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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.75 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

AUTOR CONVIDADO

 

Os ofícios impossíveis e o chamado do real

 

The impossible professions and the calling of the real

 

 

Paolo Lollo
Tradução:
Bernardo Maranhão
Revisão da tradução:
Carlos Antônio Andrade Mello

I Universidade de Paris 13
II Escola de Psicanálise Corpo Freudiano - Seção Paris

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Educar, psicanalisar e governar são ofícios impossíveis, segundo Freud. A difícil tarefa desses ofícios consiste em tentar responder ao chamado, à invocação do real. “O real é o impossível”, nos confirma Lacan, ou seja, “o que não cessa de não se escrever”. Como esses três ofícios são, então, capazes de desarmar a prisão do real, que impede toda escritura? Como sair do impossível e abrir para o possível? É por intermédio da letra Aleph que trataremos de compreender o mistério da passagem do silêncio à fala, que dá abertura para o mistério do alfabeto.

Palavras-chave: Educar, Psicanalisar, Governar, Profissões impossíveis, Impossível, Chamado do real, Invocação, Aleph, Mistério do alfabeto.


ABSTRACT

Education, psychoanalysis and government are impossible professions, according to Freud. The difficult task of such professions consists of trying to respond to the calling, the invocation of the real.. “The real is the impossible”, confirms Lacan, that is to say, “what does not cease from not writing itself”. Thus, how are these three professions capable of dismantling the prisons of the real, which impedes all scripture? How to exit the impossible and open to the possible? It is through the letter Aleph that we will try to comprehend the mystery of the passage from silence to speech, which opens a path to the mystery of the alphabet.

Keywords: Education, Psychoanalysis, Government, Impossible professions, Impossible, Calling of the real, Invocation, Aleph, Mystery of the alphabet


 

O impossível da Aleph

Aleph é a primeira das vinte e duas letras do alfabeto hebraico. É uma consoante, suporte de vogal, que não se pronuncia, mas abre no alfabeto uma sequência de letras pronunciáveis. Essas letras produzem sons: beit, guimel, dalet, he… A Aleph1 é o impossível de pronunciar que, no entanto, abre o caminho às outras letras e torna possíveis o alfabeto e o verbo.

No começo do alfabeto, há a Aleph, força silenciosa e enigmática, que põe em movimento o carro da linguagem e cria o mundo e a palavra. O primeiro versículo da Bíblia, “Bereshit Bara Elohim Et HaShamayim V’et HaAretz”, conta que, no começo do mundo, a entidade “deuses”2 criou o céu e a terra por um método bem singular: a separação das águas,3 que é, naquela ocasião, a primeira separação. Da mesma maneira, no começo da linguagem, a Aleph permite a criação do alfabeto por meio de um movimento de separação com relação à Beit e com relação aos sons e às letras que se seguem.

No princípio, há uma força silenciosa capaz de gerar o outro/Outro. Talvez sua potência criativa se deva ao fato de que ela se coloca como origem? Seu valor e sua qualidade se exprimem, ao mesmo tempo, numericamente. A Aleph, na língua hebraica, vale Um. Esse valor lhe dá uma força excepcional. Sua posição na ordem das letras, sua primazia, lhe confere o poder de criar ficando em silêncio: “Deus criou o céu e a terra”, sem dizer palavra. Ele os criou com um simples gesto.

Mas como isso foi possível? Como é possível que um silêncio, uma ausência, um impossível de dizer, seja a causa de tantas letras e palavras? Seria possível crer que se trata de um paradoxo: como se o máximo de silêncio pudesse engendrar o máximo de som, o vazio engendrar o pleno. É, com efeito, um paradoxo que, ligando o simbólico ao real, faz da Aleph uma força criadora de sentido. Sua ausência de determinação permite criar uma sequência de letras e oferece até mesmo a possibilidade de sequências infinitas. A partir desse vazio se encadeiam sequências de sons que são, elas mesmas, criadoras de significantes.

Segundo Lacan ([1960] 1966), “o significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante”. Poderíamos reformular essa frase assim: o significante Aleph é o que representa o sujeito para outro significante, por exemplo, beit, guimel, dalet, he.

O que importa não é que a letra Aleph produza sons ou sentidos, mas que ela se encontra na origem de toda ordem, antes de todas as outras letras, em uma posição que lhe permite ser sujeito, isto é, ocupar a função de dar um impulso, uma sequência às outras letras. Ela é a condição da sequência, porque ela é o começo. A Aleph, esse real impossível e mudo, é condição de possibilidade e causa de todas as outras letras – seria possível dizer também “causa de seu desejo”.

O fato de a Aleph ser um silêncio, um vazio de som, não suprime sua força, longe disso; o que importa é que ela esteja em seu lugar, de “primum”, de Um; lugar que está na origem de todo novo começo e que permite à segunda letra do alfabeto, a beit, advir.

“No começo, Deus criou o céu e a terra”, ou seja, no começo do alfabeto, a partir da letra Aleph, uma cisão é criada. Uma separação entre o alto e o baixo, entre a Aleph e a beit, mas também entre a Aleph e todas as letras que são submetidas, causadas por esse Um que não tem qualidade sonora,4 mas está a serviço do alfabeto e da linguagem. A separação espacial entre céu e terra, entre o alto e o baixo, se torna, graças à linguagem, uma separação temporal, isto é, uma separação entre o que precede e o que segue.

 

Passagem da Aleph à beit

Segundo a Cabala,5 a Aleph, seu símbolo gráfico (), desenha uma separação, à imagem daquela das águas primordiais, separadas quando “deuses” criou o céu e a terra.6 A letra vav () é posta em diagonal entre os dois ramos da letra, que são assimilados a duas Yod (). O ramo superior representa as águas dO Alto, O Céu; o ramo inferior representa as águas de Baixo, O Mundo criado.

A função da Aleph é, portanto, separar, diferenciar os sons de maneira tal que seja possível articulá-los na língua, que se torna, assim, uma criação. Não há linguagem sem essa separação primordial, que permite a discriminação dos sons.

Essa faculdade de diferenciar, que caracteriza a primeira letra do alfabeto, é crítica ou diacrítica; essa letra possui uma força de criação inaudita. O símbolo gráfico da Aleph representa também a cabeça de um boi, que simbolizava, na Antiguidade, a força motriz, aquilo que permitia aos homens lavrar a terra e, portanto, produzir o alimento, garantir a sobrevivência. Nos caracteres fenícios (protossinaíticos), a Aleph era representada por uma cabeça de touro com seus dois chifres bem visíveis.

Em hebraico, o signo gráfico da letra Aleph descreve um jugo de boi, representação da parelha unida na marcha ou no trabalho (zoug em hebraico é o casal). Além da unidade e da primazia, a letra Aleph contém, portanto, implicitamente a dualidade que dá abertura para a multiplicidade do mundo criado. A Aleph, como unidade, não é visível no mundo criado, na realidade. A primeira letra representa o invisível, cuja presença enigmática os seres humanos reconhecem com espanto. Pois os humanos são confrontados com a dualidade e a multiplicidade, mas podem viver, amar e trabalhar somente se permanecem em contato com essa força do Um, ou seja, com o real, que é Um continuum sempre inacessível.

 

Três ofícios impossíveis

Em Análise terminável e interminável, Freud ([1937] 1987) evoca o dito7 que afirma que educar (Erziehen), curar (Kurieren) e governar (Regieren) seriam “ofícios impossíveis” (ummöglchen Beruf). Ele os denomina “ofícios”, e não “profissões”, utilizando o termo alemão Beruf, que tem uma etimologia interessante.

A palavra Beruf foi utilizada por Martinho Lutero para traduzir a expressão bíblica “chamado por Deus” (die Berufing durch Gott). Beruf remete, portanto, a um chamado e traduz a palavra grega klesis,8 assim como o substantivo latino vocatio. Lutero utiliza Beruf também em outro sentido, para significar a função9 que os homens assumem na sociedade, na ideia de que são chamados por Deus para desempenhar um encargo, um trabalho determinado. Os seres humanos são, então, chamados (ge-rufen) por Deus, e vivem e trabalham obedecendo a ele.

A palavra “ofício” se refere também ao ministério, que remete ao mais alto serviço. A psicanálise é qualificada por Freud como ofício – métier – e não como profissão, uma vez que ela também responde a um chamado, o chamado do real, que se manifesta por meio do sintoma no sujeito em sofrimento.

Responder a esse chamado significa aceitar uma tarefa pesada (ministerium) e seu mistério. Ouvir o chamado do sintoma pode levar certos sujeitos a empreender uma análise e, eventualmente, a fazer dela um ofício que, contudo, permanecerá, pelo menos sob certos aspectos, impossível. A psicanálise procede, portanto, do real. Ela está à sua escuta, tenta analisá-lo, sem querer, no entanto, dominá-lo pela interposição do “saber” (LOLLO, 2012).

Freud bem observara que os ofícios impossíveis eram aqueles que se exerciam com o engajamento da palavra. E é Lacan ([1974] 2001, p. 9), em Televisão, quem nos recorda que a palavra é um instrumento falho. Com efeito, “[...] dizer toda a Verdade é impossível, porque nos faltam as palavras” (LACAN, [1974] 2001, p. 9).10

Por causa dessa falta, a verdade é apenas uma meia verdade. A outra metade é indizível e, no entanto, ela toca, em algumas pontas, o real. Como resolver, então, o paradoxo de uma análise que, uma vez que tem lugar, é, no entanto, impossível levá-la a seu termo?

Freud (1937) recorda que a psicanálise é a terceira das profissões (Beruf) impossíveis (unmöglichen), das quais podemos estar previamente certos de que terão um sucesso insuficiente (ungenügenden Erfolgs).11 O sucesso do ato analítico é destinado a permanecer sempre insuficiente, no sentido de que ele não pode deixar de ser parcial e limitado.

Como entender esse limite? Não se deve confundir o domínio da lógica com o da ação, da prática. Este último participa do movimento do real. Toda ação só pode levar a um resultado insuficiente, o que nada tem a ver com o erro ou a exatidão, critérios pertencentes ao domínio da lógica. A ação humana não tem a ver com a verdade, mas com a justiça. Seu erro é mensurável, portanto, em termos não de exatidão, mas de valor ético ou moral. A avaliação quantitativa não concerne à justeza da ação humana.

Por essa razão, é impossível dizer toda a verdade, porque “o dizer mesmo” é um ato que só pode ser insuficiente para exprimir o real. Essa incompletude da ação é constitutiva da condição humana que faz de nós seres limitados, pobres tipos (“die Arme”, diz Freud), o contrário do Superman. Somos, na realidade, Ypomans que, por não termos o pleno controle da nave espacial, ficamos na posição confortável de poder fazer hipóteses.

O ato analítico e o ato educativo, assim como o ato político, podem ser julgados ‘apropriados’, talvez ‘eficazes’, mas certamente não ‘exatos’. Reconhecer essa imprecisão significa reconhecer a liberdade de um real que se submete dificilmente ao simbólico, mas permite ficar à escuta do imprevisto para imaginar (formular a hipo-tese de) o futuro.

 

A psicanálise, “o que cessa de se escrever”

Como vimos, em Análise terminável e interminável, Freud ([1937] 1939) expõe a paradoxal contradição que atravessa a prática analítica. Para o fundador da psicanálise, uma análise ao mesmo tempo pode e não pode ser levada a seu termo. Poderíamos dizer que ela é possível e impossível ao mesmo tempo.

Ela é possível, quando o processo analítico chega a ponto de interromper a necessidade mantida em um movimento incessante pela repetição da “mesma escritura”, gravada e tocada em modo contínuo pelo inconsciente. A análise toca, então, na negação (ne-), que impede a interrupção (-cessária) do continuum produzido pelo real de uma escritura traumática. Isso abre para o possível, que é “o que cessa de se escrever”.

A psicanálise é ao mesmo tempo impossível porque sempre haverá alguma coisa do real que “não cessa (ne-cessidade) de não se escrever”. O paradoxo nos faz compreender por que o ofício do analista, pelo menos sob certos aspectos, é impossível.

Mas de qual impossível fala Freud aqui? O que é esse impossível? É essencial, antes de retornar à característica desses três ofícios, compreender a ambiguidade e a força dessa palavra, e isso de um ponto de vista lógico.

Para tanto, parece oportuno recordar a definição dos quatro conceitos por meio dos quais Lacan estrutura a experiência analítica: (1) o impossível; (2) o necessário; (3) o contingente; (4) o possível:

1. O impossível é “o que não cessa de não se escrever”;

2. O necessário é “o que não cessa de se escrever”;

3. O contingente é “o que cessa de não se escrever”;

4. O possível é “o que cessa de se escrever”.

“O real é o impossível”, ou seja, o real é “o que não cessa de não se escrever” (LACAN, [1972-1973] 1975, p. 86). Ele representa um contínuo (que não cessa), semelhante a uma fonte que nunca se seca, que não cessa de fazer jorrar a água, matéria fluida, que passa e que se escoa sem deixar traço (não cessa de não se escrever). A água não cessa de surgir, impulsionada por uma ne-cessidade que as leis da física traduziram em símbolo. Ela jorra pelo fato de não poder sair “toda” do buraco, da falha que a contém; ele se escoa lentamente em um continuum que não se detém. Existe água que sai e água que não sai ainda. Ela só pode se escoar se o imenso reservatório que fica escondido no subsolo, encantoado entre as rochas, a empurrar para cima. A condição para que “isso empurre” é que a maior parte do líquido, da massa de água, fique detida na impossibilidade de se escoar.

O impossível é essa água retida nas profundezas, no coração de uma imensa “falha”, e que é a condição de possibilidade do fluxo. A massa de água que não sai serve para comprimir uma pequena quantidade de água ejetada para o exterior. O ponto de propulsão é o ponto de contato de dois magmas. Ele separa e ao mesmo tempo une as duas massas. Isso não cessa (a água é impelida a sair continuamente) de não escorrer “todo”.

A impossibilidade de fazer sair tudo é a condição de possibilidade para que o líquido continue a se escoar. Esse continuum é o real. Da mesma maneira, em cada análise, vastos territórios permanecem não analisados: esses lugares de sombra são a condição de possibilidade de uma análise. Também a educabilidade de uma criança se funda sobre a existência de um lugar de não educabilidade.

Mas retornemos ao real, que se define por uma dupla negação: ele “não cessa” de “não se inscrever”. A primeira negação, “não cessa”, exprime a necessidade de um continuum, semelhante à fonte que escorre sem interrupção, impelida por uma força natural.12 A segunda negação se dirige ao real, que não cessa “de não se escrever”. O continuum que o real produz não se escreve porque, caso se escrevesse, ele seria encantoado, fixado em um signo, e sua continuidade seria interrompida. Ele não pode mais, então, não ser representado, numa espécie de congelamento em imagem. Ele se revela, contudo, em presença, por meio de manifestações singulares, uma não escritura que se apaga no mesmo momento em que se escreve. Essa escrita sem tinta grita e leva a fazer “caretas à realidade”, caretas através das quais a escritura “faz signo”.13

O real, como impossível de dizer e de escrever, permanece, no entanto, como a fonte do devir. Quando ele cessa de não se escrever, seu continuum sofre uma interrupção, a necessidade cessa (uma negação recai sobre a negação “ne-” de “cessa”); alguma coisa pôde tocar o real, uma tangente fez corte no continuum do real ao tocá-lo, alguma coisa pode agora se escrever. Esse ponto de toque (tychè)14 é o evento que faz signo, uma forma de escrita que, entretanto, não se representa, mas se apresenta. Assistimos a uma colisão que detém por um instante o movimento do real que, assim, cessa de não se escrever. Poderíamos dizer que ele faz signo, grita.15 A colisão provoca uma parada traumática do continuum do real, o que produz uma sideração que poderia ter, como veremos adiante, duas saídas possíveis.

Consideremos, por ora, que o encontro entre o contingente (o que cessa de não se escrever) e o real (o que não cessa de não se escrever) provoca a inscrição desse acidente sobre a placa de cera do inconsciente. Um corpo, uma mão ou uma voz tocam o continuum do real e o detêm. Esse encontro produz, então, uma escritura cuja característica própria é a repetição que, para o sujeito, é traumática e produz uma forma de sideração. O que advém é uma colisão entre duas massas, entre dois corpos, entre duas vibrações. Essa coincidência (produzida por um acidente) pode ter duas saídas diferentes: a parada definitiva de todo movimento ou a parada momentânea depois da qual se segue uma nova partida.

Essas paradas representam dois tipos diferentes de sideração. A primeira é uma sideração que não pode advir. Seria possível dizer que a colisão provocou um acidente mortal. O corpo da contingência fica no chão, siderado, ao lado das placas da necessidade. A segunda sideração possível não somente não é mortal, mas impulsiona a vida. Ela é a precondição para que haja a de-sideração. O encontro entre a contingência e o real se torna produtor de movimento e de vida, criador.

Seria o caso de dizer que o acidente entre dois carros produz um “toque” que danifica irremediavelmente os dois veículos, mas permite aos condutores se encontrarem e avaliar amigavelmente a situação. Naturalmente, para isso, é preciso um pouco de sorte. Essa segunda sideração permite o encontro do impossível (real) com o possível (pelo viés da contingência que se casa com a possibilidade) dando, assim, abertura à de-sideração, isto é, ao desejo.

Em resumo, nesse hipotético acidente da estrada que deixa signos evidentes no lugar do drama e marca o sujeito com um trauma, há duas saídas: essa escrita ou é bloqueada pelas placas do necessário, ou é liberada pela intervenção do possível.

No primeiro caso, o necessário, “o que não cessa de não se escrever”, produzirá uma sideração traumática, na qual haverá uma repetição em modo contínuo da mesma cena do acidente. A necessidade produz uma escritura da repetição (sempre o mesmo grito emitido pela primeira vez no momento do acidente). É o caso do trauma que faz reviver uma angústia: de castração, de perda, de morte. O sujeito fica siderado, no sentido de fixado, atrelado ao sidus, à estrela, mas também à imagem da cena primitiva, revivida no momento do acidente.

A segunda saída é a de uma sideração que encontra um movimento e se abre ao possível (“o que cessa de se escrever”). Alguma coisa cessa, ou seja, sai da necessidade da repetição e se emancipa de uma escritura que faz trauma. O inconsciente do sujeito se emancipa da repetição do mesmo, da cena traumática e reencontra seu devir. Da mesma maneira, a sideração se emancipa da necessidade que a obriga a girar no vazio em torno de uma estrela (sidus).16 Ao se liberar, ela se afasta do astro em um movimento de de-sideração. Assim, o sujeito reencontra seu desejo. É o encontro entre a sideração (produzida pela colisão entre o impossível e o contingente) e o possível que abre para o desejo do sujeito. O possível é “o que cessa de se escrever”. Isso cessa, ou seja, isso interrompe a ‘ne-cessidade’ de uma escritura da repetição impressa no inconsciente, que a repete em modo contínuo.

Como podemos, então, interromper essa escrita da necessidade? Ora, pois! Com a palavra do dispositivo analítico, que tenta não andar em círculos, mas se emancipar de uma necessidade da repetição filogenética e epigenética. Não há meio para encontrar seu próprio desejo a não ser pela palavra, pela força cortante do simbólico, por significantes heréticos e criadores de novos sentidos. Uma psicanálise dá abertura para o possível ao reproduzir, como em um laboratório, colisões entre o impossível e o contingente, colisões que se dão agora na palavra, na voz e no significante.

O dizer permite interromper a necessidade de uma escritura e a necessidade de um real que não se escreve. Disso não decorre, contudo, que tudo se possa dizer, e é bem aí que está a castração: renunciar a dizê-la “toda”, a verdade. É o real que “fala” e impacta tanto o analisante quanto o analista.

A questão da transmissão só é concebível nessa passagem do impossível ao possível, uma passagem em que o real e o simbólico se reencontram. Esse reencontro traumático se torna desejo se ele chegar a tornar possível todo evento novo que faça sair, mesmo por um instante, o real da necessidade; assim, o possível está aí: “isso cessa de se escrever”. Esse reencontro pode, então, tornar possível alguma coisa da transmissão para educar, psicanalisar e governar.

 

Do impossível ao simbólico

Se o real é o impossível (o continuum da não escritura, um movimento, portanto), qual é sua relação com o simbólico? É por meio do simbólico que o impossível se faz possível. O simbólico produz o corte da necessidade e estanca, assim, o continuum do real. O simbólico, por meio da fala ou da escrita, faz de modo a que o real cesse de não se escrever.

A necessidade do real é “não se escrever”; a necessidade da necessidade é “se escrever”. Somente o simbólico pode tentar deter os dois movimentos necessários que impelem o real em direção ao inelutável. Com seu corte, o simbólico faz signo (e faz sangrar) no real e interrompe a necessidade deste, deslocando o movimento para outro plano, o da representação. O simbólico, entretanto, se associa ao real através da necessidade, porque é condenado a fazer um duplo da realidade e a não cessar de escrevê-la.

Além disso, em vista do impossível que há na escrita (impossível escrever o real), o simbólico não pode deixar de lhe cortar o espaço de seu desenvolvimento e deixar o espaço à fala. Esse impossível da escrita é bem representado pelo episódio bíblico do dom de Deus a Moisés, o das Tábuas da Lei sobre o Monte Sinai. Deus, o real absoluto, pode chegar a escrever os dez mandamentos sobre as tábuas de pedra, mas, quando estão nas mãos de Moisés, diante do povo de Israel que se entrega à idolatria, essas tábuas caem e se quebram. Impossível ao homem aceder à verdade da escritura.

A letra Aleph tem, com efeito, duas vertentes: a primeira é muda, trata-se de um furo silencioso e invisível, furo real no simbólico. É a vertente real do impossível, inacessível ao simbólico. Lacan o nomeia na fórmula “o real faz furo no simbólico”. Aqui, o real resiste à simbolização. É algo impossível de pensar, imaginar, simbolizar. É um real que não tem espaço e, portanto, não tem borda; há um furo sem borda. O homem reencontra esse real com o trauma da morte, mas também com o trauma sexual. Na impossibilidade de superá-lo, os psicóticos permanecem siderados, de uma sideração tal que faz barragem a seu próprio real, seu corpo.

A outra vertente do impossível – e esta é a que nos interessa mais – é expressa na fórmula de Lacan “o simbólico faz furo no real”. Esse furo simbólico chega a bordejar alguma coisa do real; ele faz corte com um signo que separa, como a Aleph em relação à beit, e abre, assim, para a palavra. O simbólico tem, então, capacidade de fazer furo no real, sem poder reduzi-lo totalmente ao símbolo. Ele faz furo, ele perfura o real, sem afetá-lo demais, como um furo na água. Pode-se “simbolizar” o quanto se quiser, sempre haverá real que não se deixa apreender na rede do simbólico. É possível, no entanto, apreendê-lo na rede do imaginário, quando, por exemplo, as religiões imaginam um além da vida: um inferno ou um paraíso.

 

Da escrita à fala

O possível, “o que cessa de se escrever”, quebra a lógica da necessidade, do determinismo que está inscrito na cadeia infinita da causa e do efeito. A necessidade é “o que não cessa”. Ela se exprime a serviço do impossível na modalidade do “não se escrever”, isto é, de não se fixar sobre um papel. Para que o impossível se abra ao possível, é preciso que o contingente quebre, interrompa por alguns instantes a necessidade.

É aqui que intervém aquilo que chamo de “a boa sideração”, produzida não por uma colisão de estrelas (no plano do real), mas por um ato de fala que articula real e simbólico. Nas sociedades, excluir o outro significa deixá-lo fora do círculo de nossa casa, para além do limite, para além da fronteira. Isso significa que não se quer ou não se pode trocar palavras com esse outro.

Excluir é, de partida, excluir a fala na clausura da sociedade, privar toda relação humana dos trunfos da linguagem. Excluir significa impor certo tipo de silêncio, ceder à má sideração. A “boa” sideração (que quebra a necessidade) será, então, produzida por meio do interdito de excluir, que atribui à fala sua liberdade e permite aos cidadãos se relacionarem uns com os outros por meio do diálogo.

Assim, o impossível da relação ou do “viver-junto” se transforma em possível. Interditar serve para deter o continuum da necessidade, o fluxus do real da exclusão. A lei, que interdita excluir e que, portanto, “diz” e nomeia o real, serve para interromper o conflito, a guerra. O interdito é, pois, uma negação, que recai sobre a negação (o ne- de ne-cessa) e que detém o continuum, corta-o, transforma-o.

O possível, o que “cessa de se escrever” impõe, em aliança com o simbólico, o corte/cessar, que interrompe a necessidade ao preço de não poder escrevê-la (cessar de escrever). O possível é produzido por um ato de linguagem simbólico que diz não! (interdito) ao real que passa. Esse não! detém por um instante seu movimento necessário, produz um corte do real. Esse corte é, portanto, simbólico, “furo simbólico no real”. A fala faz furo no real e detém por alguns instantes o processo da necessidade, que é o impossível em movimento, impossível também de capturar.

Educar, psicanalisar, governar são “ofícios impossíveis” porque se exercem nesse movimento necessário, que não cessa de fluir, que escapa, portanto, a toda apreensão pelo conceito. Mas essa impossibilidade encontra a contingência de uma fala que faz escansão e permite que isso cesse de não se escrever. Alguma coisa do real se inscreve na fala.

Os ofícios impossíveis se tornam possíveis sem, contudo, ter a garantia de que eles venham a obter resultados tangíveis e definitivos. Ao contrário, eles têm a ver, de um lado, com o real, o impossível, e eu acrescentaria o invisível, o imaterial e, portanto, o não mensurável e, de outro lado, com a contingência que é também imprevisível.

O que resta de tangível são a fala e a escrita. Das formas do simbólico, a fala é a mais próxima do real; ao mesmo tempo, ela tem um inconveniente: ela é volátil. A fala voa, e a escrita permanece. Mas apenas a fala faz corte; a escrita faz arquivo em um continuum infinito que escapa à vida. Um continuum que pode ser interrompido pela fala, pela voz, pela leitura.

O impossível não se escreve, não se fala: ele age na sombra e no silêncio. E o possível? É a ação da fala, ação de corte, que abre o real à simbolização, abre o impossível ao possível, a Aleph à lettera beit.

Psicanalisar é, portanto, um ofício em relação com as duas metades da Verdade, uma na vertente da fala (do semi-dizer) e a outra na vertente do real, que escapa à apreensão pela simbolização e pela fala. É, então, graças a esse impossível que o ato de fala toca no real. Com o significado, a psicanálise diz uma verdade, mas é com o significante que ela toca no real.

“O real é o impossível”, nos diz Lacan ([1970] 2001. p. 439).17 Ele acrescenta que “o inconsciente é o real como impossível de dizer”? (LACAN, [1972-1973] 1975. p. 14). Mas, então, como pode o real encontrar o possível?

O significante é o que representa um sujeito para outro significante. Nessa dinâmica de representação se desenvolve a associação livre, ou seja, aquilo que cai (Einfallen), o efeito de uma contingência.18 O possível exige sempre uma primeira simbolização (contingente). Essa primazia são primícias, um fruto novo da estação; é um brotar da natureza, uma criação, um ato de renovo. Sublinho a palavra “primeira”, que remete à criação, ao começo, mas também ao acidente, ao imprevisto. O impossível se torna possível somente com a novidade, com sua criação.

 

Educar na escuta do real

Freud considera a educação, assim como a análise, uma tarefa impossível. A questão está, segundo ele, na constituição psíquica original da criança. Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), o fundador da psicanálise define a criança como um “perverso polimorfo” submetido à onipotência do princípio do prazer.

Essa ditadura de um real pulsional que a criança não pode dominar se manifesta sob a forma da “onipotência narcísica infantil”. A criança, nesse estágio primitivo de seu desenvolvimento sexual, visa somente à descarga bruta da tensão nascida da acumulação da intensidade pulsional. Seu alvo é obter uma satisfação completa em todos os órgãos corporais. É sobre esse polimorfismo perverso que incide todo esforço educativo. Sua dificuldade se confronta com o caráter, sob certos aspectos, “ineducável” da pulsão.

O educador deve se haver com esse real humano, que escapa por definição à apreensão pelo simbólico. A pulsão é ineducável porque não se pode “chamá-la” à ordem, por assim dizer. Ao contrário, é ela que chama e impele à ação. Ela faz troça dos interditos, demanda satisfação. Ao educador resta ficar na escuta dessa demanda. Seu ofício impossível consiste em conseguir educar o ineducável. Isso se torna possível por meio de um ardil que desvia a pulsão para outros alvos, submetendo-a por efeito de deslocamentos sucessivos.

O educador deve conseguir fazer com que o chamado da pulsão não seja mortífero como o de Eurídice, que demanda a Orfeu que se vire para olhá-la. O chamado de Eurídice deve ser substituído pelo de Eros, um deus do vivo que – só – pode tentar derrotar Tanatos.

O amor da transferência para com o educador, mas também para com o saber, me parece ser a única saída para esse impasse. Educar é um ofício impossível porque não se pode tão facilmente tomar pela mão uma criança e fazê-la sair de sua prisão (repetição) pulsional, para fazê-la ascender ao Paraíso da criação e do amor.

É impossível porque é o Inferno que invoca, pela voz materna de Eurídice. A pulsão permanece ineducável no sentido de que não é possível acompanhá-la para fora de si mesma (ex-ducere) sem destruí-la.

Como, então, acolhê-la, escutá-la, transformá-la? Eis aqui o que está em jogo numa educação que se abre ao real pelo viés da escuta da psicanálise.

 

Referências

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LOLLO, P. Psychanalyse et transmission du savoir. Le journal des psychologues, n. 295, 2012.         [ Links ]

OUAKNIN, M.-A. Les mystères de l’alphabet. Paris: Assouline, 1997.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: insistance@free.fr

Recebido em: 23/02/2018
Aprovado em: 16/03/2018

 

Sobre o autor

Paolo Lollo
Psicanalista, filósofo por formação.
Ensinou literatura italiana e linguística no ensino médio e universitário na Itália, Alemanha, Polônia e França.
Pesquisador da Universidade de Paris 13 (Unité transversale de recherche psychogenèse et psychopathologie).
Membro e secretário-geral da Insistance, associação que liga a psicanálise à arte e à política.
Membro do conselho editorial da revista Insistance (Paris: Érès).
Cofundador e presidente da Escola de Psicanálise Corpo Freudiano - Seção Paris.

 

 

1 No idioma hebraico, as letras são do gênero feminino. (N.T.).
2 Nesse primeiro versículo do Gênesis, o nome de Deus é escrito no plural, Elohim. Isso evidencia que sua única determinação é ser plural.
3 No sexto versículo do Gênesis, Deus diz: “Haja expansão no meio das águas e que separe entre águas e águas!”.
4 A Aleph não se pronuncia.
5 A palavra “cabala” (Qabalah, em hebraico) significa recepção no sentido mais geral, mas o termo remete a uma tradição esotérica do judaísmo, apresentada como a “lei oral e secreta” dada por Deus a Moisés no Monte Sinai ao mesmo tempo que foi dada a “lei escrita e pública” (a Torá).
6 No original: “[...] quand ‘dieux’ créa le ciel et la terre”. Ver nota 2 (N.T.).
7 Essa ideia já havia sido expressa no prefácio escrito por Freud para o livro de Aichhorn, Verwahrloste Jugend, no qual ela é reformulada para ele como uma “palavra para rir” (Scherzwort).
8 O termo klèsis (chamado) deriva de kaleo e remete ao verbo hebraico, que traduz usualmente este verbo grego: qara (chamar, dar um nome) do Antigo Testamento.
9 Os seres humanos são funcionários (Beamte) a serviço de Deus.
10 LACAN, (1974) 2001, p. 9. Je dis toujours la vérité, p. 9. “Eu digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente: as palavras faltam. É mesmo por esse impossível que a verdade se liga ao real”.
11 FREUD, S. Analyse terminée et analyse interminable (1937), sect. VII, GW XVI, p. 94. “Es hat doch beinahe den Anschein, als wäre das Analysieren der dritte jener: unmöglichen Berufe, in denen man des ungenügenden Erfolgs von vornherein sicher sein kann. Die beiden anderen, weit länger bekannten, sind das Erziehen und das Regieren.
12 A natureza (physis), que tem como característica própria o nascer continuamente, o regenerar-se sem cessar, é outra maneira de denominar o real.
13 “O príncipe cujo oráculo está em Delfos não fala, não esconde, mas faz signo” (HERÁCLITO, 1988, p. 87).
14 Pronuncia-se tikhé. A palavra, em grego, significava ao mesmo tempo casualidade e encontro. O paciente neurótico sofreu um traumatismo, um trauma, um choque do qual ele jamais se recuperou. Esse choque, Lacan o define como encontro com o real e retoma, para tanto, a palavra grega empregada por Aristóteles na Física: túχη.
15 VON HOFMANNSTHAL, H. (1874-1929), Lettre de Lord Chandos. La Lettre de Lord Chandos põe em cena a dissolução da fala e o naufrágio do eu no fluxo indistinto das coisas que a linguagem não pode mais nomear nem dominar.
16 O termo “sideração” deriva do latim siderare, que significa: sofrer a influência nefasta dos astros, uma influência que paralisa ou congela. Desejar (de-siderar) significa literalmente: afastar-se (de) da estrela (sidus) ou de sua influência negativa.
17 Ver também Lacan ([1966-1967] 1967, p. 443, version digitale): “O ato [sexual] é impossível. Quando digo isso, não digo que ele não exista, não é suficiente que se o diga, porque o impossível é o Real, muito simplesmente, o Real puro, sendo que a definição do possível exige sempre uma primeira simbolização: se se exclui essa simbolização, ela parecerá muito mais natural, essa fórmula do impossível é o Real”.
18 A associação livre é chamada por Freud de Einfall, palavra que significa “aquilo que cai” no espírito, e isso de maneira espontânea.

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