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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.75 Belo Horizonte Jan./June 2018

 

O ESPAÇO DA FALTA

 

Quando falta palavra

 

When words are absent

 

 

Marli Piva Monteiro

I Círculo Psicanalítico da Bahia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A psicanálise é a clínica da palavra desde o começo, assim denominada por Anna O. Quando se defronta com um paciente incapaz de usar a palavra para expressar seus sentimentos e suas emoções ou mesmo simbolizar, o analista se vê diante do impasse, e é a contratransferência a possibilidade de tentar ultrapassar essa dificuldade.

Palavras-chave: Palavra, Palavra que falta, Contratransferência, Rêverie.


ABSTRACT

Psychoanalysis is essentially a therapy of words. The “talking cure” designed by Anna O depends on words, to be effective. The author considers, in her work, those patients that are not able to express their feelings and emotions through their speech and the difficulties regarding the psychoanalysis practice. She points the use of countertransference as one possibility to solve the impasse.

Keywords: Words, Lack of words, Countertransference, Reverie.


 

Por vezes me pergunto se a psicanálise não parece se perder nas elaborações teóricas e esquecer a quem realmente serve. Cada dia tenho mais certeza de que, para mim, a psicanálise serve ao cliente, ou não faria sentido explorar o inconsciente por puro diletantismo ou simples voyeuerismo do analista.

Sou dos que acham que a psicanálise oferece duas possibilidades: escrever belos trabalhos para os congressos e ser capaz de ajudar aquele que nos procura em sofrimento.

E a possibilidade de encontrar esse objetivo é a palavra, palavra que, no dizer de Ogden (2013), tem tanto direito à imprecisão quanto as pessoas. Para ele, a palavra tem que ser usada e lida de modo que se possa permitir uma alteração dos significados, a depender do contexto em que as palavras são ditas e lidas. Não há outro modo de trazer à consciência as noções inconscientes, tratando o que há de inconciliável com o Eu.

Anna O. definiu a psicanálise numa expressão ímpar “talking cure”. A memória só pode ser ‘re-encontrada’ através da fala. A língua possui uma capacidade especial de percepção do inconsciente. Focalizando sua escuta nessa qualidade essencial da língua, o analista tenta adivinhar o significado latente do discurso do analisando e reconstruir sua história.

O que sustenta a psicanálise é o cliente-desafio. Aquele que nos faz pensar se somos mesmo psicanalistas. Aquele que nos induz a perguntar se a psicanálise pode fazer algo por ele, ou melhor, se tudo que acho que aprendi como psicanalista pode servir agora para alguma coisa, ou o que faço de fato nesse lugar.

E é quando o psicanalista se defronta com o cliente que não consegue traduzir em palavras seus afetos, suas emoções, seus sentimentos, que o impasse se instala.

Como fica o tratamento? Existe uma demanda de análise, o cliente não falta a maioria das sessões e fala, mas não pode usar a palavra. Fala sem dizer o que sente.

E o que escuta o analista, artífice sem matéria-prima? Músico sem instrumento, artista sem pincel? Sua criatividade é desafiada a realizar, inventando como e com quê.

Volto-me para a percepção acurada, a sensibilidade e a criatividade de Antônio Ribeiro (1994) no seu trabalho inspirador da Jornada1 quando fala do futuro da psicanálise. A criação ou a ‘re-criação’ pela expertise do analista é a única possibilidade de redenção.

A falta que está fazendo falta é também a falta da palavra. Palavra que diz e palavra que se escuta.

E eu lhes diria, com toda a certeza, que analistas como Antônio Ribeiro estão fazendo falta.

Tratar esse cliente como inanalisável resolveria o problema... do analista. Mas será que é o cliente que não serve para a análise ou a análise é que não serve para ele? Ou o psicanalista que não consegue analisá-lo?

Essa é a hora de questionarmos nossa posição de analistas.

O desafio que esses clientes nos apresentam é o questionamento da nossa onipotência, a nós que pregamos a dissolução do sujeito em objeto a.

Acho que a teorização da psicanálise quando se prioriza o discurso em detrimento da pessoa incorre em um perigoso equívoco quando se trata de um cliente a quem falta a palavra.

Esses clientes são os borderlines, os psicossomáticos, os que têm pensamento operatório e alexitmia, são perversos ou são os “normopatas”, de McDougall (1989), que agora parecem proliferar nos nossos consultórios?

Um dado significativo é que os sintomas desses pacientes, não simbolizados, às vezes repercutem no corpo, determinando, além da doença, até a própria aniquilação.

Joyce Mc Dougall (1989) debruçou-se sobre esses analisandos, alguns psicossomáticos e aceitou a prerrogativa de grande dificuldade clínica para o psicanalista.

Um dos aspetos que a intriga é a adesão desses pacientes ao tratamento, assíduos, pontuais às sessões, não fazem longos silêncios, pagam corretamente. Nada mais além disso. Quer dizer, depois de tudo isso, nada acontece na análise. Fazem relatos como se fosse “um diário de bordo”, sem expressão transferencial, as recordações da infância são “normais”, ou melhor, não provocam emoções, o afeto é ausente. Não costumam sumir nem cometer acting outs e parecem não perceber as frustrações da análise. Revelam uma existência em negativo lembrando o conceito de desvitalização de André Green (2015), obstruem o processo como uma forma estática de antiligação, de forma maciça. Jamais falam de forma estranha ou incompreensível, falam de pessoas e coisas sem falar da relação com essas pessoas ou essas coisas.

Faltando essas ligações que dão coesão ao discurso analítico, não se estabelecem os laços objetais, não há relação no sentido do discurso. A dificuldade se torna, então, buscar o que não existe, o que está ausente. Nesses pacientes não há enganos na linguagem nem do ponto de vista gramatical, nem nos lapsos. Não há chistes. Não há metáforas.

Será um erro aceitá-los em análise? Seria o estar em análise o seu sintoma?

O fato de meu paciente não ser capaz de simbolizar o que acaba provocando em mim? Será que estou querendo trocar de lugar com ele? – pergunta-se Mc Dougall (1989).

Seria justo dispensá-lo mais uma vez quando a maioria já está cansada de tentar medicação e consultas com vários especialistas e nos procura como último recurso, em busca de um alívio ou uma solução?

A impressão que se tem é que eles não têm curiosidade sobre seus problemas nem o que os causa.

Lembro-me de uma cliente que dizia:

Sabe, que quando eu saio daqui, tento me lembrar como você é e nem consigo. Não sei se você é loura ou morena, alta ou baixa se é magra ou gorda. Não faço a menor ideia.

Negam a transferência, negando a distância entre eles e o analista, que, para eles, não é uma realidade psíquica, esse é o protótipo de sua relação com o mundo externo e o objetal interno. Ao negar a realidade psíquica de outrem, lhes atribuem a sua própria.

Assim, não se identificam com os outros porque o Outro é como uma réplica exata do próprio sujeito. Recusam a alteridade para não se sentirem ameaçados por ela. A carapaça que criam não lhes permite perceber seu sofrimento psíquico.

E a análise ameaça destruir essa carapaça. McDougall (1989) fala de uma força antivida que Green (2015) chama de desvitalização. A partir daí ela percebe que a saída para essa análise é o trabalho calcado na contratransferência.

Além do sentimento de fracasso, o analista não pode evitar se identificar com o Ego e os objetos internos desses analisandos. O discurso insosso e enfadonho esconde o medo, o amor ou o ódio que não conseguem comunicar. O analista também não consegue atingir com seu instrumental próprio, a palavra, esses analisandos insensíveis à própria dor, que não conseguem escutar que alguém percebe que estão se esvaindo até a aniquilação total. Só há um modo de captar esse material: o analista percebê-lo através da contratransferência.

A contratransferência é esboçada como impactos sobre o analista: uma parte deles, simbólica, porque é representada por palavras, e outra, não simbólica, denominada impropriamente de “atuações”. O analisando empenha-se para usar a mente do analista poupando, assim, seus esforços. Isso não acontece à toa. Há todo um movimento do cliente para procurar caminhos para atirar na mente do analista seu desespero, seu narcisismo.

Como a mente de cada analista é peculiar, a cada cliente restará um processo diferente de busca para projetar sua angústia e criar um conjunto de defesas na análise.

Para o paciente poder projetar seu interesse em conhecer a si mesmo, apesar da dor, ele deve ter um analista que tenha interesse em conhecer o seu cliente.

Foram os kleinianos os responsáveis por perceber e utilizar de forma positiva a contratransferência na interpretação. É utilizando a linguagem no sentido de apreender e transmitir o sentido da interação entre a vitalidade e a desvitalização que se pode encontrar o auge da experiência analítica.

Palavras são como notas musicais, por isso recomendo que o que se há de fazer é música e não apenas tocar as notas (OGDEN, 2013, p. 22).

Propõe, então, que se admita que uma mesma palavra ou frase já não tenha o mesmo sentido no instante seguinte tampouco soe da mesma maneira.

Na análise, assim como na escrita, só posteriormente se pode fixar um sentido. Não há como fazer previsões em análise, bem como sabe todo escritor que não se pode ter certeza do final do seu romance. O autor tem que se deixar levar pela sua produção, para só depois concluir.

A experiência do processo analítico não pode ser limitada ao que poderia ocorrer entre o cliente e o analista. A imprevisibilidade é o grande trunfo dos dois. É preciso haver de ambas as partes uma disponibilidade irrestrita tanto para escutar o inconsciente quanto para viver os papéis que se fizerem necessários para efetivar essa escuta.

A absoluta receptividade inconsciente seria o estado de rêverie, de Bion. E para esse estado de rêverie ocorrer, é preciso que seja cedida individualidade a um sujeito terceiro que não é nem um nem outro, analista e analisando, mas é produção do par analítico.

Essas concepções teóricas nos conduzem a uma reavaliação do inestimável valor da contratransferência no processo da análise, não como introdução de sentimento, ideias e afetos do analista no processo, mas como condição que possa corroborar a escuta e a compreensão do inconsciente do cliente, facilitando a sua expressão de sentimentos em palavras e a simbolização.

A rêverie é, ao mesmo tempo, algo privado e intersubjetivo. O analista não fala com o paciente de tais experiências. Contudo, é a partir delas que vai tentar falar-lhe do que está pensando e sentindo. As experiências são conflitantes e constrangedoras para o analista e são difíceis de ser usadas por não estarem delimitadas nem pela vigília, nem pelo sono.

Ogden (2013) considera que pelas formas mais prosaicas da rêverie dela é difícil o analista se livrar. Os conteúdos das rêveries são os fatos do dia a dia, fazem parte do estar vivo e são também fantasias, devaneios, sensações corporais e percepções fugazes. Para manter na consciência esses pensamentos e sentimentos, é preciso renunciar à privacidade.

Embora o analista perceba suas rêveries como pessoais, elas são intersubjetivas, sua construção é inconsciente e só podem ser compreendidas, admitindo-se dialeticamente a participação de analista e analisando. O principal papel da rêverie é permitir ao analista entender o que está se passando no setting. Ela surge especialmente nos momentos de impasse.

Ainda de acordo com Ogden (2013), para usar a rêverie, o analista deve ser capaz de se permitir estar à deriva. Ele se deixa levar para algum lugar que poderá ter um significado decisivo no processo analítico, mas que só depois poderá ser percebido. É como se o analista se propusesse a encerrar a sessão com uma vírgula, diz Ogden (2013).

Segundo o autor, nenhuma rêverie deve ser deixada de lado. A rêverie explode como um desequilíbrio emocional do analista e “[...] é vivenciada como se refletisse o modo pelo qual se está sendo analista naquele momento” (OGDEN, 2013, p. 149).

O analista percebe sua intensa emoção ou uma sensação desarticulada ou uma vaga sensação de inquietação. Isso desperta no analista a atenção para tentar entender o que está acontecendo na análise. A repercussão que esse tumulto de sentimentos provoca no analista é a sensação de que não está sendo analista naquele momento. É como se suas preocupações estivessem interferindo no seu trabalho.

Ogden, assim como McDougall, refere que o analista sente a situação como um fracasso da sua capacidade de ser receptivo, compreensivo, atento ou se falhasse devido ao seu narcisismo, seus pontos cegos, sua pouca experiência, seu despreparo, sua imaturidade ou seus conflitos emocionais não resolvidos.

Quanto à linguagem do analista, Ogden (1989) declara que ele tem que usar linguagem que seja de imprecisão evocativa até mesmo enlouquecedora; ou pelo menos perturbadora. O primeiro cuidado que Ogden (2003) preconiza é facultar certa imprecisão às palavras e frases. Para o autor, o indicador mais importante do processo analítico é o senso de vitalidade e desvitalização em uma sessão analítica, mas, para apreender em palavras a experiência de estar vivo, é preciso que as palavras estejam livres. Ele compara as palavras a acordes musicais e acrescenta que fazer música é o que devemos perseguir e não simplesmente tocar notas (OGDEN, 2003, p. 22).

Esse autor se insurge contra as configurações na análise e adverte:

Não há limite (em amplitude, intensidade e complexidade de sentimentos e pensamentos para o que se pode tentar) enquanto analista ou analisando (OGDEN, 2003, p. 26).

O analista deve, segundo ele, ser receptivo a adotar papéis diversos na vida do analisando.

Baseando-se na afirmação de Debussy, que considerava que a música não está nas notas, mas no espaço entre elas, Ogden afirma que o diálogo analítico está entre as rêveries do analista e analisando. É no espaço onde se verifica o interjogo de rêveries que se encontra a música da psicanálise (OGDEN, 2003, p. 103).

O terceiro analítico é uma das grandes contribuições de Ogden. Segundo o autor, durante o processo de análise, a depender da capacidade do analista e do analisando para participarem do interjogo dialético das rêveries, o terceiro poderá ser criado. Esse terceiro se mantém sob tensão entre analista e analisando, mas sempre como indivíduos separados em sua subjetividade própria. Cada um deles participa da construção desse terceiro de maneira assimétrica.

Essa assimetria depende não só das peculiaridades individuais de cada um, mas se estrutura e se desenvolve segundo as formas de organização e estratificação, bem como ligações de significados da cada um, levando em conta sua história, suas vivências, seus afetos e suas sensações.

Esse conjunto de experiências intersubjetivas conscientes e inconscientes vai constituir uma vivência conjunta, mas sempre assimétrica do analista e analisando, objetivando a investigação dos objetos internos inconscientes do analisando, no intuito de ajudá-lo a poder conseguir mudanças psicológicas que lhe permitam viver sua vida de modo mais humano.

Não temos a ingenuidade de imaginar que as novas concepções teóricas resolvem os grandes desafios atuais da psicanálise e, antes que me perguntem, até posso logo responder: antes de chegar às rêveries, temos que conseguir manter a adesão do cliente ao tratamento no momento em que todas as relações estão extremamente frágeis ou, diria melhor, são como pano esgarçado, parece faltar fibra para manter os fios unidos, podem ser desfeitas com muita facilidade, evitando inclusive o olho no olho ou até a fala ao telefone.

Hoje os clientes nos mandam mensagens de WhatsApp informando que não comparecerão à sessão, quiçá se continuarão com a análise, perguntam os dados bancários para depositar valor de qualquer sessão ainda não paga. Quando não nos mandam ‘zaps’ perguntando quanto custa a sessão antes mesmo de marcar entrevista.

Não há dúvida de que temos que tentar ser criativos e recriar a nossa prática, pois os clientes já recriaram a sua maneira de se comportar e não serão mais como os analisandos que conhecíamos antes.

 

Referências

BURGOYNE, B.; SULLIVAN, M. (Orgs.). Diálogos Klein-Lacan. Tradução de Eduardo Seincman. São Paulo: Via Láctea, 2001.         [ Links ]

CANDY, S. T. (Org.). Diálogos psicanalíticos contemporâneos. O representável e o irrepresentável em André Green e Thomas H. Ogden. São Paulo: Escuta, 2015.         [ Links ]

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OGDEN, H. T. Leituras criativas - ensaios sobre obras analíticas seminais. Tradução de Tânia Mara Zalcberg. São Paulo: Escuta, 1996.         [ Links ]

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OGDEN, H. T. Rêverie e interpretação - captando algo humano. Tradução de Tânia Mara Zalcberg. São Paulo: Escuta, 2013.         [ Links ]

RIBEIRO DA SILVA, F. A. A falta está fazendo falta. Reverso, Belo Horizonte, n. 38, 1994. publicação semestral do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: pivamarli@gmail.com

Recebido em: 09/10/2017
Aprovado em: 16/03/2018

 

Sobre a autora

Marli Piva Monteiro
Médica.
Psicanalista.
Tradutora.
Autora dos livros Feminilidade: o perigo do prazer (Petrópolis: Vozes, 2. ed.) e Mulher profissão mulher (Petrópolis: Vozes, 1990).

 

 

1 XXXV Jornada do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais "A falta está fazendo falta", set. 2017, Belo Horizonte.

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