pela satisfação obtida “[...] eliminando-se o estado de estimulação” (FREUD, [1915] 1996, p. 128), que sinalizará no psiquismo outro elemento da pulsão: o Ziel – a finalidade da pulsão –, que segundo Freud é sempre a satisfação, e que representaremos aqui pela letra E.

E

Gráfico 4

Fonte: Elaboração do autor.

O Gráfico 5 demonstra a impressão psíquica de um quantum proveniente da separação entre o Nebenmensch e o infans, que sinalizará a “falta de objeto”, ou, nos apropriando artificialmente da linguística, o silêncio ou, ainda, aludindo à matemática, o conjunto vazio, ou, mais ainda, a “parte constante e incompreendida da coisa”. Não resta dúvida sobre a importância deste termo, “a falta do objeto”, visto que Lacan destinou todo um seminário entre os anos de 1956 e 1957 tratando-o como noção central na relação de objeto:

Jamais, em nossa experiência concreta da teoria analítica, podemos prescindir da falta de objeto como noção central. Não é um negativo, mas a própria mola da relação do sujeito com o mundo (LACAN, [1956] 1995, p. 35).

Assim, a “falta de objeto” põe o sujeito em movimento, procurando reencontrar, nas suas relações com o outro, o objeto faltoso.

Vale observar que, entre 1959 e 1960, Lacan continua a tratar da questão concernente à “falta de objeto”, desta vez, abordando o complexo do Nebenmensch em sua vertente ‘fora-do-significado’, o das Ding: “elemento que é, originalmente, isolado pelo sujeito em sua experiência do Nebenmensch, como sendo, por sua natureza, estranho” (LACAN, [1959] 1997, p. 68). Esse elemento ‘fora-do-significado’ é estranho ao sujeito no campo simbólico e sem imagem que o delimite no registro imaginário, embora familiar na lógica pulsional.

Não há como deixar de mencionar que Lacan, mais tarde, trabalhará a “falta de objeto” e das Ding como substratos de seu conceito de objeto a – objeto causa de desejo e objeto condensador de gozo. Sinalizaremos aqui a “falta de objeto” com a letra B.

B

Gráfico 5

Fonte: Elaboração do autor.

Em suma, no ponto de encontro mítico entre a Qn do infans e o Nebenmensch se dão o Drang, Objekt, Quelle e o Ziel da pulsão. E na separação se dá a “falta de objeto”, o objeto para sempre perdido – das Ding:

É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado. Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando (LACAN, [1959] 1997, p. 69).

Diante disso, parece plausível que as constantes Qn e das Ding¬, exteriores ao psiquismo, são os elementos estruturantes do isso freudiano, da sede das pulsões. Ilustrando a teoria, como se um impulso constante de mirar rostos os mais variados visasse sempre o gozo promovido outrora pelo olhar da coisa (por exemplo, da mãe), desde então permanentemente perdido e procurado.

As letras T, R, I, E e B, eleitas acima para indicar períodos distintos de energia, sinalizam os elementos da pulsão, ainda disjuntos, no psiquismo. A respeito da pulsão Lacan ([1964] 2008) ensina que seus quatro termos só podem aparecer, de início, disjuntos, sem relação entre si. Pode-se dizer que esses sinais ou estas essas letras marcam apenas diferenças de intensidades. Seriam, portanto, períodos de excitação distintos sulcados no extrato Wahrnehhmungszeichen (Wz),5 isto é, impressões rudimentares constitutivas do aparelho de memória.

Essas impressões corresponderiam às primeiras indicações das percepções no extrato Wz: “[...] Wz é o primeiro registro das percepções; é incapaz de assomar à consciência” (FREUD, [1896] 1996, p. 282).

Pensemos, então, a partir dessas letras sinalizadoras dos elementos da pulsão, numa das experiências do recém-nascido. A letra T sinalizaria a impressão, no psiquismo do bebê, da excitação interna causada pela dor caótica advinda de sua fome. A letra R seria o sinal referente à excitação proveniente do mamilo da mãe alocado subitamente em sua boca. A letra I indicaria a excitação do sugar o leite pela boca em contato com seio materno. Já o sinal E corresponderia ao indicador mnêmico referente à descarga da excitação em função da saciação da fome. E, por último, a letra B seria a impressão, no primeiro extrato psíquico desse bebê, da retirada do mamilo de sua boca, ou seja, a falta do objeto.

Portanto, por meio de tal experiência vivida pelo bebê, sinaliza-se, no extrato Wz, os primeiros relata de percepções, que nada mais são do que sinais diferenciais imediatos correspondentes às excitações incidentes no psiquismo. Vale mencionar que nesse estágio de estruturação do aparelho de memória ainda não há o que Freud nomeia de representantes pulsionais (Triebreprasentanz) inscritos no psiquismo – até porque os elementos da pulsão ainda estão disjuntos, ou seja, não se agruparam, significando que a pulsão não está “montada” –, mas tão somente impressões psíquicas de intensidades e descargas, sinais diferenciais concomitantes às excitações somáticas (Triebreiz).

Intuindo esclarecer melhor este momento inaugural do aparelho de memória freudiano, quando ainda não existem representantes pulsionais inscritos no psiquismo, faz-se necessário retomar o texto Os instintos e suas vicissitudes no qual Freud aponta dois representantes psíquicos da pulsão: a Vorstellung (representante ideativo) e o Affekt (afeto).

A respeito do Affekt diz Freud, em algumas passagens do texto, “[...] é um estímulo aplicado à mente”, “[...] esses estímulos são os sinais de um mundo interno, a prova de necessidades instintuais”, e ainda, “[...] estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente” (FREUD, [1915] 1996, p. 124-125, 127).

Assim, Freud denota o aspecto quantitativo do Affekt e sua íntima relação com o soma, diferenciando-o do aspecto qualitativo do afeto, que por sua vez se daria no sistema ω,6 nas diversas formas de sentimentos: tristeza ou alegria, ódio ou amor, paixão, ansiedade.

Ao considerar o Affekt como pura intensidade, a emoção sentida seria a angústia: “[...] a angústia, dentre todos os sinais, é aquele que não engana” (LACAN, [1963] 2005, p. 178). A angústia como correlata do Affekt parece fazer fronteira entre o somático e o psíquico, porque dela se fala com o corpo e só se sabe seu nome, nada mais.

O Affekt, segundo Garcia-Roza, é a expressão no psiquismo de um quantum de excitação pulsional (Triebreiz):

[...] é o afeto que exprime de forma mais direta o compromisso da pulsão com o corporal [...] o afeto não é considerado como significante mas como sinal, modo de expressão da pulsão bruta não capturada e submetida à cadeia significante” (GARCIA-ROZA, 2004b, p. 267).

As diferenças de intensidade, impressas no psiquismo como elementos da pulsão, até então desconectados, indicados aqui pelas letras T, R, I, E e B, são quantum de Affekt, e não representantes ideativos.

Sob essa perspectiva é factível supor que tais impressões psíquicas seriam o suporte ou a substância material do aparato psíquico, portanto unidades distintivas irredutíveis do aparelho de memória freudiano, como as letras no sistema linguístico, ou seja, é como se nesse momento já fosse possível grafar algum fonema.

Realizando um paralelo alegórico entre a linguística e a psicanálise, o fonema seria um período de excitação somática (reiz), enquanto a letra que o sinaliza seria um quantum de Affekt grafado no psiquismo. Seria possível, então, que o conceito de Affekt da teoria freudiana fosse o protótipo da noção de “letra” proposta no ensino lacaniano?

Apoiado inicialmente no estruturalismo, Lacan teria utilizado a linguística de Saussure, subvertendo-a ao inconsciente, para metaforizar a teoria freudiana, intuindo promover sentido aos conceitos psicanalíticos àqueles que frequentavam seus seminários?

A respeito da metáfora diz Lacan ([1957] 1998, p. 510):

Uma palavra por outra, eis a fórmula da metáfora, e, caso seja você um poeta, produzirá, para fazer com ela um jogo, um jato contínuo ou um tecido resplandecente de metáforas.

Não teria Lacan, através de um jogo metafórico, criado um grande poema, o seu ensino, ao substituir a linguagem utilizada por Freud, pela linguagem estruturalista – a linguística?

No Seminário 18 Lacan ([1971] 2009) se defende da formulação reducionista dos linguistas de que o pivô de seu ensino consistia no uso metafórico da linguística, dizendo:

[...] é curioso que os linguistas não vejam que todo uso da linguagem, seja ele qual for desloca-se na metáfora, que só existe linguagem metafórica [...] Toda designação é metafórica, não pode fazer-se se não por intermédio de outra coisa (LACAN, [1971] 2009, p. 43).

Destarte, pode-se pensar que Lacan estava inclinado a fazer uso da linguística para dar o sentido que julgava ser a visada da obra freudiana. Assim, a “letra” não seria a substituição, a centelha metafórica de Lacan, do “Affekt” forjado por Freud, para significar os primeiros sinais no psiquismo? Talvez uma tentativa de Lacan de livrar a psicanálise de críticas que a vinculassem a um biologicismo psíquico,7 que por sua vez a distanciaria de sua originalidade advinda do conceito fundamental de pulsão.

A ‘letra’ lacaniana não poderia ser uma maneira de afastar um vinculo vulgar e pernicioso, promovido pela negligência de alguns, entre corpo pulsional e corpo biológico, dando a verdadeira dimensão do inconsciente freudiano como um corpo atravessado pela linguagem? Penso que a letra representa, na poesia de Lacan, o suporte da ‘linguagem’ pulsional.

A respeito da letra Lacan ([1957] 1998) nos adverte em seu texto A instância da letra no inconsciente:

Mas essa letra, como se há de tomá-la aqui? Muito simplesmente, ao pé da letra. Designamos por letra este suporte material que o discurso concreto toma emprestado da linguagem (LACAN, [1957] 1998, p. 498).

Segundo Saussure (2006) o sistema de escrita dito fonético, é tanto silábico quanto alfabético, baseado nos elementos irredutíveis da palavra, as letras. As letras são as representações gráficas dos fonemas – os elementos irredutíveis da escrituração –, as unidades distintivas que participam da forma (palavra), mas não têm diretamente um sentido, ressalta Barthes (2006) em seu livro Elementos de semiologia.

O Dicionário Houaiss da língua portuguesa define letra assim: “cada um dos sinais gráficos que representam os fonemas na língua escrita”. Como a letra é um sinal, pode-se pensar que Lacan substitui metaforicamente o “Affekt” pela “letra” para elucidar os elementos irredutíveis do psiquismo.

Outro indício que favorece essa proposição é a célebre frase de Lacan: “O inconsciente é estruturado como uma linguagem” – utilizada diversas vezes ao longo de seu ensino –, indicando a necessidade da inscrição “material” de elementos diferenciais, letras, fundamentais na possibilidade de emergência dos significantes-mestres (S1) na estruturação do inconsciente.

As letras lacanianas seriam os primeiros sinais psíquicos, as “memórias” primitivas, pulsionais, responsáveis pela estruturação inicial do isso. Parece realmente um resplandecente tecido metafórico urdido por Lacan.

É interessante observar ainda que no Seminário 20 – que, vale lembrar, Lacan inicia ensinando sobre o gozo – fala a respeito das letras ao retomar seu dito “o inconsciente estruturado como linguagem”. No entanto, desta vez, de uma forma matemática, utilizando a teoria dos conjuntos:

Vocês veem que, ao conservar ainda esse como, me apego à ordem do que coloco quando digo que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Eu digo como para não dizer, sempre retorno a isto, que o inconsciente é estruturado por uma linguagem. O inconsciente é estruturado como os ajuntamentos de que se tratam na teoria dos conjuntos como sendo letras (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 53).

Ainda Lacan, a respeito dessas letras, diz:

[...] as letras constituem os ajuntamentos, as letras são, e não designam, esses ajuntamentos, elas são tomadas como funcionando como esses ajuntamentos mesmos (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 53).

Então, ao ser agrupadas, as letras constituem um conjunto – formam Um significante, dito de outro modo, uma pulsão parcial –, P={T,R,I,E,B}.

Lacan, nesse mesmo seminário, diz mais, ainda, sobre a letra:

Uma vez que para nós se trata de tomar a linguagem como aquilo que funciona em suplência, por ausência da única parte do real que não pode vir a se formar em ser, isto é, a relação sexual – qual é o suporte que podemos encontrar ao não lermos senão letras? (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 54).

Diante desse dito de Lacan, parece ficar evidente que as letras são os primeiros sinais naquilo que se conceitua como substância gozante:

[...] a substância do corpo, com a condição que ela se defina apenas como aquilo de que se goza. Propriedade do corpo vivo, sem dúvida, mas nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isto, que um corpo, isso se goza (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 29).

Aproximando mais uma vez a letra lacaniana enquanto metáfora do Affekt freudiano, pensamos que a substância gozante é composta de letras, assim como o Affekt compõe o corpo pulsional.

Nasio é contundente ao abordar o tema do gozo corporal que permeia o real da relação sexual – a qual Lacan diz ser possível vislumbrar apenas através de sinais –, dizendo: “Numa palavra, o gozo é, no inconsciente e na teoria, um lugar vazio de significantes” (NASIO, 1993, p. 29).

Aqui se encontra mais um indício que corrobora a ideia central proposta neste trabalho, pois, se o gozo que tange o real da relação sexual é ausente de significante, pode-se pensar que esse seria o correlato das letras lacanianas.

Após toda esta elucubração, retomando e alinhavando-se conceitos da obra de Freud e do ensino de Lacan, pode-se dizer, como num instante de concluir, que o isso – caracterizado por Freud como “a sede das pulsões” se constitui, em seu rudimento, pela emergência dos termos da pulsão:

Descrevemo-lo como estando aberto, em seu extremo a influências somáticas e como contendo dentro de si necessidades instintuais que nele encontram expressão psíquica (FREUD, [1933] 1996, p. 78).

Esses termos da pulsão ao se associarem, através da lei de simultaneidade proposta por Freud – que rege o extrato psíquico mais primitivo do isso –, formam as pulsões parciais (oral, escópica, evocativa, etc.), que compõem o corpo pulsional do infans.

Quanto ao real de Lacan – interpretado aqui como metáfora do isso freudiano –, sua estruturação rudimentar se dá através do surgimento das letras de gozo. Essas letras, envolvidas pela alíngua constituirão os significantes Um, representantes da substância gozante.

Portanto, parece plausível supor que esse extrato topológico do aparelho de memória, o realisso,8 é o lugar onde a lógica vigente é pulsional, isto é, de tensões e descargas, de gozo, ou, se assim podemos dizer, uma lógica de intensidades: “Catexias instintuais que procuram a descarga – isto, em nossa opinião, é tudo o que existe no id” (FREUD, [1933] 1996, p. 79).

Enfim, embora sem finalizar, como poetiza Ferreira Gullar:

[...]
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão

de vida ou morte –
será arte?9

 

Referências

BARTHES, R. Elementos de semiologia. São Paulo: Cultrix, 2006.         [ Links ]

FOUCAULT, M. História da loucura: na Idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2007.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
E-mail: silvamartinsthiago@gmail.com

Recebido em: 15/02/2017
Aprovado em: 10/04/2017

 

Sobre a autora

Thiago Silva Martins
Administrador de empresas.
Pós-graduado em finanças e controladoria e MBA executivo pela Fundação Dom Cabral. Candidato em formação no CPMG.
Acadêmico do 5º ano de medicina na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.

 

 

1A respeito das facilitações, Freud diz no Projeto: “[...] a memória está representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurônios ψ” (FREUD, [1895] 1996, p. 352).
2Ver FOUCAULT, 2007, p. 36.
3No Seminário 7, de Lacan, a expressão “complexos perceptuais” utilizada na ESB é traduzida para “complexo do Nebenmensch” (LACAN, [1959] 1997, p. 68).
4Ver PENA, B. F.; MARTINS, T. S. O caos pulsional. Reverso, Belo Horizonte, ano 38, n. 71, p. 37-46, jun. 2016. Publicação semestral do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
5O extrato Wahrnehhmungszeichen (Wz) é primeiro extrato do aparelho de memória proposto por Freud na Carta 52, seguido dos extratos Unbewusstsein (Ub) e Vorbewusstsein (Vb). O extrato Ub, ou seja, a inconsciência, é o segundo registro da memória, correspondente a lembranças conceituais e sem acesso à consciência. Já o extrato Vb, a pré-consciência, “[...] é a terceira transcrição, ligada às representações verbais e correspondendo ao nosso ego reconhecido como tal” (FREUD, [1896] 1996, p. 282).
6O sistema ω foi proposto por Freud na Carta 52, em relação à consciência.
7No Seminário 2 Lacan diz a respeito da biologia freudiana: “A biologia freudiana não tem nada a ver com a biologia. Trata-se de uma manipulação de símbolos no intuito de resolver questões energéticas, como manifesta a referência homeostática, a qual permite caracterizar como tal não só o ser vivo, mas também o funcionamento de seus mais importantes aparelhos” (LACAN, [1955] 1985, p. 100).
8Neologismo forjado pelo autor deste artigo para conjugar o isso freudiano ao real lacaniano.
9GULLAR, F. Traduzir-se. In: TAVARES, U. (Org.). Quando nem Freud explica, tente a poesia. São Paulo: Francis, 2007. p. 20.

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