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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.75 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

O ESPAÇO DA FALTA

 

A falta que consome

 

The lack that consumes

 

 

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Vivemos hoje numa sociedade hedonista, onde o prazer é buscado a qualquer custo. Em decorrência disso, assiste-se a um aumento exacerbado do consumo, como fonte imediata de felicidade. Hoje a moralidade se traduz, para o consumidor, em usufruir o máximo prazer da vida. Em sintonia com a moral do espetáculo, estar feliz não é apenas sentir-se sentimentalmente repleto, mas é preciso se ver semelhante aos ‘vencedores’, aos ‘visíveis’, aos astros midiáticos. A autora usa os exemplos do funk ostentação e do consumo ilegítimo dos políticos corruptos que se utilizam do dinheiro do povo para preencher seu bolso e seu vazio existencial (sua falta). Quando esse espaço fica tomado, vem a angústia. Se ela é obturada, o desejo não aparece, e sem o desejo tem lugar uma repetição interminável de uma mesma cadeia, que o aprisiona e o consome. Os que não mais desejam se acham consumidos ou desaparecidos enquanto sujeitos. Aí se pode falar da falta que consome.

Palavras-chave: Falta, Consumismo, Hedonismo, Funk ostentação, Corrupção, Angústia, Gozo, Desejo.


ABSTRACT

We live in a hedonistic society, where pleasure is sought at all costs. As a result, there is an exacerbated increase in consumption, as an immediate source of happiness. Today, morality is, for the consumer, to enjoy the maximum pleasure of life. In tune with the morality of the spectacle, to be happy is not only to feel sentimentally fulfilled, but one must look like the 'winners', the 'visible', the mediatic stars. The author uses the examples of funk ostentation and the illegitimate consumption of corrupt politicians who use the money of the people to fill their own pockets and their existential emptiness (their lack). When this space is taken, anguish comes. If it is filled, desire does not appear, and without desire there takes place an endless repetition of the same chain, which imprisons and consumes that desire. Those who no longer desire are consumed or disappeared as subjects. Then we can talk about the lack that consumes.

Keywords: Lack, Consumption, Hedonism, Funk ostentation, Corruption, Anguish, Enjoyment, Desire.


 

A palavra “consumir”, da origem latina consumo, consumptere, é polissêmica. Segundo Antônio Houaiss, em seu dicionário da língua portuguesa, tem doze acepções: 1. Destruir (-se) totalmente [a seca consumiu tudo; a casa consumiu-se em chamas]; 2. Mortificar-se [de dor, de remorso]; 3. Aborrecer-se, apoquentar-se [consumia os pais ao comportar-se mal; não se consuma por tolices]. 4. Causar ou sofrer dano à saúde, debilitar-se, abater-se; 5. Fazer uso de, gastar utilizar, empregar; 6. Gastar (tempo) fazendo algo ou vivendo certa experiência (desagradável ou com esforço) [consumimos três anos nesse trabalho]; 7. Gastar até o fim, dilapidar [consome o tempo com coisas inúteis]; 8. Apagar (-se) da memória [o tempo consome as mágoas]; 9. Causar o desaparecimento de, perder, esconder [alguém já consumiu com a minha escova de cabelo]; 10. Comer, ingerir, alimentar-se [os brasileiros consomem pouca carne]; 11. Aplicar dinheiro na compra de artigos de consumo e serviços, comprar, gastar [com a crise, a classe média consome menos]; 11.1 comprar em demasia e frequentemente sem necessidade [a população vai ao shopping para consumir]; 12. Comungar na missa (o sacerdote) [Em que momento o padre consome?]

Como se vê, essa palavra tem uma ampla utilização na língua, e a acepção que hoje mais se usa é o item 11.1, ou seja, comprar em demasia, frequentemente sem necessidade. Acredito, no entanto, que as acepções ‘desaparecimento’ e ‘destruição’ aparecem de muitos modos, na contemporaneidade, com o desvanecimento do sujeito do desejo, nessa busca desenfreada de preencher a falta através de um empanturrar-se de objetos da moda e da tecnologia.

Em seu livro O vestígio e a aura, Jurandir Freire Costa (2004) vai se dedicar ao consumismo contemporâneo, no capítulo Declínio do comprador, ascensão do consumidor. O autor vai falar do culto ao corpo e da violência como dois fenômenos frequentes na sociedade atual. Na busca das causas que possam ser importantes para o aparecimento desses fatores, chama nossa atenção para a reierarquização dos valores tradicionais da sociedade atual, agora sob a égide da moda e da mitologia científica. Há, por parte das massas, um hedonismo vigente, a tal ponto que, pode-se dizer, a maioria dos indivíduos urbanos elegeu o bem-estar e os prazeres físicos como bússola moral da vida. No entanto, existe uma distância grande entre o ideal e a realidade.

Uma coisa é dirigir a vida para a obtenção de prazeres sensoriais; outra coisa é conseguir aquilo com que se sonha (COSTA, 2004, p. 132).

O consumismo aparece, então, como um dos pilares para essa busca do hedonismo. Tal como o conhecemos hoje, tem um sentido totalmente diferente do consumismo dos últimos séculos. É bem típico do final do século XX e do XI. Hannah Arendt (2000), em A condição humana, citada por Costa (2004, p. 133), vai dizer que o consumo teve sua emergência histórica relacionada a três fatores: (a) o desinvestimento sociocultural na ação política; (b) o aumento da produtividade industrial; e (c) a conversão imaginária do trabalho à atividade do labor.

Para Arendt, o aumento da produtividade industrial influiu de modo decisivo na transformação imaginária do trabalho em labor. A velocidade na produção e a venda de novos bens mudou o sentido do ato de fabricar e do ato de comprar. Quem produzia não se percebia mais como autor de coisas feitas para atender necessidades reais, mas de coisas feitas para serem vendidas, sendo ou não necessárias. A venda, e não a produção de coisas úteis, tornou-se a meta final dessa produção. Dessa forma, o homo faber, o fabricante de artefatos duráveis, passou a se perceber como animal laborans, isto é, um produtor de objetos feitos para serem rapidamente descartados.

Para a autora essa mudança

[...] consistiu em tratar os objetos de uso como se fossem bens de consumo, de sorte que uma cadeira ou uma mesa seriam consumidas tão rapidamente quanto um vestido, e um vestido tão rapidamente quanto o alimento. [...] A Revolução Industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do labor, cujo destino é serem consumidos, ao invés de produtos do trabalho que se destinam a ser usados (ARENDT, 2000 citada por COSTA, 2004, p. 134).

Essa mudança trouxe outra inovação cultural: a subordinação do princípio da utilidade ao princípio da felicidade. A utilidade se tornou serva da felicidade.

Ou seja, a produção e o consumo passaram a ter valor à medida que se referiam à felicidade dos fabricantes e dos compradores. Para o homo faber, o auge da moralidade consistia em produzir coisas que enriqueciam a realidade e subsistiam à sua morte; para o consumidor, em usufruir o prazer que podia extrair da vida.

Como afirma Arendt (COSTA, 2004, p. 135), até o advento da Revolução Industrial sociedade alguma havia imaginado que a felicidade pudesse advir do consumo de bens. Apenas os mais “necessitados e pobres”, aqueles que estivessem em estado de extrema privação física, poderiam acreditar nisso. Mas os mais abastados também vinculam sua felicidade ao consumo, o que seria uma fonte de insatisfação, pelo deslizamento de objetos desejados. Assim que um é conseguido, outro objeto já se faz desejável.

Arendt não explicita bem essa questão da insatisfação do consumidor. Já outro autor, Jean Baudrillard (1970, citado por COSTA, 2004, p. 139), afirma explicitamente que a insatisfação emocional é o motor do consumismo. Em seu livro La société de consommation ele diz que o estado de insatisfação crônica é que torna o indivíduo um consumista modelo. Para mostrar que o consumo é totalmente dissociado da satisfação, o autor sublinha o caráter de dever que o gozo assumiu na sociedade moderna. Para ele o gozo hoje é obrigatório e institucionalizado, não como direito ou como prazer, mas como dever do cidadão.

Outro autor de interesse na compreensão do consumismo é Richard Sennett (1978, citado por COSTA, 2004, p. 154). Para ele a satisfação é compatível com o consumo. Em seu livro O declínio do homem público ele analisa o surgimento da “tirania da intimidade” nos séculos XVIII e XIX, que se prolongou no psicologismo do século XX. Segundo Sennett as crenças emocionais encontraram na apropriação dos objetos um meio de exteriorização no mundo. Ou seja, a cultura da intimidade foi construída não só de efusões sentimentais, mas também com a dureza, o volume e a massa de objetos necessários à sua visibilidade e difusão culturais.

A fabricação do vidro, no século XIX, favoreceu a exposição dos objetos nas vitrines das grandes lojas de departamento em Londres e Paris, e os produtos antes escondidos, passaram a ser exibidos para a multidão de passantes. A essa nova forma de exibição seguiu-se o surgimento da publicidade.

A partir de então, esses objetos passaram a ser associados à preferência de pessoas ricas, célebres ou aristocráticas, fazendo de cada um deles um signo visível da ‘personalidade’ do comprador. Ser único, ser distinto, não ser como todo mundo implicava materializar caráter e gostos em objetos que poucos ou ninguém mais possuía.

O intimismo se espraiou pelo mundo dos negócios, e o mundo dos negócios explorou o intimismo para maximizar os lucros.

Ao considerar o ‘comprismo’ burguês como o modo de produção material das crenças emocionais, Sennett (1978 citado por COSTA, 2004, p. 155) fez com que o universo sentimental deixasse de ser um fantasma etéreo, engavetado no interior da mente, para se exteriorizar em objetos e emoções que agora fazem parte do complexo organismo-mundo, indivíduo-mundo, indivíduo-realidade ou sujeito-objeto material.

 

Qual seria, então, a função dos objetos na moral dos sentimentos?

Apesar de se criticar a prática do ‘comprismo’ exacerbado, os objetos ocupam um lugar imprescindível na moral dos sentimentos. Um autor como Peter Gay (1984, citado por COSTA, 2004, p. 160) mostra como os objetos dos compradores dos séculos XVII e XVIII (que se constituíam desde botões, objetos de decoração, brinquedos, até livros, telas para pintura, papéis de carta, tinta para escrever, obras de arte), embora usados de maneira individualista, serviram para expressar pretensões éticas e estéticas para todos.

Jurandir Freire Costa (2004, p. 160-161) se pergunta

[...] o que teria sido a moralidade familiar sem o aconchego material dos lares burgueses ou o apego às cerimônias tradicionais de nascimentos, batismos, casamentos, formaturas e funerais etc. O sentido de todos esses eventos era entendido graças à maciça presença dos objetos próprios para cada ocasião [...] As emoções exprimem, em primeira instância, as disposições corporais dos organismos humanos individuais. Mas, para se transformarem em condutas, têm de recorrer ao entorno material. Sem os objetos que operem a transição entre o biológico e a manifestação cultural, o fato emocional não teria como se tornar visível, entendível e compartilhável por todos.

 

A função dos objetos na moral da sociedade do espetáculo

No momento atual, em que vivemos numa sociedade que tende a transformar tudo em espetáculo, experimentamos também um auge de consumismo, que muitas vezes é considerado como causa de desorientação pessoal e violência social. Mas para autores como Sennett e Freire Costa essa exacerbação tem sua origem muito mais na redefinição de nossos ideais de felicidade do que na natureza alienante das mercadorias.

O sentido que o objeto pode vir a ter depende da relação sujeito-mundo. Assim sendo, a questão essencial do ‘comprismo’ não é saber se os objetos distorcem ou não a vida emocional, mas como tomam parte da gestação, da manutenção e da reprodução de nossos ideais de eu.

Hoje três eventos socioculturais condicionam a apropriação emocional dos objetos: (a) a mudança na natureza do trabalho, (b) as novas percepções da imagem do corpo e (c) o enfraquecimento moral da autoridade. A mudança na natureza do trabalho, estudada por Sennett em A corrosão do caráter (1999), afirma que o bom profissional é flexível, assertivo e, se possível, polido. Demonstra desapego às pessoas, aos lugares geográficos, às tradições étnicas, religiosas ou políticas; enfim, à própria história individual. É a identidade do ‘desenraizado’.

A nova economia impõe como ideal de identidade aquela do “turista” (BAUMAN, 1997 citado por COSTA, 2004, p. 164). É o que vê o mundo sem fronteiras e nunca delineia o futuro em função do presente. Foi a esse fenômeno que Bauman chamou de “identidade de palimpsesto”. Os objetos não devem mais remeter o sujeito à sua história pregressa ou a cenários culturais que dificultem o desempenho econômico (BAUMAN, 1997, citado por COSTA, 2004, p. 164, 165). O apreciável é não deixar rastros. O objeto deve “agregar” valor social – e não sentimental – a seu portador, ou seja, um passaporte que identifique o turista vencedor em qualquer lugar, situação ou momento da vida.

O crescimento do papel da mídia na formação das mentalidades reforça a segunda mudança, a participação do corpo físico na constituição da subjetividade de dois modos: na propaganda exacerbada de cosméticos, fármacos e instrumentos de aperfeiçoamento da forma corporal e na identificação de certos predicados corporais ao sucesso social.

Em sintonia com a moral do espetáculo, a mídia visa, sobretudo, tornar plausíveis e convincentes as visões particulares. A massa é levada a admirar e querer imitar o estilo de vida dos ricos, dos poderosos e dos famosos. Mas tem à sua disposição só a imagem do corpo. E ter um corpo guarnecido como o dos bem-sucedidos é a maneira que a maioria encontrou para aceder imaginariamente a uma condição social da qual está definitivamente excluída, salvo em raríssimas exceções. Estar feliz não é só sentir-se sentimentalmente repleto, mas é preciso se ver corporalmente semelhante aos ‘vencedores’, aos ‘visíveis’, aos astros e às estrelas midiáticos.

Na chamada felicidade sensorial, na qual o cultivo das sensações passou a concorrer ombro a ombro com o cultivo dos sentimentos, o corpo é despertado para uma nova prontidão prazerosa: drogas psicoestimulantes, medicamentos, alimentos energéticos, tônicos, hormônios, próteses orgânicas diversas, instrumentos que transformam a força mecânica em força ou plasticidade muscular, etc. O objeto está diretamente ligado à felicidade das sensações.

A terceira mudança, a das transformações da autoridade, mostrou o enfraquecimento dessa noção. Para Sennett (2001, citado por COSTA, 2004, p. 168) autoridade em coisas futuras ou passageiras é um contrassenso. Autoridade é sabedoria fundada na história. Não se pode ser ou ter autoridade no que ainda não aconteceu ou no que aconteceu, mas não resistiu à prova do tempo. A ‘celebridade’ hoje é a autoridade do provisório (COSTA, 2004, p. 169). Seus representantes sociais são os que sabem aliar moda e tecnologia a serviço da moral do entretenimento. O que vale é a aliança entre o sucesso e a visibilidade. A autoridade está ligada ao mundo do trabalho e do esforço esfalfante. No mundo do entretenimento o desejável é ser pluralista e tolerante, viver e deixar viver!

O que vale não é pensar no que se faz ou se acredita, mas sim a leveza e o alto astral (COSTA, 2004, p. 171). Nesse panorama, os objetos, quando faltam, são olhados com cobiça e quando sobram, são olhados com desdém, indiferença ou constrangimento. O nó cultural que os ligava ao passado moral e sentimental de cada um e aos objetivos de todos se desfez na ideologia do espetáculo.

Nesse ponto, gostaria de trazer duas vinhetas que, me parece, ilustram bem essa questão do consumismo em nossa sociedade atual, que fascina tanto as classes menos favorecidas materialmente quanto as mais abonadas. Uma dessas vinhetas atinge as periferias das grandes cidades, especialmente São Paulo, uma das megalópoles mundiais.

As periferias e seu modo de vida são universos ainda pouco conhecidos, e neles a internet e o mundo do espetáculo têm um efeito avassalador. Os adolescentes dessas periferias, principalmente, ainda constituindo sua identidade social, alimentam sonhos como todos os outros jovens da nossa sociedade e querem para si as roupas de marca, os tênis caros e outros sinais que os coloquem na rota daqueles que têm valor social. Trazidos pela esteira da ascensão econômica das classes populares do Brasil da última década, são siderados pelas comunicações midiáticas, que os levam ao arremedo da vida e dos valores de culturas mais abonadas, como a da América do Norte.

Comandando esse estilo de vida, aparece o ritmo hip-hop, cujo tributário entre nós é o funk, que, em suas letras dos grupos cariocas, principalmente, costuma fazer apologia das armas, das drogas, do trato abusivo de mulheres e da violência.1 Diferentemente dessa vertente, uma corrente do funk das periferias de São Paulo traz o funk ostentação, que, segundo seus representantes não faz apologia das drogas e da violência, mas elogia o consumo, o uísque, as “minas” bonitas, os carros importados, as joias e relógios de ouro, e têm clipes postados no You Tube com milhões de visualizações. Alguns enriquecem através da música, assim como seus empresários e são chamados de “elite da periferia”.

No entanto, apesar de terem criatividade e domínio do dialeto da Baixada Santista, têm baixa escolaridade e são egressos da escola. Vez por outra fazem seus rolezinhos, que são incursões súbitas nos shoppings, templos sagrados do reino do consumo e dos objetos de seu desejo.

O que se tornou evidente nesse falso milagre brasileiro é que foram formados consumistas, e não cidadãos que teriam direito ao acesso a bens imateriais mais sólidos, como educação e cultura, assim como a satisfação de necessidades mais básicas, e não o acesso a um consumo de baixo nível, feito de objetos falsificados, na maioria das vezes.

Há nisso um alienado mimetismo das nações mais ricas. Já foi dito que, se todas as nações do mundo consumissem como os americanos, seriam necessários seis planetas. Enquanto uma parte dos jovens brasileiros, mais politizada, quer voltar a ter valores como a simplicidade voluntária e o desaceleramento do consumo, outra parte quer consumir mais, quer luxo e não cesta básica.

Aliás, essa ostentação teve, entre nós, um antecessor ilustre, o famoso carnavalesco Joãozinho Trinta, quando declarou que “pobre gosta de luxo, intelectual é que gosta de miséria”. Mas ele se referia à doce ilusão do carnaval, quando os papéis se invertem, e os reis são outros, ao menos por uma noite mágica. “Quarta-feira sempre desce o pano”, como disse Chico Buarque, (1967). Hoje esse pano não desce facilmente: “quem brincava de princesa, acostumou na fantasia” (CHICO BUARQUE, 1966).

A ostentação vem também de cima, da classe dirigente, rapace e sôfrega de bens materiais.

Esta é a minha segunda vinheta. Questionada por alguém sobre os motivos que a levaram, junto com seu marido, a uma farra consumista de joias e bens materiais, tudo adquirido com dinheiro público, o que empurrou o estado do Rio de Janeiro inteiro à bancarrota, a mulher do ex-governador Sérgio Cabral declarou: “Estávamos em êxtase!”. E me pergunto: excitação de quem está fora de si, diante do prazer de preencher seu vazio, “tudo vale a pena se o prazer não é pequeno”? (COSTA, 2004, p. 176). Êxtase que conduz ao gozo escancarado, que não leva em consideração nenhum papel social, nenhuma responsabilidade com a coisa pública.

De acordo com Sennett (2004, citado por COSTA, 2004, p. 172), o status se desvinculou do prestígio, ou seja, a ascensão social se apartou da decência moral, e quem quiser possuir uma deve abrir mão da outra.

Essa parece ser uma constante dos membros de nossa classe dirigente. Ávidos pelo poder do dinheiro, não se intimidam em ações ousadas e ridículas de apropriação do dinheiro do povo e trocam seu lugar na história oficial do País por uma frequência alta na crônica policial. Se antes nossa figura pública saiu da vida para entrar na história (Getúlio Vargas, em 1954), hoje nossos políticos saem da história para entrar em cana. Arruinados pelo êxito imediato, as eleições vencidas, se deixam levar pelas ambições mais desqualificadas, em que o ideal se rende ao êxtase temporário do poder da “grana que ergue e destrói coisas belas” (CAETANO VELOSO, 1978).

Se a compra de objetos corporificava ideais éticos, veio a se tornar algo parecido com o “consumismo”, ao ser modificada pela moral das sensações e do espetáculo. Sendo assim, os objetos passaram a contribuir exclusivamente para a autoabsorção no próprio corpo e desfizeram os vínculos com o enriquecimento da moralidade social (COSTA, 2004, p. 180).

Para o sujeito da psicanálise, o consumismo se configura também numa tentativa de tamponar a falta. Nele se desliza de um objeto a outro, sem nunca se chegar à verdadeira satisfação. Na verdade, aqui se trata de elidir a angústia, esse afeto que não engana e que traz a dor de existir para o próprio corpo.

Mas a angústia, além de um afeto, é um tempo de passagem entre o gozo e o desejo. Se o gozo representa um excesso, algo a mais que nos captura numa determinada posição, e que de uma satisfação inicial nos leva a uma situação de impasse e destruição (como coçar a perna até ferir), o desejo é o que move em direção à verdade de cada um. Não se acede ao desejo sem experimentar a angústia. Ela é um tempo de desgarramento do sentido que se dava a algo e que clama por mudança. Quando há uma fixação nesse desgarramento é aí mesmo que a falta faz falta, porque se fica preso a uma representação qualquer que tampona essa falta (como aprendemos no Seminário da angústia, ministrado por Gilda Vaz, 2017).

É o que acontece na posição de um consumismo cego ou no êxtase dos políticos corruptos. Essa representação é uma fantasia (o ideal do eu que se almeja) e tem que existir porque é o apoio do desejo, o modo como cada qual responde ao seu próprio ser e ao enigma do desejo do Outro, uma janela que se abre ao real. Mas ela tem que ser apenas um apoio e não uma resposta ao desejo.

Quando se cristaliza, o desejo não aparece e se cai no gozo. A fantasia é necessária como o lugar em que o sujeito se inscreve no campo social, na linguagem, na cultura. Mas ela não dá conta de todo o ser. Sempre falta algo, e essa falta a ser, que é o vazio, é necessária para que haja vida.

Quando esse espaço fica tomado, vem a angústia como sinal de alerta. Quando ela chega, é bem-vinda, porque indica que já há uma divisão, uma tentativa de retificação subjetiva. O desejo se mantém sempre com uma pergunta e não com uma resposta cabal. Os vazios da estrutura são os operadores que permitem o seu movimento, como no jogo do ‘resta um’.

Se a falta é obturada totalmente, o desejo fica travado em seu movimento e tem lugar uma repetição interminável de uma mesma cadeia, onde ele está aprisionado e, por que não dizer, consumido.

Consumidos, ou desaparecidos como sujeitos, estão os que não desejam mais.

Aí, então, podemos falar da falta que consome.

 

Referências

COSTA, J. F. Declínio do comprador, ascensão do consumidor. In: ______. O vestígio e a aura: corpo e consumismo na moral do espetáculo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004. p. 131-183.         [ Links ]

HOLANDA, C. B. Quem te viu, quem te vê. Chico Buarque de Holanda, LP, RGE, 1967.         [ Links ]

HOLANDA, C. B. Sonho de um carnaval. Chico Buarque de Holanda, LP, RGE, 1966.         [ Links ]

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.         [ Links ]

RODRIGUES, G. V. Seminário sobre a angústia, ministrado no CPMG, em março, maio e agosto de 2017. Anotações pessoais.         [ Links ]

VELOSO, C. Sampa. Muito, LP, Phillips, 1978. http://g1.globo.com/platb/yvonnemaggie/2014/01/23/funk-ostentacao-e-rolezinho/. Acesso em: 21 ago. 2017.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

Recebido em: 28/02/2018
Aprovado em: 16/03/2018

 

Sobre a autora

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia efetiva do CPMG.
Vice-Presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (2017-2020).<

 

 

1 http://g1.globo.com/platb/yvonnemaggie/2014/01/23/funk-ostentacao-e-rolezinho/.

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