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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.74 Belo Horizonte Dec. 2017

 

Teoria e Clínica Psicanalítica

 

O caleidoscópio de Freud - O estruturalismo linguístico e suas relações com o inconsciente freudiano

 

Freud’s kaleidoscope - linguistics structuralism and it’s relations with Freudian unconscious

 

 

Alvaro Oliveira

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Laboratório Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A linguagem, além de instrumento fundamental para a prática de análise, é tema capital nas elaborações teóricas de Freud. Tendo em vista a grande influência que a linguística estrutural inaugurada por Saussure teve no avanço das ciências sociais na França, inclusive da psicanálise, procura-se neste artigo articular um diálogo entre os conceitos freudianos estabelecidos para se pensar o inconsciente e o aparelho psíquico e conceitos da linguística estrutural, e em que ponto esses pensamentos convergem e divergem em suas teorizações.

Palavras-chave: Linguagem, Signo, Inconsciente, Estruturalismo, Psicanálise.


ABSTRACT

Language, in addition of being a fundamental element in psychoanalysis practice, it is also a key theme for theoretical elaborations of Freud. Given the great influence that structural language had in the advance of social sciences in France, including psychoanalysis, this article seeks to articulate a dialogue between Freudian concepts established to think the unconscious and the psychic apparatus and concepts of structural language, and in which ways their thoughts converge and diverge.

Keywords: Language, Sign, Unconscious, Structuralism, Psychoanalisis.


 

Língua e linguagem

A linguagem é uma inesgotável riqueza de múltiplos valores. Ela é inseparável do homem e segue-o em todos os seus atos. Ela é o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções. É a base última e mais profunda da sociedade humana (HJELMSLEV, [1943] 2013).

Ela é multiforme e heteróclita,

[...] o cavaleiro de diferentes domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence, além disso, ao domínio individual e ao domínio social (SAUSSURE, [1907-1913] 2006, p. 17).

A linguagem não é um simples acompanhante, mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento; para o indivíduo, ela é o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de pai para filho. Para o bem e para o mal, a fala é a marca da personalidade, da terra natal e da nação, o título de nobreza da humanidade. O desenvolvimento da linguagem está tão inextricavelmente ligado ao da personalidade de cada indivíduo, da terra natal, da nação, da humanidade, da própria vida, que é possível indagar-se se ela não passa de um simples reflexo ou se ela não é tudo isso: a própria fonte de desenvolvimento das nossas coisas (HJELMSLEV, [1943] 2013, p. 1-2).

A ciência viu na linguagem sequências de sons e de movimentos expressivos, suscetíveis de uma descrição exata, física, fisiológica, cuja disposição forma signos que traduzem fatos da consciência. Procurou-se nas interpretações psicológicas e lógicas dos signos as flutuações da psique e a constância do pensamento: as primeiras na evolução e na vida da língua; as segundas, seus próprios signos, entre os quais se distinguiram palavras e frases, imagens concretas do conceito e do juízo.

A linguagem, como sistema de signos, devia fornecer a chave do sistema conceitual e a da natureza psíquica do homem. A linguagem como instituição social supraindividual devia contribuir para a caracterização da nação; a linguagem, com suas flutuações e sua evolução, devia abrir caminho ao conhecimento do estilo da personalidade e ao conhecimento das longínquas vicissitudes das gerações desaparecidas. A linguagem ganhava, assim, uma posição-chave que iria abrir perspectivas em muitas direções (HJELMSLEV, [1943] 2013, p. 2).

Saussure foi o teórico pioneiro a pensar a linguagem nessa perspectiva, a partir dos conceitos de significante, significado e signo (SAUSSURE, [1907-1910] 2013). Saussure, no entanto, não se propõe a estudar a linguagem como um todo, mas estuda a língua, parte essencial da linguagem.

Para ele

[...] é necessário colocar-se primeiramente no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem (SAUSSURE, [1907-1910] 2006, p. 16-17).

A língua, como a define,

[...] é ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos (SAUSSURE, [1907-1910] 2006, p. 17).

Conjunto de normas, regras, costumes, prescrições e de hábitos, que é comum a um determinado povo em determinada época. Ela traz um limite, evita uma ultrapassagem de sentido (BARTHES, [1953] 2004).

Diferentemente da linguagem, que é heterogênea, a língua é homogênea. Ela se constitui num sistema de signos que só existe a partir da união do sentido e da imagem acústica. Trata-se de uma natureza concreta porque, embora os signos sejam psíquicos, eles não são abstratos. Os signos da língua são tangíveis; podem ser fixados pela escrita em imagens convencionais. Filósofos e linguistas sempre concordaram que sem os signos seríamos incapazes de distinguir ideias de maneira clara e constante (SAUSSURE, [1907-1910] 2006).

O pensamento é como uma nebulosa em que nada está estabelecido. Não existem ideias preestabelecidas, e nada é distinto antes do aparecimento da língua. O valor de um signo resulta negativamente da presença simultânea de todos os outros signos na língua, ou seja, o signo adquire valor por outro signo que é seu oposto.

A língua é vista por Saussure (]1907-1910] 2013) como um sistema que conhece apenas sua própria ordem. Esse sistema é composto por n elementos variáveis, que são os signos. A relação desses signos é o que possibilita a expressão de uma ideia. São essas relações que o estruturalismo tem como objeto de estudo.

É como um jogo de xadrez, cujas regras e peças formam o sistema. Ele não se altera por influências externas, por exemplo, por ter passado da Pérsia para a Europa, nem pela substituição do material das peças. O sistema muda apenas com a inclusão de novas peças ou sua redução. a redução delas Só assim há uma mudança radical. Uma analogia melhor poderia ser feita com o caleidoscópio, que

[...] consiste em arranjos nos quais, por um jogo de espelhos, os reflexos equivalem a objetos, vale dizer, nos quais signos assumem o lugar de coisas significadas; esses arranjos atualizam possibilidades cujo número, mesmo bastante elevado, não é todavia ilimitado, pois que é função de disposições e equilíbrios realizáveis entre corpos cujo número é por sua vez finito; enfim e sobretudo, esses arranjos engendrados pelo encontro de fatos contingentes (o giro do instrumento pelo observador) e de uma lei (a que preside a construção do caleidoscópio, que corresponde ao elemento invariante dos limites de que falávamos há pouco) projetam modelos de inteligibilidade de algum modo provisórios (LÉVI-STRAUSS, [1962] 2012, p. 52-53).

 

Princípios para um estruturalismo

É dessa maneira de pensar a linguagem que surge o método estruturalista, que

[...] dá especial atenção às classificações, às ordens, aos arranjos; seu objeto essencial é a taxonomia, ou modelo distributivo estabelecido (BARTHES, [1967] 2012, p. 7).

Esse método funciona a partir de elementos “formando um conjunto covariante” (LACAN, [1956] 2002, p. 210). Lévi-Strauss dá à linguística uma posição especial entre as ciências sociais, a considera a única a estabelecer um método científico, justamente pelo desenvolvimento do estruturalismo.

O signo, elemento da língua, não faz a união entre a palavra e a coisa, mas sim entre o conceito e a imagem acústica. Deve-se entender que o termo imagem acústica não diz respeito apenas à representação dos sons de uma palavra.

Para Saussure ([1907-1910] 2006), a imagem acústica é a representação natural da palavra na língua, fora de sua realização pela fala. Logo, todo fenômeno envolvendo a palavra, inclusive o aspecto motor, pode ser subentendido nesse termo. Dessa junção surgem os signos, por exemplo, ‘árvore’, que só se torna signo justamente porque a imagem acústica da palavra está associada a seu conceito.

Saussure ([1907-1910] 2006) substitui os termos conceito e imagem acústica respectivamente por ‘significado’ e ‘significante’, por confusões comuns que se fazem entre ‘imagem acústica’ e ‘signo’. Estabelece também duas características fundamentais na linguagem: a arbitrariedade do signo e o caráter linear do significante.

A arbitrariedade é evidente pelos vários idiomas que existem. Quando diz arbitrário, no entanto, Saussure não quer dizer que o significado depende da livre escolha daquele que fala; quer dizer que o significante é imotivado, ou seja, é arbitrário em relação ao significado. Eles não têm nenhuma relação natural com a realidade. O significante não expressa seu significado senão por uma convenção, uma regra aceita.

Sobre o segundo principio, Saussure ([1907-1910] 2006) diz que, como o significante é de natureza auditiva (o que não significa dizer que ele é unicamente auditivo), ele se desenvolve no tempo. Assim, ele representa uma extensão, e tal extensão só é mensurável numa única dimensão: uma linha.

Apesar da evidência e da simplicidade desse princípio, ele sempre foi negligenciado, embora tenha importância fundamental e suas consequências são incalculáveis. Todo mecanismo da língua depende dele. Em oposição aos significantes visuais, o significante acústico dispõe unicamente da linha do tempo; seus elementos se apresentam um após o outro, formando uma cadeia de significantes.

Saussure ([1907-1910] 2006) atribui também outras qualidades à língua: a imutabilidade e a mutabilidade do signo. Sobre a imutabilidade, Saussure ([1907-1910] 2006) diz que, a partir da formação do signo, ou seja, da correlação criada entre significante e significado, não existe a possibilidade de mudá-lo.

Diz-se a língua: “Escolhe!”; mas acrescenta-se: “O signo será este, não outro.” Um indivíduo não somente seria incapaz, se quisesse, de modificar em qualquer ponto a escolha feita, como também a própria massa não pode exercer sua soberania sobre uma única palavra: está atada a língua tal qual é (SAUSSURE, [1907-1910] 2006, p. 85).

Pode-se falar, junto à imutabilidade, a respeito da qualidade mutável do signo. O tempo, que assegura a continuidade da língua, também se responsabiliza por transformá-la. Nesse sentido, as qualidades de imutabilidade e mutabilidade do signo não são de maneira alguma paradoxais ou contraditórias.

Não se pode censurar Saussure por um pensamento sem lógica. Pela oposição desses dois termos marcantes, o que ele postula é que a língua se transforma sem que os indivíduos possam transformá-la à sua vontade. Diz-se, então, que a língua é intangível, mas nem por isso inalterável (SAUSSURE, [1907] 2006). É a ação do tempo combinado com a força da ação social que transforma a língua.

Ela já não é mais livre, pois

[...] o tempo permitirá as forças sociais que atuam sobre ela desenvolver seus efeitos, e chegasse assim ao principio de continuidade, que anula a liberdade (SAUSSURE, [1907-1910] 2006, p. 93).

A linguagem, como um sistema de signos, parece ser uma proposição evidente e fundamental. O sentido que se deve atribuir a essa proposição e sobre a palavra signo cabe à teoria em questão. Hjelmslev ([1943] 2013) aponta que tradicionalmente um ‘signo’, uma ‘expressão de um signo’, é signo ‘de’ alguma outra coisa. Essa particularidade de um signo ser signo de alguma coisa aponta que ele se define por uma função.

 

Freud conversa com Saussure

A semelhança da teoria da linguagem de Freud com a de Saussure é inegável. Freud já estudava a respeito desse tema em sua monografia a respeito das afasias ([1891] 2013).

Nela ele mostrava um importante esquema que retrata seu funcionamento e seu aprendizado:

• O aprendizado da fala pela associação de uma imagem sonora de uma palavra com o sentido da inervação de uma palavra.
• O aprendizado da língua de outras pessoas pelo esforço de tornar a imagem sonora produzida igual à que deu lugar à inervação da fala.
• O aprendizado do soletrar pelo ligamento das imagens visuais das letras a novas imagens sonoras que lembram sons verbais já conhecidos.
• O aprendizado da leitura que se dá pela sucessão de apresentações inervatórias e motoras da palavra que se recebe quando se enuncia letras isoladas (parte-se do aprendizado de soletrar).
• O aprendizado da escrita, reproduzindo imagens visuais por meio de imagens inervatórias da mão.

Também em sua monografia, Freud ([1891] 2013) já fazia a divisão ‘representação-de-palavra’/‘representação-de-objeto’, que aparecerá novamente em suas obras posteriores, de maneira diferenciada. Com essa divisão, ele explica como a palavra se relaciona com o mundo, como ela se enquadra à realidade nessa operação de nomeação. Assim, o autor demonstra que as ‘representações-de-objeto’ são sempre abertas em comparação à ‘representação-de-palavra’, que é fechada.

De acordo com Arnao (2008), Freud pensava a partir conceito tradicional de representação, advindo da filosofia kantiana, conceito que diz que a representação é como o fenômeno se apresenta, a forma como ele aparece, distinto da simples apresentação de alguma coisa. A representação se dá, então, pela percepção de um sujeito cognoscente do mundo externo, fazendo, assim, uma separação de sujeito e objeto, já proposta pela filosofia tradicional de seu tempo.

Outro momento em que Freud fala melhor a respeito do aprendizado da linguagem e da representação das palavras e das coisas é em sua carta a Fliess, de 06 de dezembro de 1896 (1996).

Freud postula a existência de três registros que acreditava realizar a passagem do corpo para o córtex, ou seja, percepções externas sentidas pelo corpo, que são apreendidas e levadas para o âmbito interno, o córtex: as indicações de percepção (Wz), que é o primeiro registro das percepções; a inconsciência (Ub), que corresponde às lembranças conceituais, e que, como o primeiro registro, não tem acesso à consciência; a pré-consciência (Vb), que é o terceiro registro, ligado às representações verbais. Esse registro já tem acesso à consciência. Os registros, ou sistemas, inconsciente, pré-consciente e consciente reapareceram nos artigos metapsicológicos.

Freud diz que, com a elaboração desses três sistemas psíquicos, a psicanálise se distancia da psicologia descritiva da consciência, “[...] formulando novas perguntas e agregando novo conteúdo ao nosso acervo de conhecimento” (FREUD, [1915] 2006, p. 26).

Já na primeira sessão do artigo, ele explica a importância da introdução do conceito de inconsciente na psicanálise. É uma nova maneira de pensar a representação psíquica.

 

O inconsciente quase estruturado como linguagem

Freud ([1915] 2006) descreve o inconsciente como um sistema que se caracteriza pela ausência de contradição, processo primário, ou seja, mobilidade das cargas de investimento, atemporalidade e, finalmente, substituição da realidade externa pela realidade psíquica. Os processos inconscientes são imperceptíveis porque são velados pelo sistema pré-consciente. Só o sistema pré-consciente tem acesso à consciência, logo controla as vias para esse acesso. Apenas quando o sistema pré-consciente passa por um processo de rebaixamento, em outras palavras, processo de regressão, é que há um acesso a esses processos contemplados nos sonhos e nas neuroses.

Falamos em “regressão” quando, num sonho, uma representação é transformada novamente na imagem sensorial de que originalmente derivou. Mas até mesmo esse passo requer uma justificação. Qual é o sentido dessa nomenclatura, se não nos ensina nada de novo? Creio que o nome “regressão” nos é útil na medida em que liga um fato que já nos era conhecido a nosso quadro esquemático, no qual se deu ao aparelho psíquico um sentido ou direção. E é nesse ponto que a construção desse quadro começa a recompensar. É que ao examiná-lo, sem qualquer reflexão adicional, descobrimos outra característica da formação dos sonhos. Se encararmos o processo onírico como uma regressão que ocorre em nosso hipotético aparelho mental, chegaremos sem demora à explicação do fato empiricamente comprovado de que todas as relações lógicas pertencentes aos pensamentos oníricos desaparecem durante a atividade onírica, ou só conseguem expressar-se com dificuldade (FREUD, [1900] 2001, p. 464).

Pode-se dizer que o sistema pré-consciente é aquele que

[...] viabiliza o trânsito entre os conteúdos das ideias, de modo que elas possam comunicar-se e influenciar-se mutuamente (FREUD, [1915] 2006, p. 39).

Também é ele que insere uma ordem temporal aos conteúdos ideacionais, algo inexistente no sistema inconsciente, assim como introduzir uma ou várias censuras e submeter tais ideias ao teste de realidade ou princípio de realidade. O trânsito dessas ideias é muitas vezes impedido pelo recalque. Freud toma o recalque como uma retirada de carga de investimento (que ele nomeia de libido) de uma ideia que estava contida no sistema pré-consciente (e em alguns casos, até mesmo na consciência), fazendo, assim, a ideia ficar vazia de carga ou receber uma carga do sistema inconsciente, ou mesmo manter uma carga inconsciente que já possuía (FREUD, [1915] 2006). Com essas descrições, Freud caracteriza a teoria psicanalítica como tópica, funcional e econômica.

Na última sessão do artigo, Freud ([1915] 2006) finalmente introduz os conceitos de ‘representação-da-coisa’ e ‘representação-da-palavra’, que atrelados, correlacionados, trazem a ‘representação-do-objeto’. A ‘representação-de-coisa’ consiste no investimento de cargas, traços de lembrança que estão mais distantes e que derivam de lembranças. A ‘representação-de-coisa’ faz parte do sistema inconsciente, enquanto a ‘representação-de-palavra’ atrelada ou, como diz Freud, sobreinvestida na ‘representação-de-coisa’ corresponde ao sistema pré-consciente e à consciência.

Fica agora então claro como uma ideia consciente se diferencia de uma inconsciente. As duas não são, como pensávamos, diferentes registros do mesmo conteúdo situados em locais psíquicos diferentes. Tampouco são diferentes estados funcionais de investimentos de carga aplicados ao mesmo local. Uma representação [Vorstellung] consciente abrange a representação-de-coisa [Sachvorstellung] acrescida da representação-de-palavra [Wortvorstellung] correspondente, ao passo que a representação [Vorstellung] inconsciente é somente a representação-de-coisa. O sistema Ics contém os investimentos de carga referentes à coisa [Sache] que faz parte do objeto; na verdade, estes são os primeiros e verdadeiros investimentos de carga no objeto. Quanto ao sistema Pcs, este surge quando essa representação-de-coisa, ao ser vinculada às representações-de-palavra que lhe correspondem, recebe uma camada de sobreinvestimento de carga [Überbesetzung]. Assim, podemos supor que são os tais sobre-investimentos de carga [Überbesetzungen] o fator que leva a uma organização mais elevada e possibilita a substituição do processo primário pelo processo secundário dominante no Pcs (FREUD, [1915] 2006, p. 49).

Freud tenta mostrar, a partir desses textos, em destaque O inconsciente, que o registro da representação-de-coisa faz parte do sistema inconsciente, e que a ‘representação-de-coisa’ e a ‘representação-de-palavra’, formando a ‘representação-de-objeto’ acontece no sistema pré-consciente/consciente.

Assim, pode-se deduzir que o inconsciente freudiano é imaginário, no sentido de ser composto por imagens, uma cadeia imagética – o que não significa dizer que imagens são compostas apenas de aparência. Uma imagem pode ser sonora, sensitiva, etc.

De acordo com Caropreso e Simanke (2006), Freud já vinha se perguntando a respeito da representação consciente e da representação inconsciente.

Ao longo dos artigos metapsicológicos de 1915, Freud se pergunta, em diversos momentos, sobre em que consistiria afinal a diferenciação entre uma representação consciente e uma inconsciente e sobre o que acontece efetivamente quando uma representação passa de um estado a outro; pergunta-se, enfim, se esta corresponderia a uma distinção “tópica” – isto é, se haveria duas inscrições de uma mesma representação em dois lugares psíquicos distintos – ou se corresponderia a uma distinção “funcional”, o que significaria que tal diferenciação corresponde a dois modos de ocupação diferentes de uma mesma representação (CAROPRESO; SIMANKE, 2006, p. 107).

Segundo Arnao (2008), é nos Ensaios metapsicológicos que Freud propõe uma ruptura com a tradição filosófica de sua época, ao reintroduzir os conceitos de representação, palavra e coisa, não em relação a uma dependência e submissão à realidade exterior, mas referida a um em si psíquico.

Freud reintroduz a distinção representação de palavra/representação de coisa em “O inconsciente” (idem) para dar conta da problemática relação entre representações inconscientes e representações conscientes. Estas representações de coisa constituem o conteúdo do inconsciente; na condição de Vorstellungen seu conteúdo é representacional. Freud introduz uma variação significativa a propósito do trabalho de 1891. A representação de objetos da qual se ocupara no trabalho sobre as afasias era uma representação de objetos externos, pertencentes à realidade material. Estando preocupado agora com a realidade psíquica, os termos reintroduzidos adquirem outra aplicação (ARNAO, 2008, p. 196).

A maneira como Freud descreve o aprendizado da língua, os conceitos que utiliza, tem definições parecidas com os conceitos de Saussure, se compararmos, por exemplo, conceitos como ‘representação-de-coisa’ com significado, representação-de-palavra com significantes, ‘representação-de-objeto’ com signo. Certamente, Saussure não elaborou um esquema tópico e econômico, na medida em que não trabalhava com questões como investimentos libidinais, assim como Freud. No entanto, ele elabora um esquema funcional. Saussure tenta trazer uma explicação da funcionalidade da linguagem. Isso se dá pelo fato de os dois teóricos terem [porque os dois teóricos têm] objetos de estudo diferentes: Freud se dedica ao estudo do psiquismo, em que a linguagem é um dos elementos que o compõem. Já Saussure se dedica unicamente ao estudo da linguagem, que poderia apenas ter um caráter funcional em sua percepção.

Lacan ([1959] 1997) perceberia essa semelhança entre as teorias, podendo trazer o axioma “o inconsciente é estruturado como linguagem” para a psicanálise.

[...] ao dar a solução que ele parece propor opondo Wortvorstellung a Sachvorstellung, há uma dificuldade, um impasse que o próprio Freud ressalta e que explica pelo estado linguístico de sua época. No entanto, ele compreendeu admiravelmente e formulou a distinção a ser feita entre a operação da linguagem como função, ou seja, no momento em que ela se articula e desempenha, com efeito, um papel essencial no pré-consciente da linguagem, segundo a qual os elementos colocando em jogo no inconsciente se ordenam (LACAN, [1959] 1997, p. 60).

Ao se referir ao estado linguístico da época de Freud, assim como as dificuldades que ela apresentava, Lacan ([1958] 1998) diz do fato de que, no início das elaborações teóricas de Freud, não havia nada, em relação à linguística, que correspondesse ao seu objeto, que tivesse a mesma maturidade científica. Assim, Freud se antecipou muito em relação ao estruturalismo de Saussure, sendo semelhante a ele. Apesar da semelhança o estruturalismo apresenta diferenças significativas em relação à visão psicanalítica freudiana. Muitos que seguiram o estruturalismo de Saussure para falar da linguagem vem trazer a ideia de que ela é um fenômeno inconsciente.

Para Lévi-Strauss ([1949a] 2008), a diferença entre o historiador e o etnólogo é que o primeiro estuda fenômenos culturais, estes sempre conscientes, enquanto o etnólogo estuda fenômenos linguísticos, estes, por sua vez, nem sempre conscientes.

Barthes ([1967] 2012) considera a linguagem como algo intrínseco ao sujeito, dizendo que não há um estado em que o ser humano estivesse separado dela. Afirma ainda que não é o homem que ensina sobre a definição da linguagem, mas ao contrário, é ela que ensina a definição de homem.

Lacan ([1955] 1998, p. 14) também diz que

[...] é a ordem simbólica que é constituinte para o sujeito, demonstrando-lhes numa história a determinação fundamental que o sujeito recebe do percurso de um significante.

[...] o deslocamento do significante determina os sujeitos em seus atos, seu destino, suas recusas, suas cegueiras, seu sucesso e sua sorte, não obstante seus dons inatos e sua posição social, sem levar em conta o caráter ou o sexo, e que por bem ou por mal seguirá o rumo do significante, como armas e bagagens, tudo aquilo que é da ordem do dado psicológico (LACAN, [1958] 1998, p. 33-34).

Para Freud ([1915] 2006), no entanto, isso não é verdadeiro. Admite que o sujeito passa pelo aprendizado da linguagem na medida em que está inserido nela, mas é apenas no sistema pré-consciente/inconsciente que as ‘representações-de-coisa’ se ligam com ‘representações-de-palavra’, como já demonstrado, e não no sistema inconsciente. O sistema inconsciente freudiano se compõe de imagens, apenas de ‘representações-de-coisa’ e não de significantes ou signos. Logo o registro da língua/linguagem seria consciente, não inconsciente. Não é o inconsciente que é estruturado como uma linguagem. O que é estruturado como linguagem é todo o aparelho psíquico, tornando mais profundas as reflexões de Freud sobre consciente e inconsciente.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: alvo.oliveira@gmail.com

Recebido em: 14/08/2017
Aprovado em: 01/09/2017

 

Sobre o autor

Alvaro Oliveira
Psicólogo.
Mestre em psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais na linha de pesquisa Psicanálise, teoria e clínica.
Pesquisador do Laboratório Psicanálise e Laço Social no Contemporâneo (PSILACS). Psicanalista em formação no Circulo Psicanalítico de Minas Gerais.

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