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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.39 no.74 Belo Horizonte Dec. 2017

 

Teoria e Clínica Psicanalítica

 

O feminino e a perspectiva lacaniana de superação da lógica fálica

 

The feminine and the lacanian perspective of overcoming the phallic logic

 

 

Angela Cristina da Silva; Kátia Alexsandra dos SantosI

I Universidade Estadual do Centro-Oeste

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A relação entre a psicanálise e as teorias de gênero nunca foi muito tranquila. Apesar de não pretender adentrar esses campos epistemologicamente opostos, este artigo se propõe a discutir a questão do feminino a partir da perspectiva psicanalítica, notadamente no que diz respeito ao postulado lacaniano de superação da lógica fálica. Para isso, ele aborda como elemento de discussão um texto de Eliane Brum, em que a autora fala sobre o horror dos expectadores perante o quadro A origem do mundo, de Gustave Coubert. Acredita-se que o horror se remete à especificidade do feminino como mascarada e como possibilidade de se colocar além da lógica fálica.

Palavras-chave: Feminino, Psicanálise, Lógica fálica.


ABSTRACT

The relation between psychoanalysis and the theories of gender was never too easy. Even not intending to enter these epistemologically opposite fields, this article aims to discuss the matter of the feminine from the psychoanalytic perspective, particularly with regard to the lacanian postulate of overcoming the phallic logic. For this, we bring a text from Eliane Brum as an element of discussion, in which she speaks about the horror of expectators towards the framework called The origin of the world, by Gustave Coubert. We believe this horror refers to the specificity of the feminine as masked and as bearer of the possibility to be put beyond the phallic logic.

Keywords: Feminine, Psychoanalysis, Phallic logic.


 

Em A feminilidade ([1933] 2010), Freud se volta para a questão do feminino a partir do significante enigma. Nesse texto, ele refuta a perspectiva biológica sobre o feminino e o masculino, afirmando a ineficiência da anatomia em construir uma solução de desvelamento sobre o assunto.

Ainda que no início do texto questione como poderia a mulher “[...] se desenvolver a partir da criança inatamente bissexual” (FREUD, [1933] 2010, p. 269, grifo nosso), ao avançar em sua explanação, Freud parte da lógica menino/menina (e não da criança bissexual) para explicitar o desenvolvimento da masculinidade/feminilidade. No decorrer do texto, através da articulação edípica, Freud retoma a evolução pela qual a menina, num processo de mudança não apenas em relação ao seu objeto de amor, mas também de sua zona erógena, se torna mulher a partir da inveja do pênis, além de abordar a feminilidade pelo predomínio do narcisismo que situa a mulher em uma posição fálica, cujas consequências estariam presentes na própria constituição do supereu feminino, considerado brando, ineficaz, menos fortalecido por causa de sua formação, conforme pontua a citação abaixo:

Com a ausência do medo da castração, falta o motivo principal que impeliu o garoto a superar o complexo de Édipo. A menina permanece nele por tempo indefinido; desmonta-o mais tarde apenas, e mesmo então incompletamente. A formação do supereu tem de sofrer nestas circunstâncias, ele não pode alcançar a fortaleza e a independência que lhe dão a sua importância cultural – e as feministas não gostam quando apontamos os efeitos desses fatos para o caráter feminino mediano (FREUD, [1933] 2010, p. 286).

Para começar a articular algumas ideias sobre a temática do feminino, partimos da afirmação de Freud quanto às feministas “não gostarem” de concepções que situam o caráter feminino avesso, em algum grau, às demandas civilizatórias.

As razões dessa escolha se devem a algo com que Marie-Hélène Brousse (2012) inicia sua fala na conferência cujo tema circunda justamente a pergunta “O que é uma mulher?”. Ela diz que esse é um assunto ideologicamente delicado, justamente por esbarrar em estereótipos e preconceitos. Essas três palavras – ideologicamente, estereótipos e preconceitos – estão muito presentes nas inúmeras construções sociais que se faz sobre este tema, e aí residiria a grande dificuldade de abordá-lo por um viés que o retira da lógica em que os homens estariam do lado dominante, e as mulheres, do lado dominado.

O que Brousse aponta diz respeito ao sujeito do inconsciente em relação à questão a que ela é demandada a responder a partir de um discurso analítico, marginalizado por aquilo que ela chama de uma heterodoxia dominante que, facilmente, poderia tomar a sua fala como ortodoxa. A ironia disso reside no fato de a psicanálise, em sua própria trajetória, nunca ter estado ao lado do poder dominante. A fala de Brousse retoma, em alguma medida, a afirmação de Freud sobre o posicionamento feminista em relação ao que a psicanálise tem a dizer sobre a feminilidade.

Da famigerada noção da mulher como aquela que não tem o falo e portanto o inveja, leitura que rendeu (e ainda rende) muito repulsa ao texto freudiano, passamos às contribuições de Lacan acerca do feminino.

Essas contribuições situam-se notadamente no Seminário 20, mais ainda (LACAN, [1972-1973] 2008), mas estão em sua obra, a começar pela tese de doutoramento Da psicose paranoica e sua relação com a personalidade (LACAN, [1932] 1987), bem como no texto Motivos do crime paranoico: o crime das irmãs Papins (LACAN, [1933] 1987), no qual discute o famoso caso das irmãs que assassinaram brutalmente as patroas.

Começando, então, pela discussão da psicose feminina, Lacan traz algumas formulações que nos permitem ver a mulher não apenas como ser castrado, marcado pela falta, mas como portador de algo a mais, a saber, um gozo a mais. A figura da mulher, em Lacan, se coloca como revolucionária, criadora.

Para Lacan,

[...] a mulher mascara o real do vazio do seu sexo para ser objeto fálico da fantasia masculina sob a forma de um artifício, sugerindo, além do véu que encobre a sua castração, uma feminilidade misteriosa- um falo misterioso (NERI, 2005, p. 202).

A posição estruturalista de Lacan permite olhar a questão da diferença entre os sexos a partir da ideia fundamental do desconhecimento em relação ao outro sexo: “Mas o que é verdadeiro é que o parceiro do outro sexo resta sendo, o Outro” (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 129). Assim, o enigma sexual se coloca na relação com a linguagem, com aquilo que entra no lugar de e, por isso, nos falta. A diferença entre o feminino e o masculino se coloca, então, por oposição.

Desses postulados, Lacan partirá para a sistematização das fórmulas da sexuação, conforme podemos verificar a seguir:

FIGURA 1 – Fórmulas da sexuação
(LACAN, [1972-1973] 2008, p. 84)

Tais fórmulas organizam o posicionamento feminino e o masculino com base em uma matriz (fálica); o lado masculino, fundado por uma exceção marcada pela fórmula . Já a posição feminina não parte dessa exceção do conjunto, que seria o pai da horda primeva, descrito por Freud, em Totem e tabu ([1913] 1974) para designar o único homem que tem acesso a todas as mulheres. A posição feminina seria marcada pela não exceção a essa regra: todas se constituem pela lógica fálica, o que se materializa na fórmula . Contudo, as mulheres não se colocam todas na função fálica por um motivo bastante paradoxal: o fato de não haver uma exceção para poder perpetuar a regra, como ocorre com o lado masculino.

No que se refere a essa questão dos conjuntos e sua constituição pela exceção, no Seminário 16: de um Outro ao outro, Lacan ([1968-1969] 2008) nos diz que o 1 sempre vem acompanhado de a, isto é, que 1= 1+a. Desse modo, não existe unidade sem que algo fique de fora, pois o que fica de fora é da ordem do real. A essência do homem, como conjunto, é definida pela função fálica, que impõe a castração, implicando a existência de um pai (da horda primeva).

Quanto às mulheres, por não se constituírem a partir de uma exceção, e se colocarem de forma não-toda em relação à ordem simbólica (cremos que essa afirmação tenha relação com o superego permissivo apontado por Freud), carregam a possibilidade de “escapar” em alguns momentos do registro fálico, apresentando a possibilidade de um gozo a mais.

Conforme Lacan ([1972-1973] 2008, p. 79)

[...] é justamente pelo fato de que, por ser não-toda, ela tem, em relação ao que designa de gozo a função fálica, um gozo suplementar.

Portanto, as mulheres (sempre no singular, como bem nos lembra o autor) ao se colocarem como não-todas na função fálica, têm a possibilidade de um gozo a mais, além do gozo fálico, o gozo possível para os seres que se alinham totalmente na lógica fálica:

[...] quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 78-79).

Desse modo, as fórmulas da sexuação, ao nosso ver, produzem um profundo deslocamento na compreensão da (não) relação entre o feminino e o masculino, uma vez que colocam essa diferença não em relação ao aspecto biológico, tampouco de gênero, mas enquanto posições em relação à linguagem. Da mesma forma, permitem ver a falta da mulher em relação ao falo como não necessariamente invejosa, negativa, mas como um elemento a mais, uma possibilidade a mais de acesso a um gozo além do gozo fálico.

Haveria, então, do lado da psicanálise, um argumento capaz de sustentar sua posição quanto à temática do feminino e da feminilidade, enquanto oposta à ordem estabelecida (compreendendo essa ordem como falocêntrica e antifeminista)? A fala de Marie-Hélène Brousse (2012) parece justamente indicar nessa direção. E, para tentar circunscrever essas questões, recorreremos neste trabalho a outras referências que não se situam no campo da psicanálise, mas que nos ajudaram a articular as elaborações que se situam entre as discussões de gênero, mais especificamente ligadas ao feminino, e as discussões possíveis de empreender a esse respeito a partir da psicanálise.

Em sua coluna da revista Época, a jornalista Eliane Brum publicou o seguinte texto: Por que a imagem da vagina provoca horror?.1 Sua motivação teria partido da reação de sua empregada quando se deparou com uma imagem do quadro A origem do mundo, de Gustave Coubert (l’Origine du monde, 1866):

– É o fim do mundo!
Eu estava no quarto e saí correndo, alarmada, para ver o que tinha acontecido. Encontrei Emilia, a mulher que limpa nossa casa uma vez por semana, com o rosto tomado por um vermelho sanguíneo, diante de A origem do mundo, que, ainda sem lugar na parede, jazia encostado em um armário.
– É o fim do mundo! – gritava ela, descontrolada. – Nunca pensei ver algo assim na minha vida! Eliane, que coisa horrível!
Meio atordoada, eu repetia: “Não é o fim do mundo, é o começo!” (BRUM, 2012, s/p).

Emília se horroriza com uma visão que, desde o título do quadro, remete a uma origem, não a um fim. Brum (2012), ao recontar a história do quadro e de seus donos, encontra-se com Lacan, último proprietário, e que tinha sobre ele uma teoria: o estranhamento que causava estava relacionado não à falta de um falo (que uma leitura equivocada da obra de Freud faria equivaler a pênis), mas a uma presença do falo no centro do quadro, além de ele remeter, conforme pontua Roudinesco (2011) a uma mãe-crocodilo, engolidora do ser que permitiu nascer:

FIGURA 2 – L’origine du monde
[A origem do mundo], de Gustave Courbet, 1866.

São duas perspectivas interessantes para pensar a exposição de Brousse (2012), pois ela inicia sua fala pela exclusão de significantes identificatórios que diriam algo sobre a mulher: nem mãe, nem esposa, nem santa, nem puta, nem feiticeira. A problematização que a psicanálise faz em relação ao ser mulher consta desde suas origens. Abordar a feminilidade pela via da psicanálise nos remete às experiências pré-analíticas de Freud com as pacientes apresentadas em Estudos sobre a histeria ([1895] 1996). Ao final de sua fala, Brousse (2012) afirma que o gozo feminino não se reivindica, mas acontece.

Se retomarmos a trajetória freudiana em que ele se reposiciona de um saber médico à posição de analista, compreenderemos de que natureza se trata tal “acontecer” do gozo feminino: é da natureza de uma imposição. Daí podermos situar a psicanálise como se tivesse nascido da pergunta “o que é uma mulher?”.

A autora pontua que, para Lacan, o “ser homem” e o “ser mulher” centram a questão no discurso e, por isso, tal posicionamento se dá via linguagem, de modo que a posição feminina ou masculina (diferentemente da biologia, que separa macho e fêmea a partir de gametas) diferencia-se pelo discurso através do qual se escolhe localizar-se. Tal “escolha” é entendida por ele a partir dos respectivos gozos envolvidos em cada uma delas. Para ir além da constatação edípica de Freud, Lacan ([1972-1973] 2008) a entende a partir de um gozo Outro, mais-além do Édipo.

Para articular as construções que Lacan realiza em relação a esse gozo Outro, Brousse (2012) afirma que a feminilidade se encontra encerrada em três níveis de aparência. O primeiro deles é o biológico, que alia funções relacionadas à “natureza” e aquelas estabelecidas do ponto de vista social, como o desempenho dito “instintivo” da relação materna. Esse primeiro nível é desmontado pela psicanálise quando a questão ‘ser mãe’ para ‘ser mulher’ surge como demanda de análise.

A leitura de Lacan sobre A origem do mundo como uma mãe evidencia esse paradoxo. Afinal, a figura sem cabeça e sem braços, que é retratada no quadro, não remete a uma mãe que abre as pernas para parir. Sua concepção é de uma mãe-crocodilo, pronta para devorar, mas devorar o quê?

Quanto a isso que remete ao devorar, cabe retomar o texto de Joan Rivière A feminilidade como máscara (2005), citado por Brousse (2012) para falar sobre o segundo nível de aparência. Rivière (2005, p. 14) aborda a feminilidade a partir deste significante – máscara –, que serviria como evitação à “[...] ansiedade diante da vingança temida dos homens”.

Assim, a máscara seria um meio de apaziguar o vingador e teria um papel duplo: montar o furo no campo do Outro, evidenciando a castração e um modo de proteger-se contra a ira diante da castração. A mascarada ocupa o lugar de falo para o Outro, colocando-se, assim, num lugar em que o Outro não temeria perder o poder. A ira diante da castração seria, então, aplacada pelo fato de a mascarada representar (não) ter o falo, uma falseta que poderia ser expressa como: “Eu sou só uma mulher”.

A perspectiva apresentada por Brousse (2012) a partir do texto de Rivière (2005) é de que a mascarada é o feminino. A autora afirma que,

[...] para aceder à dimensão da sexualidade, todo sujeito humano tem que passar de um ser a um ‘parecer’ (BROUSSE, 2012, p. 8),

Isso indica que a dimensão metafórica da linguagem provoca uma desrealização, em que o real biológico se perde, permitindo, ao sujeito ascender ao circuito do terceiro nível de aparência citado por Brousse que é o nível do semblante, que ela tem cuidado para não opor ao que é autêntico, já que através dos semblantes se constituem os laços entre os sujeitos humanos. Vivemos num mundo de semblantes, porque vivemos num mundo de linguagem, de tal modo que a questão do desejo passa necessariamente pela via do semblante, que seria uma categoria inventada pela psicanálise para retirar a feminilidade de uma posição generalizada no conjunto dos sujeitos humanos. O semblante permitiria uma articulação diferenciada entre real e simbólico.

Assim, a máscara encerra as chamadas insígnias femininas, que podem ser transmitidas de uma mulher à outra através de objetos que tocam o corpo feminino e o identificam a partir de critérios ideais, uma vez que tais objetos se aproximam metonimicamente do desejo. O semblante, no entanto, não carregaria essa perspectiva.

Tais objetos, que encarnam um lugar que Brousse (2012) situa entre o fetiche e o significante, agrupam uma categoria que, pela perspectiva freudiana, pode ser chamada de falo, significante ordenador do desejo. Em sua exposição, a autora pontua que Lacan se dedica a evidenciar a não correspondência entre pênis e falo, situando o falo enquanto significante de desejo para os dois sexos a ponto de inscrever “[...] a sexualidade humana no registro de uma transmissão” (BROUSSE, 2012, p. 11).

A função fálica, portanto, se evidencia por atuar na constituição da sexualidade humana como garantia de vida, por isso de desejo, o que explica a afirmação de Lacan citado por Roudinesco (2011) sobre a existência do falo no centro da figura do quadro de Coubert. Isso indica que, sob a perspectiva da sexualidade concebida a partir da linguagem, haveria um significante para os dois sexos.

O questionamento que Marie-Hélène Brousse (2012) desenvolve é como dois posicionamentos surgem de um significante, remetendo-se à concepção freudiana de acordo com a qual a diferença se encontra a partir de duas posições: ter e ser o falo, o que situa o menino ao lado do fetiche (ter) e a menina ao lado da erotomania (ser).

Diferente de Freud, que “[...] para no ponto de contradição que define o feminino pela referência fálica e unicamente por ela, ou seja, em função da castração” (BROUSSE, 2012, p. 14), Lacan ([1973-1972] 2008) avança ao considerar a questão do feminino não unicamente através da lógica ter/ser, mas pela questão do gozo, que põe em questão o universal feminino nomeado por Freud em A feminilidade ([1933] 2010) como uma universalidade enigmática presente em construções como “ninguém entende as mulheres”.

A acepção de que “a mulher não existe” apresentada no Seminário 20, mais ainda ([1973-1972] 2008) resulta do posicionamento em que Lacan retoma Totem e tabu (FREUD, [1913] 1974), a partir da sujeição do homem à lógica da castração que se evidencia pela existência de “ao menos um”, o pai, que não seria castrado, como descrevemos anteriormente ao falar das fórmulas da sexuação. A ausência de uma castração completa na mulher se daria pela inexistência de uma versão feminina do mito, demonstrando uma ‘não-exceção’ que identificaria a mulher como não-toda.

O horror de Emília, dessa forma, não se deveria ao fato de ela se deparar com a ferida aberta de uma castração, conforme pontua Freud quando se remete à sexualidade feminina vinculada à inveja do pênis. Mas com uma castração que se deu não-toda. A mulher não existe, mas se conta uma a uma, e se inscreve via singularidades, diferentemente do universal freudiano ter/ser o falo que organizaria a sexualidade masculina.

A novidade lacaniana seria apresentar um novo modelo, de acordo com o qual parte da sexualidade humana responde à castração (e se coloca a partir das insígnias identificatórias), enquanto outra parte não responde a essa lógica. Assim, todos os seres falantes, diz Brousse (2012), respondem à lógica do desejo (que é da castração), mas alguns respondem à lógica do gozo, expressa no registro da linguagem e, por isso, do semblante, que é fundada na fantasia.

Esse gozo seria suplementar ao gozo sexual clássico, portanto não estaria ligado a um órgão, o que situa a posição feminina para além da função paterna, não inteiramente inscrita sob a égide do Nome-do-Pai, de modo que esse tipo de gozo jamais seria totalmente simbolizável, inclusive, jamais simbolizável pelo viés dos ideais identificatórios, tampouco aos ideais registrados pelas relações de poder, uma vez que, repetindo a frase utilizada para localizar a importância das histéricas no nascimento da psicanálise, “[...] o gozo feminino não se reivindica, acontece” (BROUSSE, 2012, p. 20).

Cabe lembrar que, mesmo em posse de Lacan, a obra de Coubert permanecia escondida sob um véu, e para Eliane Brum (2012) na verdade esse véu seria duplo:

A obra de Courbet sempre foi oculta por uma outra pintura. Ou cortina. Exceto agora, que a exibição no museu deu a ela uma espécie de salvo-conduto, por ser ali “o lugar certo”. De algum modo, até então, a vagina mais famosa da História da Arte fora coberta por um véu – além do véu representado pela própria pintura (BRUM, 2012, s/p).

O que Brum (2012) salienta é que, apesar das tentativas de nos afastarmos do real através de subterfúgios, ou insígnias, a obra se torna arte por ter uma função, com a qual

[...] ela nos transtorna sem a menor intenção de nos dar respostas – muito menos caminhos a seguir. [...] Não há sentimentos ‘certos’ ou ‘errados’ diante da expressão artística (BRUM, 2012, s/p).

E essa é uma afirmação que reitera a questão sobre o que é uma mulher a partir de uma ‘posição’ da mulher enquanto sujeito não atrelado de forma completa ao Nome-do-Pai, o que não a torna uma fora da lei, mas que possibilita a ela criar a partir da distância diferenciada e menos subordinada ao simbólico.

Cabe salientar que, quando se fala em mulher da perspectiva lacaniana das fórmulas de sexuação (LACAN, [1972-1973] 2008), não se está falando em um ser biológico feminino nem necessariamente a um ser que se alia ao que podemos chamar de gênero feminino. Estamos falando de um modo de constituir-se perante a linguagem, um modo de ser não-todo em relação à lógica fálica.

Considerando a relação intrínseca entre linguagem e lógica fálica, o horror em relação ao real do sexo feminino tem relação justamente com aquilo que caracteriza o feminino da perspectiva lacaniana de superação da lógica fálica, uma vez que o real do sexo feminino aponta literalmente para o furo, para a abertura sem contorno da vagina, para aquilo que se tem dificuldade de nomear e, por isso mesmo, está numa relação além da linguagem.

 

Referências

BROUSSE, M.-H. O que é uma mulher. Latusa Digital, Rio de Janeiro, ano 9, n. 49, jun. 2012. Publicação da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Rio de Janeiro.         [ Links ]

BRUM, E. Por que a imagem da vagina provoca horror? Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/06/por-que-imagem-da-vagina-provoca-horror.html. Acesso em: 20 jul. 2015.         [ Links ]

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LACAN, J. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro (1968-1969). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. (Campo Freudiano no Brasil).         [ Links ]

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ROUDINESCO, E. Lacan, a despeito de tudo e de todos. Tradução de André Telles. Revisão técnica de Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Angela Cristina da Silva
E-mail: angelacsilva@gmail.com

Kátia Alexsandra dos Santos
E-mail: kalexsandra@yahoo.com.br

Recebido em: 10/04/2017
Aprovado em: 01/09/2017

 

Sobre as autoras

Angela Cristina da Silva
Doutoranda em Psicologia.

Kátia Alexsandra dos Santos
Doutora em Psicologia.
Professora da Universidade Estadual do Centro-Oeste.

 

 

1 Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/06/por-que-imagem-da-vagina-provoca-horror.html. Acesso em: 20 jul. 2015.

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