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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.74 Belo Horizonte dez. 2017

 

Autor convidado

 

Revisitando o conceito de angústia

 

Revisiting the concept of anguish

 

 

Gilda Vaz Rodrigues

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Lacan em seu seminário A angústia formaliza o conceito de objeto a , não só pela perspectiva de seu estatuto lógico e topológico, mas também pelo seu estatuto corporal. O tempo da angústia seria relativo à queda do objeto que não se solta sem dor. A dor no peito, o nó na garganta, o corpo dando o recibo da libra de carne com que se paga o acesso ao desejo. A proposta deste texto é rever o manejo da angústia à luz do último ensino de Lacan.

Palavras-chave: Inconsciente, Angústia, Objeto a, Real, Desejo.


ABSTRACT

Lacan in his Seminary The Anguish, formalizes the concept of object a, not only by the perspective of its logical and topological status, but also, highlights its corporal status. The time of anguish would be correlative at the time of fall of the object which does not let go without pain. The pain in the chest, the knot in the throut, the body giving the receipt of the pound of meet with which one pays the access to the desire. The purpose of this paper is to review the concept of anguish in the light of Lacan's last teaching.

Keywords: Uncouscious, Anguish, Object a, Real, Desire.


 

Agrave;s vezes não se precisa ter medo da angústia:
ela pode ser fértil
e dar frutos de alegria e pureza.

Clarice Lispector , 2013, p. 290.

 

Começo pelo conceito fundamental da descoberta freudiana – o inconsciente. Trata-se do próprio objeto da psicanálise. Lacan vai na direção do irredutível da estrutura do sujeito do inconsciente e retifica seu estatuto. Isso tem consequências na clínica psicanalítica, que se torna cada vez mais pontual, fazendo com que o processo não se perca nas voltas que a experiência envolve.

Seguindo nessa direção, tem-se, por vezes, a impressão de que haveria uma clínica do significante e da interpretação e uma outra clínica, a do real. Ouve-se falar em primeira e segunda clínica. Ora, considero que a clínica é uma só.

O tratamento psicanalítico, desde os tempos de Freud, começa pela associação livre e a articulação em uma cadeia de significantes formando o tecido do inconsciente entrelaçado como uma rede. No intervalo da cadeia, outra dimensão do inconsciente se faz entrever – o vazio, o furo, o buraco, campo de perda que coloca em foco aquilo que se formula como o campo do real. O real sempre esteve e volta ao mesmo lugar. Talvez hoje tenhamos mais recursos para manejar essa dimensão, graças ao conceito de objeto a , que se tornou um operador na clínica.

A entrada em análise se dá pela extração do objeto a que toca num ponto que se abre em duas dimensões: uma significante, que se articula em cadeia, e outra, que não se encadeia, permanecendo fora da linguagem articulada.

Após percorrer um longo caminho numa análise, o espaço vislumbrado pela queda dos sentidos, que se atribui ao eu de cada um, se insinua na brevidade de um relâmpago, deixando entrever o vazio do ser.

O enigma que envolve esse saber está no resto, que permanece e sobrevive à queda dos sentidos.

A operação chamada de castração simbólica vai cavando o buraco da estrutura do sujeito, uma vez que o “significante representa o sujeito para outro significante” e, no intervalo entre um significante e outro, se vislumbra o real como impossível de ser simbolizado acionando o deslizamento da cadeia.

A partir de O seminário, livro 10: a angústia, Lacan ([1962-1963] 2005) irá focar numa dimensão do real que não é produto do simbólico, mas um real que nunca entrou no simbólico. Esse real, que sempre esteve lá, desde o estágio do espelho, diz respeito à prematuridade do ser humano e condiciona a abertura para o imaginário e o simbólico.

Colete Soller se refere a essa dimensão do real, que Lacan privilegiará em suas elaborações finais, como “um corte real sobre o organismo”, portanto aquilo que do corpo permanece à deriva como pulsão parcial.

Tal como o lagarto que solta um pedaço de sua calda para salvar o essencial, o sujeito também solta o a para se salvar e não ser totalmente consumido como objeto do gozo do Outro. Ele não estará, assim, todo na linguagem. Um pedacinho do corpo escapa ao simbólico.

Podemos entender por que a captura dessa fenda pelo imaginário, o recobrimento disso que deve se manter vazio, leva a um sinal de alarme que se chama angústia.

Como tratar essa dimensão do real?

Os vazios da estrutura são operadores e possibilitam seu movimento. O neurótico se fixa em representações mantendo os espaços fechados e ocupados por sentidos que travam seu movimento na vida e o condena à repetição interminável de uma mesma cadeia – a palavra “cadeia” reforça o sentido de aprisionamento.

O trabalho analítico visa desembaraçar o sujeito da forma como se enrolou e se perdeu no labirinto de sua subjetividade. Tratará de enodá-lo de outra forma, de maneira que possa se soltar e se religar a um só e mesmo tempo, mediatizado pelo objeto causa de desejo que aciona essa operação.

Para suportar o vazio, é preciso que o tecido do inconsciente, furado por estrutura, tenha construído bordas que sustentem e componham o próprio buraco. Lacan ([1962-1963] 2005) sempre insistiu na estrutura de toro do sujeito do inconsciente e utilizou, inclusive, a metáfora do oleiro para dizer da composição das paredes do vaso, que sustentam o vazio interior. Assim, como na construção de uma casa, l evantam-se primeiro as paredes para que os espaços vazios internos possam ser ocupados pelos seus moradores.

Essa metáfora nos serve para articular a questão freudiana do Unheimlich (estranho familiar), pois dentro dessa casa habita um hóspede indesejável – o fantasma ou a fantasia com que cada um responde ao vazio de seu ser e ao enigma do desejo do Outro.

O Unheimlichkeit é aquilo que aparece no lugar que deveria estar vazio (-y).

Quando algo surge ali, a falta vem a faltar causando angústia.

A casa cheia, o eu exilado em sua própria casa, perdido no lugar de objeto desse hóspede estranho e familiar.

O sujeito se vê perdido em sua própria casa.

Como aceder ao desejo se este se define como desejo do Outro?

O desejo continua a ser, por estrutura, desejo do Outro, mas , o que muda é a posição do sujeito com relação a isso – .

É no vazio do seu canto que pode compor sua canção, que pode ouvir o ressoar dos sinos que tocam no seu desejo. Só há ressonância no vazio.

O desejo aponta para o enigma do ser do sujeito no campo do Outro. Che vuoi ? Que queres? Questão que deve se manter sempre como uma pergunta e não como uma resposta.

A angústia para Lacan não está relacionada ao desamparo e sim a um amparo que o sujeito recebe do objeto como resposta ao enigma do desejo do Outro. Existe, sim, o desamparo Hilflosigkeit em que se é tomado por um transtorno sem saída. Não é dessa angústia que estamos falando. Estamos falando da angústia em seu caráter de espera (Erwartung), modo radical sob o qual é mantida a relação com o desejo.

Entre o gozo e o desejo está a angústia, como um tempo intermediário à espera de um esvaziamento que constitua o desejo. Esperar sem des-esperar...

Em uma entrevista à revista italiana Panorama em 1974, ao ser indagado pelo jornalista se ele era pessimista com relação ao mundo, Lacan responde:

– Não é verdade. Não me enquadro nem entre os alarmistas, nem entre os angustiados. Infeliz do analista que não tiver ultrapassado o estádio da angústia.

É fundamental a função do desejo do analista no manejo da angústia. Ressalta-se que o desejo do analista não é pessoal, mas se define como um desejo sem objeto da ordem da representação.

O esvaziamento de sentido deixa o espaço vazio para o desejo. Segue no escuro, identificando os rastros de seus objetos para ocupar seu lugar na casa.

Ser tomado por essa estranheza é como entrar no labirinto de Alice, do conto de Lewis Carroll. A experiência do estranho na psicanálise deixa algo que não pode ser apreendido. A verdade nunca é dita toda. Há um campo de desconhecimento que toca numa zona obscura da nossa estrutura psíquica.

Percorrer a casa na escuridão de seu ser permite captar o olhar e a voz que indicam a direção desse a.

O tempo da angústia seria correlativo ao tempo da queda do objeto que, de tão agarrado, não se solta sem dor. A dor no peito, o nó na garganta, o corpo dando o recibo da libra de carne com que se paga o acesso ao desejo.

A experiência analítica, além da cadeia significante, possibilita uma experiência inédita, de encontro consigo mesmo, de ser Um e suportar o vazio subjetivo que isso acarreta. No entanto, um vazio fecundo, pois, a partir daí, pode-se jogar com o inconsciente: um chiste, um equívoco, um lapso, uma poesia, uma música, a arte.

A angústia é o afeto que não engana, insiste Lacan ([1962-1963] 2005). Podemos pensar que há mais verdade na angústia do que na fala do analisante. A angústia porta uma certeza que toca na causa do inconsciente e que sinaliza que dali pode advir um sujeito. É uma aposta.

A questão da aposta percorre todo o ensino de Lacan tendo sido introduzida por meio da aposta de Pascal, que, por sua vez, foi a base histórica do cálculo das probabilidades.

O interesse de Lacan pela aposta de Pascal vai ao encontro das relações do sujeito com o jogo significante. A existência do eu pode ser calculada.

Aprendemos com a psicanálise a fazer valer a vida como uma aposta ou um jogo em que o que se perde é o objeto a. Ganha-se um lugar na ordem simbólica, perde-se o ser da vida natural. Aposta-se, mesmo sabendo que o jogo está perdido de antemão.

A angústia não engana, pois porta a verdade do ser.

Ultrapassar o estágio da angústia dá asas ao jogo com o inconsciente.

No Seminário 24: L'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre, Lacan (1976-1977) comenta que poderia ter reservado a sua satisfação de jogar com o inconsciente só para ele, sem revelar os truques dos efeitos de significantes que se opera nesse jogo, mas, ele não teria feito ensino.

A importância disso se constata pelos efeitos de transmissão que o ensino de Lacan deixou e que até hoje continuam a ressoar no trabalho dos psicanalistas.

Lembro-me de um depoimento de Françoise Dolto em um documentário, em que alguém pergunta como foi sua experiência de frequentar os seminários de Lacan. Entre outras coisas, ela diz que nem sempre entendia muito bem o que ele dizia, mas que permanecia ali por causa do “clima”, referindo-se a algo além da linguagem que ressoava.

Conta o poeta Rumi, no século XIII, que o som da flauta feita da cana de bambu, ressoa devido não só ao seu furo interior mas também porque carrega a nostalgia do tempo em que era cana. Seu som traz ao mesmo tempo a alegria e o luto, efeito do corte que causou seu rompimento com a natureza e fez dela uma flauta. Fabricou-se uma outra coisa, e ela entrou definitivamente no mundo dos objetos humanos.

Assim também se constitui o sujeito da psicanálise a partir da operação do corte que o separa definitivamente da natureza, extraindo uma libra de carne bem perto do coração – como no conto de Shakespeare, O mercador de Veneza Kerr unseres wesens , do coração do ser, no dizer de Freud.

O ato psicanalítico reedita esse corte fazendo ressoar, a partir do furo interior da estrutura do sujeito do inconsciente o tom de cada uma das subjetividades, ao dar voz às suas produções. O tom de cada um de nós não se escuta no burburinho do dia a dia. É preciso parar, delimitar o espaço-tempo para se fazer ouvir no silêncio da pulsão silenciosa, pulsão de morte.

Morte que traz a vida!

O analista vai chegando a um saber cada vez mais pontual.

As palavras já não buscam um encadeamento lógico e gramatical, elas brincam, pulam, soltam, ressoam no vazio, deixando no ar o vapor das lembranças ( Vaz Rodrigues , 2017)

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: gildavaz@terra.com.br

Recebido em: 17/07/2017
Aprovado em: 01/09/2017

 

Sobre a autora

Gilda Vaz Rodrigues
Psicanalista. Dedica-se à transmissão da psicanálise em seu seminário O ensino de Jacques Lacan desde 1990, em Belo Horizonte. Participou como coautora, entre outros, dos livros Ideias de Lacan; A culpa (São Paulo: Iluminuras); A escola de Lacan (São Paulo: Papyrus); Clínica Psicanalítica Contemporânea (Belo Horizonte: Ophicina Arte&Prosa). Rastros de amor (Belo Horizonte: Quixote). É autora de Percursos na transmissão da psicanálise ; A psicanálise pelo avesso ; Cortes e suturas na operação psicanalítica . Quatro atos (Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa); No princípio era o ato (Belo Horizonte: Artesã).

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