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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.73 Belo Horizonte jun. 2017

 

Arte, Cultura e Psicanálise

 

Desejo circular – a significação do desejo e do sonho na constituição do sujeito

 

Circulate desire - the signification of desire and dream in the constitution of the subject

 

 

Alvaro Oliveira

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Laboratório Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tendo como referência o conto de Jorge L. Borges, o texto se propõe a trabalhar a constituição do sujeito em relação ao desejo e à noção psicanalítica do sonho. O arcabouço teórico psicanalítico, rico em sistemas conceituais (estádio do espelho, complexo de Édipo, corpo, sonho, fantasia) permite pensar de maneira original e concreta como se dá a constituição do sujeito pelo desejo que o Outro lhe investe. Em analogia com o conto de Borges, é possível uma ilustração literária dessa constituição bem como uma elaboração de novas reflexões sobre o tema.

Palavras-chave: Desejo, Sonho, Fantasia, Corpo, Significante.


ABSTRACT

Having as reference the tale of Jorge Luis Borges, this article propose to work the subject’s constitution regarding to desire and the psychoanalytic notion of dreams. The theoretical framework of psychoanalysis, rich in its system of concepts, as the mirror stadium, Oedipus complex, body, dream, fantasy allow us to think original and concrete ways of how does the constitution of the subject by the desire that the Other invests. Ally with Borges tale, a literary illustration of that constitution becomes possible and it gives us new reflections about the theme.

Keywords: Desire, Dream, Fantasy, Body, Significant.


 

Sonho como obra de desejo

Ninguém o viu desembarcar na noite unânime. Ninguém viu sua canoa de bambu sumir no lodo sagrado da água, mas em poucos dias já não ignoravam sua origem e seu jeito taciturno. Cansado, um homem, um estrangeiro vindo de uma das infinitas aldeias que estão água acima, no violento flanco das montanhas, chega pelas margens do rio. (BORGES, [1944] 1999). Seguiu para um templo circular em ruínas, devorado por incêndios antigos, que coroa um tigre ou cavalo de pedra, que teve certa vez a cor do fogo, mas agora era cinzenta. O propósito que o guiava não era impossível, ainda que mágico e sobrenatural.

Queria sonhar um homem: queria sonhá-lo com integridade minuciosa e impô-lo à realidade. Esse projeto mágico esgotara o espaço inteiro de sua alma; se alguém lhe tivesse perguntado o próprio nome ou qualquer aspecto de sua vida anterior, não teria acertado na resposta. Convinha-lhe o templo inabitado e despedaçado, porque era um mínimo de mundo visível; a proximidade dos lenhadores também, porque estes se encarregavam de suprir suas necessidades frugais. O arroz e as frutas de seu tributo eram pábulo suficiente para seu corpo, consagrado à única tarefa de dormir e sonhar (BORGES, [1944] 1999, p. 500).

Assim, ele dormia, dormia para sonhar e no sonho constituir um novo homem. Muito se disse a respeito dos sonhos ao longo do tempo. Na pré-história, os sonhos eram associados ao mundo sobre-humano, ao mundo sobrenatural e traziam mensagens de deuses e espíritos. Na modernidade, por muito tempo, os sonhos foram considerados uma continuidade da vida de vigília, e sonhamos com o que vimos, dissemos ou fizemos. Ainda na modernidade, os sonhos poderiam ser simples reproduções em imagens da cinestesia: daquilo que sentimos e pensamos durante o sono (FREUD, [1899] 2001).

Talvez todas essas noções de sonho tenham relação com o propósito do homem sonhador que chega ao templo na calada da noite: trata-se de uma tarefa sobrenatural; trata-se de sonhar algo que foi dito, visto ou feito; trata-se de sensações que se tem ao longo do sonhar para se constituir esse novo sujeito, mas, acima de tudo, o sonho tem relação direta com a realização de desejo.

Que o desejo seja o causador do sonho, que a realização desse desejo seja o conteúdo do sonho, é uma de suas características principais. A outra característica, igualmente constante, é que o sonho não apenas dá expressão a um pensamento, mas apresenta, sob forma de uma experiência alucinatória, aquele desejo realizado. Quero atravessar o lago, diz o desejo que enseja o sonho; o sonho em si tem por conteúdo estou atravessando o lago (FREUD, [1916-1917] 2014, p. 172).

Trata-se de uma projeção de desejo. O sonhador, no ato de sonhar, no ato de criar um novo homem, concretiza um desejo. A princípio, seus sonhos eram caóticos e nebulosos, mas aos poucos começaram a tomar uma natureza dialética (BORGES, [1944] 1999). Sonhava no centro do templo circular. Concebeu uma nuvem de rostos e corpos que esgotavam os degraus arruinados. Os rostos dos últimos degraus pendiam a séculos de distância, numa altura estelar, mas eram nítidos e precisos como todos aqueles que estavam mais próximos. O homem lhes ditava lições de anatomia, cosmografia e magia. Os fantasmas (ou fantasias) acompanhavam o ensino atentamente, como se entendessem a importância do exame pelo qual teriam que passar.

Em sonho e vigília, o sonhador meditava a respeito da escolha do alun, que deixaria de ser uma vã aparência para interpolar ao mundo real. Não se deixava enganar pelos impostores. Após nove ou dez dias, compreendeu com amargura que não podia esperar nada daqueles alunos que aceitavam passivamente sua doutrina, e sim daqueles que arriscavam alguma razoável contradição. Os primeiros, apesar de dignos de amor e afeição, não poderiam ascender a sujeitos; os últimos preexistiam um pouco mais. Diplomou permanentemente o vasto número de alunos e ficou com um único discípulo, que em certa medida se assemelhava ao próprio sonhador. A catástrofe, no entanto, sobreveio.

O homem, um dia, emergiu do sonho como de um deserto viscoso, olhou a vã luz da tarde que, à primeira vista, confundiu com a aurora, e compreendeu que não sonhara. Toda essa noite e todo o dia, a intolerável lucidez da insônia se abateu contra ele. Quis explorar a selva, extenuar-se; somente entre a cicuta conseguiu algumas rajadas de sonho débil, venuladas fugazmente de visões de tipo rudimentar inaproveitáveis. Quis congregar o colégio e apenas havia articulado algumas breves palavras de exortação, este se deformou, se apagou. Na quase perpétua vigília, lágrimas de ira queimavam-lhe os velhos olhos (BORGES, [1944] 1999, p. 501).

Compreendeu que modelar a matéria incoerente e vertiginosa que compõe o sonho é o empenho mais árduo que um homem pode empreender, ainda que conheça todos os enigmas da ordem superior e inferior. Um grande erro talvez tenha sido tentar concretizar algo preexistente (BORGES, [1944] 1999). Essas fantasias não passavam de mera alucinação. Um erro inicial era inevitável. Dedicou um mês para a recuperação das forças sugadas pelo delírio. Abandonou toda a premeditação de sonhar. Conseguiu dormir, mas sem se recordar dos sonhos. Purificou-se nas águas do rio, adorou os deuses planetários, pronunciou sílabas lícitas de um nome poderoso, esperou o disco lunar tornar-se perfeito e finalmente dormiu.

Dormiu e sonhou com um coração que pulsava. Iniciava a produção de um corpo, um corpo que seria habitado por uma alma e se tornaria real. Constituía-se um sujeito, uma unificação de corpo, a emissão dos primeiros significantes.

 

A constituição do corpo do sonhado

Lacan ([1937] 1998) se refere à constituição do Eu ou mesmo à constituição do corpo (FREUD, [1923] 2007) a partir do estádio do espelho. É dele que surge uma identificação fundamental, na qual a criança (no caso, o sujeito sonhado) faz a conquista da imagem de seu próprio corpo (DOR, 1989). A identificação primordial é o que permitirá a estruturação do Eu, finalizando a vida psíquica singular chamada de fantasma do corpo esfacelado (LACAN, [1937] 1998). Antes do estádio do espelho, de fato, o sujeito tem a experiência de um corpo esfacelado, que se unifica apenas após o estádio.

[...] o estádio do espelho é um drama cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação – e que fabrica para o sujeito, apanhado no engodo da identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem despedaçada do corpo até uma forma de sua totalidade que chamaremos de ortopédica – e para a armadura enfim assumida de uma identidade alienante, que marcará com sua estrutura rígida todo o seu desenvolvimento mental (LACAN, [1937] 1998, p. 100).

É possível distinguir três tempos fundamentais na fase do espelho, que pontuam progressivamente a imagem do corpo (DOR, 1989). Num primeiro momento, a criança percebe a imagem de seu corpo como um ser real, que ela procura se aproximar ou apreender. Não tem consciência ainda da questão da imagem nem que essa imagem é ela mesma. Esse primeiro momento testemunha a favor de uma confusão que a criança faz entre si e o outro (DOR, 1989). O segundo momento é decisivo no processo identificatório: a criança é levada a descobrir que o outro do espelho não é real; trata-se de uma imagem. Daí ela já não procura mais se apoderar da imagem, e passa a distingui-la do outro e da realidade do outro (DOR, 1989). Por fim, no terceiro tempo a criança realiza uma dialética entre o primeiro e o segundo. Já está segura de que o reflexo no espelho é uma imagem e, mais ainda, trata-se da imagem dela (DOR, 1989). A partir do reconhecimento nessa imagem, a criança recupera a dispersão do corpo esfacelado, fazendo sua unificação, que é a representação do corpo próprio (LACAN, [1937] 1998).

É esse momento que decisivamente faz todo o saber humano bascular para a mediatização pelo desejo do outro, constituir seus objetos numa equivalência abstrata pela ocorrência de outrem, e que faz do [eu] esse aparelho para o qual qualquer impulso dos instintos será um perigo, ainda que corresponda a uma maturação natural – passando desde então à própria normalização dessa maturação a depender, no homem, de uma intermediação cultural [...] (LACAN, [1937] 1998, p. 101-102).

Certa analogia se dá na constituição do corpo do sonhado. O homem taciturno sonhou o coração ativo e caloroso, secreto, do tamanho de um punho fechado na penumbra de um corpo humano, ainda sem rosto e sexo. Sonhou-o com amor minucioso durante catorze lúcidas noites (BORGES, [1944] 1999). Cada noite percebia-o com maior evidência. Não o tocava. Apenas se limitava a testemunhá-lo, observá-lo, corrigi-lo vez ou outra com o olhar. Percebia-o e vivia-o de muitas distâncias e muitos ângulos.

Na décima quarta noite, roçou a artéria pulmonar com o indicador e depois todo o coração, por fora e por dentro. O exame o satisfez. Deliberadamente não sonhou durante uma noite: depois retomou o coração, invocou o nome de um planeta e empreendeu a visão de outro dos órgãos principais. Antes de um ano chegou ao esqueleto, às pálpebras. O cabelo inumerável foi talvez a tarefa mais difícil. Sonhou um homem inteiro, um moço, mas este não se incorporava nem falava, nem podia abrir os olhos. Noite após noite, o homem sonhava-o adormecido (BORGES, [1944] 1999, p. 501-502).

Para que haja a constituição de um corpo e sua unificação, é necessária a mediação com o desejo do outro. O corpo do sonhado só pode existir a partir do desejo do sonhador, o próprio sonho como desejo. Lacan exemplifica o estádio do espelho a partir da analogia com a imagem virtual vista no próprio espelho. Essa analogia não é única. Na relação dialética entre sonhador e sonhado, o corpo deixa de ser esfacelado (apenas órgãos, esqueletos e caótica cabeleira, sem ordenação: um verdadeiro corpo sem órgãos) e se unifica num homem inteiro, perfeito. É com o olhar do sonhador, com suas correções, sua vigília, que se pode constituir o corpo.

O estádio do espelho tem como característica a alienação no registro do imaginário (LACAN, [1937] 1998). É com uma imagem que o sujeito se identifica e se separa do outro e da realidade do outro; é em algo virtual. O corpo despedaçado, fragmentado, o fantasma do corpo esfacelado, é algo de ocorrência no registro do real, e apenas com o imaginário que esse corpo pode se unificar.

Em algum momento da obra, quando o corpo do sonhado já está completo, o sonhador demonstra a ambivalência que há em todo o desejo: quis destruir tudo o que concretizou, mas se arrependeu (talvez fosse melhor fazê-lo). Era hora de sua criação despertar. Arrojou-se aos pés da efígie que do templo, que talvez fosse um potro ou um tigre e implorou por seu desconhecido socorro (BORGES, [1944] 1999).

Nesse crepúsculo, sonhou com a estátua. Sonhou-a viva e trêmula: não se tratava de um tigre ou um potro, mas ambas as criaturas, e talvez também um touro.

Esse múltiplo deus revelou-lhe que seu nome terrenal era Fogo, que nesse templo circular (e em outros iguais) rendiam-lhe sacrifícios e culto e que magicamente animaria o fantasma sonhado, de tal sorte que todas as criaturas, exceto o próprio Fogo e o sonhador, julgassem-no um homem de carne e osso. Ordenou-lhe que uma vez instruído nos ritos, remetesse-o ao outro templo despedaçado, cujas pirâmides persistem água abaixo, para que alguma voz o glorificasse naquele edifício deserto. No sonho do homem que sonhava, o sonhado despertou (BORGES, p. 502, [1944] 1983).

Um resquício de lei se apresenta com esse sonho: há uma regra ou, mais ainda, uma norma que dita as causas necessárias para a existência do sonhado. Faz-se pressentir uma entidade proibidora. Esse deus aparece mediando no discurso do sonhador. No primeiro momento do sonho, o discurso do sonhador, seu desejo e sua vontade, eram captados em estado bruto. Agora a fala do deus intervém diretamente no discurso do sonhador. Portanto, ele não aparece menos velado do que no primeiro momento, mas sua lei não é completamente revelada (LACAN, [1957-1958] 1999).

O mago executou as ordens do deus. Estabeleceu um prazo (que abrangeu dois anos) para que seu sonho tornasse real. Intimamente, dói-lhe separar-se dele. Com pretexto de necessidades pedagógicas, dilatava os dias e as horas dedicadas ao sonho. Em geral, seus dias eram felizes.

Ao fechar os olhos, pensava:

“Agora estarei com meu filho”. Ou, mais raramente: “O filho que gerei me espera e não existirá se eu não for” (BORGES, [1944] 1999).

Viveu um verdadeiro narcisismo. Para Freud ([1914] 2004, p. 97) o narcisismo “[...] não seria uma perversão, mas o complemento libidinal do egoísmo próprio da pulsão de autoconservação”.

Na criança (no sonhado a criança é sempre sonhada), o investimento libidinal, a pulsão, não está dirigida para outra pessoa; ela se satisfaz no próprio corpo (FREUD, [1905] 1969).

No caso do autoerotismo, a criança estimula um órgão próprio – em casos mais simples, a sucção – para relembrar uma satisfação já vivenciada, como a satisfação do leite. A criança, então, não se serve de um objeto externo para a satisfação de sua pulsão, mas se serve de seu próprio corpo, por ser mais cômodo, porque isso a torna independente do mundo externo, do qual ainda não tem domínio (FREUD, [1905] 1969). Dessa maneira, ela proporciona o órgão de seu corpo com o status de uma segunda zona erógena, de nível inferior, e mais tarde essa inferioridade a levará a buscar em outra pessoa uma maior satisfação.

Essa outra pessoa é a mulher que cuida da criança (geralmente a mãe; a mãe é sempre a sonhadora). Freud ([1914] 2004) afirma que o ser humano tem dois objetos sexuais primordiais: ele mesmo e a mulher que dele cuida, geralmente a mãe. Isso caracteriza o narcisismo primário.

Esse investimento amoroso nele mesmo e na mulher que cuida dele não é um investimento objetal, pois a criança

[...] apresentar-se-á diante delas como se fosse uma parte de seu próprio corpo, na forma de outro objeto, e, assim, partindo de seu próprio narcisismo, elas podem dedicar-lhe todo seu amor objetal (FREUD, [1914] 2004, p. 109).

Dessa identificação imaginária surge o Eu-ideal, que está relacionado ao narcisismo primário.

O termo narcisismo primário, pelo qual a doutrina designa o investimento libidinal próprio desse momento, revela em seus inventores, à luz de nossa concepção, o mais profundo sentimento das latências da semântica. Mas a doutrina esclarece também a oposição dinâmica que eles procuraram definir entre essa libido e a libido sexual, quando invocaram instintos de destruição, ou até mesmo de morte, para explicar a evidente relação da libido narcísica com a função alienante do [eu], com a agressividade que dela se destaca em qualquer relação com o outro, nem que seja a mais samaritana ajuda (LACAN, [1937] 1998, p. 102)

Pode-se dizer que, num segundo momento, após o estádio do espelho, o sujeito erigiu um ideal para si e, assim, mede seu Eu atual. Para que haja o recalque, então, é necessário que também haja a formação de ideal por parte do Eu (FREUD, [1914] 2004). O amor ao Eu, desfrutado na infância, agora é direcionado para esse Eu ideal. À semelhança do Eu infantil, esse Eu ideal se encontra de posse de toda valiosa perfeição e completude (FREUD, [1914] 2004).

Freud ([1914] 2004) percebe que o ser humano se mostra incapaz de renunciar à satisfação já uma vez desfrutada; ele não se priva da perfeição e da completude narcísicas de sua infância. No entanto, não pode se manter sempre nesse estado, devido às várias exigências sociais: a própria educação e sua capacidade interna de ajuizar irão atrapalhar essa intenção. Ele tentará recuperá-lo a partir dessa nova forma de Eu, o ideal-de-Eu (FREUD, [1914] 2004). O ideal-de-Eu é o substituto de um narcisismo perdido de sua infância. Logo, não se poderia deduzir que todo o montante de libido se dissolveu em investimentos feitos nos objetos, pois tal possibilidade contradiz com as discussões psicanalíticas.

Não se trata mais de um processo identificatório, mas de uma sublimação (FREUD, [1914] 2004). Percebe-se, então, a existência de dois tipos de narcisismo: o primário e o secundário, assim como dois conceitos relacionados ao Eu – o Eu ideal e o ideal de Eu; o primeiro é do registro do imaginário, como já dito, e o segundo, do registro do simbólico (LACAN, [1953-1954] 1983).

[...] o investimento dos objetos pela libido é no fundo uma metáfora realista, porque ela só investe a imagem dos objetos. Ao passo que o investimento do eu pode ser um fenômeno intrapsíquico, em que é a realidade ontológica do eu que é investida. Se a libido se tornou libido de objetos, ela não pode mais investir senão alguma coisa que será simétrica à imagem do eu. De sorte que teremos dois narcisismos, segundo seja uma libido que invista intrapsiquicamente o eu ontológico, ou bem uma libido objetal que invista alguma coisa que será talvez o ideal do eu, em todo o caso uma imagem do eu. Teremos então uma distinção muito bem fundada entre o narcisismo primário e o narcisismo secundário (LACAN, [1953-1954] 1983, p. 144-145).

É neste momento que o sonhador compreende – não sem amargura – que seu filho está pronto para nascer e talvez esteja impaciente. Não queria se separar dele, mas já era hora. Naquela noite, beijou-o pela primeira vez e enviou-o ao outro templo, semelhante às ruínas em que se encontrava. Antes, para que nunca soubesse que era um fantasma, para que acreditasse ser um homem como os outros, infundiu-lhe o esquecimento total desses memoráveis anos.

Sua vitória e sua paz ficaram embaraçadas com a fadiga.

Nos crepúsculos da tarde e da alvorada, prostrava-se diante da figura de pedra, talvez imaginando que seu filho irreal executasse idênticos ritos, em outras ruínas circulares, águas abaixo; de noite, não sonhava, ou sonhava como o fazem todos os homens. Percebia com certa palidez, os sons e formas do universo: o filho ausente se nutria dessas diminuições da alma. O propósito de sua vida fora atingido; o homem persistiu numa espécie de êxtase (BORGES, [1944] 1999, p. 503).

 

Conclusão: a circularidade do significante de desejo

No fim de um tempo que alguns narradores preferem computar em anos, dois remadores o despertaram à meia-noite. Falaram-lhe de um homem mágico, num templo ao norte, capaz de pisar no fogo e não se queimar. Lembrou-se bruscamente das palavras que o deus lhe dissera: de todas as criaturas que compõem o orbe, o fogo, era a única que sabia que seu filho era um fantasma. Essa lembrança, a princípio apaziguadora, acabou por atormentá-lo: temeu que seu filho meditasse sobre esse privilégio anormal e descobrisse de algum modo sua condição de mero simulacro. Não ser um homem, ser simplesmente a projeção de um sonho sonhado por outro homem. Que humilhação, que vertigem!

A todo pai interessam os filhos que procriou (que permitiu) numa simples confusão ou felicidade; é natural que o mago temesse pelo futuro daquele filho, pensado entranha por entranha e traço por traço (BORGES, [1944] 1983, p. 454).

O final de suas cavilações foi brusco, mas anunciaram alguns sinais. Primeiro (no término de uma longa seca) uma remota nuvem numa colina, leve como um pássaro; depois, para o Sul, o céu que tinha a cor rosada da gengiva dos leopardos; depois, a fumaceira que enferrujou o metal das noites; depois a fuga pânica das bestas. Porque se repetiu o que havia acontecido faz muitos séculos. As ruínas do santuário do deus do fogo foram destruídas pelo fogo. Numa alvorada sem pássaros, o mago viu cingir-se contra os muros o incêndio concêntrico. Por um instante, pensou em refugiar-se nas águas, mas depois compreendeu que a morte vinha coroar sua velhice e absolvê-lo de seus trabalhos. Caminhou contra as línguas de fogo. Estas não morderam sua carne, estas o acariciaram e o inundaram sem calor e sem combustão (BORGES, [1944] 1999, p. 503-504).

Nesse momento, em sensações mistas de alívio, humilhação e terror, a lei, antes ainda velada, se faz presente plenamente. O sonhador compreende que ele também era apenas uma aparência, que outro o estava sonhando, que outro o estava desejando.

Para que o sonhador sonhe o sonhado, é preciso que ele mesmo tenha sido certa vez sonhado e, consequentemente, desejado como sujeito por outro sonhador. O significante Nome-do-Pai, a metáfora paterna, surge para apontar esse furo em qualquer forma de linguagem, esse furo que aponta que, na verdade, tudo se trata de um delírio.

Trata-se de apontar que o significante, como tal, não significa nada (LACAN, [1955-1956] 2002). Todos os axiomas que dizem respeito ao sujeito perdem sua concretude para o abstrato. E se ele parasse de sonhar com você...

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: alvo.oliveira@gmail.com

Recebido em: 13/03/2017
Aprovado em: 11/04/2017

 

Sobre o autor

Alvaro Oliveira
Psicólogo.
Mestre em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais na linha de pesquisa Psicanálise, teoria e clínica.
Pesquisador do Laboratório Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS). Psicanalista em formação no Circulo Psicanalítico de Minas Gerais.

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