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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.75 Belo Horizonte Jan./June 2018

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

A psicose, o sexual e a linguagem

 

Psychosis, sexual and language

 

 

Adriano Vieira de Morais; Paulo Roberto CeccarelliI, II, III

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Universidade Federal de Minas Gerais
III Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo pretende, por meio da pesquisa bibliográfica, discutir as possíveis relações entre a linguagem o sexual e a psicose. Em seguida, os autores tentam demonstrar como se dá a etiologia da psicose, sabendo-se que a linguagem do psicótico apresenta algumas especificidades. Busca-se apresentar a forma como isso se dá, analisando algumas das manifestações características desses indivíduos e suas relações com o sexual. A escolha pela teoria freudiana deve-se ao fato de sua teoria servir de base para todas as teorias psicanalíticas surgidas posteriormente.

Palavras-chave: Psicose, Sexual, Linguagem, Psicanálise.


ABSTRACT

The present article intends, through the bibliographical research, to present concepts such as sexual and language in accordance with psychoanalytic theory. Afterwards, to demonstrate how the etiology of psychosis occurs, and, furthermore, knowing that the psychotic language has some specificities, it seeks to present the way in which this occurs, analyzing some of the characteristic manifestations of these individuals, with the concept of sexual. The choice of Freudian theory is due to the fact that Freud was considered the father of psychoanalysis, and thus his theory serves as the basis for all the psychoanalytic theories that have emerged since.

Keywords: Psychosis, Sexual, Language, Psychoanalysis.


 

Introdução

A sociedade ocidental sempre produziu discursos que tentam controlar as manifestações pulsionais, isto é, controlar as múltiplas expressões do sexual (CECCARELLI, 2015). O controle do corpo era a única maneira de alcançar o controle sobre a sexualidade das pessoas. Entretanto, essa tentativa sempre foi frustrada, porque é impossível as formas discursivas gerenciarem o sexual. Um dos efeitos do discurso normatizador foi a produção de doenças nervosas, entre elas, algumas formas de psicose (FREUD, [1908] 1996).

Em todos os quadros de psicose são encontradas diferenças na linguagem do sujeito, porém deve-se ressaltar que, ainda assim, o psicótico também está inserido na linguagem. O sexual também é presente nesse quadro clínico, embora nem sempre seja reconhecido ou identificado como tal.

O funcionamento da linguagem e a identificação do sexual no psicótico pode tornar o entendimento desse quadro mais fácil de ser tratado ou pelo menos desvendado, pois entende-se que esse sujeito também é um ser humano e, como tal, deve ter condições de tratamento tão digno quanto as outras pessoas da sociedade.

 

1 Psicanálise e linguagem

Desde os primórdios da psicanálise, ao traçar sua teoria sobre o funcionamento mental, Freud já realizava alguns estudos sobre a linguagem. Para o autor, ao desenvolver a linguagem, o homem passou a compreender as adversidades do mundo e, assim, inventou maneiras para superá-las, por exemplo, a pesquisa. A linguagem era considerada magia, pois os seus pensamentos lhe pareciam onipotentes, e ele compreendia o mundo pelo seu próprio eu (FREUD, [1928] 1987).

No texto A interpretação das afasias, Freud ([1891] 1977) apresenta uma de suas primeiras contribuições para o tema.

Nesses escritos, Freud cita em relação à linguagem:

Só nos resta, pois, formular a hipótese de que a região cortical da linguagem seja um articulado tecido cortical dentro do qual associações e as transmissões em que se apoiam as funções da linguagem procederiam com uma complexidade não propriamente compreensível (FREUD, [1891] 1977, p. 37).

O aparelho de linguagem, apesar de, na hipótese de Freud ([1981] 1977) estar localizado numa região cortical, não nasce com o sujeito, ou seja, não está pronto desde o nascimento, mas sim é construído gradativamente pela aprendizagem.

A linguagem se encontra num lugar concebido como uma totalidade, indivisível ou impossível de se fragmentar em “centros” e, somente por isso, pode ser chamado de aparelho. Sua construção não é realizada sem a relação com o outro, mas numa relação com outro aparelho de linguagem (GARCIA-ROZA, 2004).

Garcia-Roza (2004), numa perspectiva freudiana, cita que nesse aparelho ocorrem articulações entre representações e sentido. Desse modo, a representação-palavra seria composta pela relação entre a imagem acústica, imagem visual da letra, a imagem motora da linguagem e a imagem motora da escritura. Essas imagens produzidas no mundo exterior geram impressões que produzem excitações no córtex cerebral, o que faz com que ali se inscrevam permanentemente.

Há ainda a definição da representação da coisa, que é concebida como uma catexia, seja nas imagens diretas da memória da coisa, seja nos traços remotos de memória derivados das primeiras (FREUD, [1915] 1996).

Ao descrever sua primeira tópica (Ics., Pcs. e Cs.), Freud afirma que o inconsciente tem seu núcleo formado por representantes pulsionais, ou seja, pulsões carregadas de desejo (FREUD, [1915] 1996).

Para chegar a essa conclusão, o autor diferenciou o que chamou de representação consciente e representação inconsciente.

Agora parece que sabemos de imediato qual a diferença entre uma representação consciente e uma inconsciente. As duas não são, como supúnhamos, registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades psíquicas, nem tampouco diferentes estados funcionais de catexias na mesma localidade; mas a representação consciente abrange a representação da coisa mais a representação da palavra que pertence a ela, ao passo que a representação inconsciente é a representação da coisa apenas (FREUD, [1915] 1996, p. 206).

Assim, o Ics contém os investimentos da coisa dos objetos, que são “as primeiras e verdadeiras catexias objetais” (FREUD, [1915] 1996, p. 206); o Pcs. ocorre quando a representação da coisa se torna hipercatexizada por causa de sua ligação com as representações da palavra que lhe correspondem. Portanto, uma representação que não seja posta em palavras permanecerá no inconsciente do sujeito em estado de recalque (FREUD, [1915] 1996).

 

2 A psicanálise e o sexual

O tema do sexual foi mais extensamente desenvolvido no texto de Freud Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (LAPLANCHE, 2003). Esses escritos contêm a exposição do que Laplanche chama de “sexual pulsional”, ou seja, a sexualidade no sentido mais amplo do termo, uma sexualidade que diz respeito não somente à reprodução, mas também ao sexual perverso infantil. É infantil no que tange ao fantasma, ao inconsciente, mais além da diferença dos sexos; é, antes de tudo, oral, anal ou paragenital. O sexual é polimorfo, múltiplo e perverso (FREUD, [1905] 1996).

O sexual foi uma das mais importantes descobertas da psicanálise. A teoria do sexual aponta que o destino das pulsões infantis – que nesse momento, não visa a reprodução – é ir em busca, a todo e qualquer custo, do prazer; para tanto, o objeto pouco importa. Dessa forma, paradoxalmente, tudo convém à pulsão e nada lhe satisfaz.

O sexual pode ainda ser considerado um enigma do ser humano, pois ele está presente em todas as sociedades, e todas elas criam mecanismos que têm por objetivo lidar com suas demandas pulsionais (CECCARELLI, 2015; 2018).

Laplanche (2003) define o sexual como aquilo que é condenado pelos adultos: é reprovado por ser sexual e só é reprovado porque é o sexual (sexual pulsional). Portanto, o sexual é o recalcado. E só é recalcado por ser sexual.

Desse modo, surge a seguinte questão: será o inconsciente, em si, o sexual?

Segundo Ceccarelli (2015), o sexual é o próprio inconsciente, que se manifesta pelas fantasias, pelos atos falhos, pelos devaneios, ou em situações em que o estranho nos surpreende. Em concordância com Laplanche, é o recalcado.

Assim sendo, ao tentar controlar as pulsões, a cultura desenvolve discursos que surgem como modos de normatização ou até mesmo de patologização.

Entretanto, o que se percebe é a falha desses discursos, tendo em vista que a sociedade ocidental continua sendo produtora das doenças mentais. Essa falha denuncia que o sexual resiste a todas as maneiras de normatividade e controle, e que os discursos produzidos pela moral sexual são fruto de processos secundários, que podem regular o processo primário (CECCARELLI, 2015).

A partir dessas considerações, pode-se perguntar sobre as relações entre o sexual e as psicoses. Será ele o responsável por fazer surgir esse modo de funcionamento psíquico? Seria ele um dos elementos presentes na especificidade desse modo de funcionamento psíquico?

 

3 A etiologia da psicose em Freud

Para avançarmos na compreensão da psicose, retomaremos alguns conceitos que serão fundamentais para o nosso estudo: id, ego e superego,1 que se caracterizam como instâncias psíquicas descritas por Freud em sua segunda tópica.

Para Freud ([1923] 1996), cada indivíduo tem uma organização lógica dos processos mentais chamada de eu. A ele a consciência é ligada e é nele que se dá o controle das descargas excitatórias voltadas ao mundo externo.

Dessa forma, sua origem vem das sensações corporais. O eu

[...] pode ser, assim, encarado como uma projeção mental da superfície do corpo, além de representar as superfícies do aparelho mental (FREUD, [1923] 1996, p. 40).

Existe, contudo, na teoria psicanalítica freudiana outra maneira de explicar a origem do eu: ele é um

[...] produto de identificações que levam à formação no seio da pessoa de um objeto de amor investido pelo id (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970, p. 172).

Assim sendo, de acordo com essa concepção, o eu é formado em consequência das identificações que o sujeito realiza ao longo da vida.

Ao se referir ao isso, Freud ([1923] 1996) o caracteriza como uma entidade que se comporta como se fosse Ics., e afirma que nessa parte do aparelho psíquico se encontram os materiais recalcados. O princípio do prazer é uma das suas características, o que faz com que ele esteja sempre em conflito com o eu, que é considerado como o princípio da realidade.

O supereu, por sua vez, é considerado por Freud ([1923] 1996) como uma gradação do eu, uma diferenciação dentro dele.

Para Laplanche e Pontalis (1970, p. 643), o papel do supereu é “[...] assimilável ao de um juiz ou de um censor relativamente ao eu”.

Os conceitos descritos acima são importantes para se entender a psicose.

Na psicanálise, o interesse pelas doenças mentais se deu nas afecções consideradas mais acessíveis à investigação analítica, estabelecendo-se, então, a diferenciação entre neuroses, perversões e psicoses.

A etiologia tanto da psiconeurose quanto da psicose sempre é a mesma. Ela parte de uma frustração ou de uma não realização de desejos infantis não superados. Essa frustração é sempre externa; porém, em alguns casos ela pode partir do agente interior (supereu), que assume as representações das exigências da realidade.

O resultado patogênico dependerá de como o eu reagirá à tensão conflitual descrita anteriormente. Dessa forma, ele poderá se manter fiel ao mundo externo e tentar calar o isso ou, então, ser derrotado pelo isso e perder o contato com a realidade (FREUD, [1924a] 1996).

Desse modo, Freud ([1924a] 1996) acreditava haver doenças que têm sua etiologia no conflito entre o eu e o supereu. Para esses tipos de doenças ele atribuiu o nome de “psiconeuroses narcísicas” – conceito que será retomado mais à frente.

Para diferenciar a neurose da psicose, em seu artigo Neurose e psicose, Freud ([1924a] 1996) diferencia o primeiro conceito do segundo ao dizer que

[...] a neurose é um resultado de um conflito entre o ego e o id [...] a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo (FREUD, [1924a] 1996, p. 169).

Dessa maneira, na psicose o mundo externo não é percebido ou, quando muito, sua percepção não agrega nenhum valor para o eu. Assim sendo, no estado psicótico, o sujeito não aceitará novas percepções do mundo externo e as representações externas que ele já tinha em seu mundo psíquico perderão significação, ou seja, seu investimento libidinal.

Em consequência disso, Freud afirma:

O ego cria, autocraticamente, um novo mundo externo e interno, e não pode haver dúvida quanto a dois fatos: que esse novo mundo é construído de acordo com os impulsos desejosos do id e que o motivo dessa dissociação do mundo externo é alguma frustração muito séria de um desejo, por parte da realidade – frustração que parece intolerável (FREUD, [1924a] 1996, p. 170).

Ao perder o contato do eu com o mundo externo, o sujeito necessita criar um tipo de remendo no lugar dessa fenda que aparece, e daí surge o delírio.

Segundo Freud,

[...] isso se deve ao fato de que, no quadro clínico da psicose, as manifestações do processo patogênico são amiúde recobertas por manifestações de uma tentativa de cura ou uma reconstrução (FREUD, [1924a] 1996, p. 171).

Dessa forma, a realidade do sujeito psicótico encontra-se alterada, e uma de suas tarefas é adquirir para si

[...] percepções de um tipo que corresponda à nova realidade, e isso muito radicalmente se efetua mediante a alucinação (FREUD, [1924b] 1996, p. 209).

A compreensão da psicose na teoria psicanalítica freudiana é enriquecida com o termo “neurose narcísica”, o que nos remete ao narcisismo, conceito central da psicanálise. O narcisismo pode ser encontrado em diversos tipos de pessoas, seja neuróticas, seja homossexuais, etc. O que caracteriza o narcisista é que ele busca a si mesmo no objeto amoroso (FREUD, [1914] 1996).

Laplanche e Pontalis (1970) especificam o narcisismo como um estado de autoerotismo, em que o eu do indivíduo é investido como objeto de amor.

Além disso, Freud dividiu o narcisismo em dois modos de relação de objeto: o narcisismo primário e o narcisismo secundário.

Em relação ao primário, trata-se de um estado primitivo, um “estado em que a criança investe toda a sua libido em si mesma” (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970, p. 368); ou seja, a criança tem a si própria como um objeto de amor, antes mesmo de escolher outros objetos exteriores a ela (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970).

Já o narcisismo secundário é formado a partir das identificações do eu com outrem, ou seja, forma-se segundo a imagem que o indivíduo adquire de si de acordo com a concepção que o outro faz dele; o narcisismo é o amor por essa imagem introjetada.

Assim sendo, considera-se o eu como um reservatório de libido que a envia aos objetos e está sempre preparado para receber de volta e absorver a libido que retorna deles (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970).

A expressão “neurose narcísica” é utilizada por Freud ([1914] 1996) para nomear as doenças mentais que se caracterizam pela retração que a libido sofre em relação ao eu.

Laplanche e Pontalis (1970, p. 395) consideram que:

Esta oposição é simultaneamente de ordem técnica – dificuldade ou impossibilidade de transferência libidinal – e de ordem teórica – retração da libido sobre o ego. Por outras palavras, a relação narcísica prevalece nas estruturas em causa. Neste sentido, Freud considera equivalentes as neuroses narcísicas e as psicoses, a que ainda chama de parafrenias.

Freud ([1914] 1996) cita que na neurose narcísica as pessoas adquirem sintomas megalomaníacos e perdem o interesse pela realidade. Para explicar esse processo, ele afirma que o parafrênico retira seu investimento libidinal das pessoas e das coisas, e não substitui esse investimento por outros na fantasia. Quando o substitui, aparentemente esse processo é secundário, estabelecendo, então, uma tentativa de recuperação que visa levar a libido em direção aos objetos.

Em relação à formação da megalomania, Freud ([1914] 1996) sugere que a responsável por sua origem é a libido objetal, que, ao ser separada do mundo exterior, retorna ao eu, criando as atitudes narcísicas.

Esse retorno da libido ao eu faz com que ela seja investida nos objetos irreais (introversão), ocasionando um represamento. Quando falha a elaboração da megalomania, esse represamento da libido no eu se torna patogênico, e inicia-se um processo de recuperação ou restauração, dando a impressão de que isso é uma doença. A restauração ocorre quando falha o retorno da libido, e essa libido é novamente reinvestida nos objetos, mas sob condições diferentes da catexia primária (FREUD, [1914] 1996).

Para Freud ([1914] 1996), é preciso superar o narcisismo para que a libido seja investida ou ligada aos objetos, evitando, então, o adoecimento. Assim, um egoísmo forte protege contra esse adoecimento; entretanto, deve-se amar para não adoecer (FREUD, [1914] 1996).

Os fenômenos da neurose narcísica se devem a uma questão de represamento da libido do eu, causando ansiedade. Como explicação para a causa de sofrimento desses fenômenos, Freud afirma que isso acontece porque o desprazer expressa um grau elevado de tensão,

[...] e que, portanto, o que ocorre é que uma quantidade no campo dos acontecimentos materiais é transformada, aqui como em outros lugares, na qualidade psíquica do desprazer (FREUD, [1914] 1996, p. 92).

A libido liberada desse desprazer ou frustração se liga não às fantasias do indivíduo, mas ao seu eu. O mecanismo da megalomania deve-se a essa quantidade de libido (FREUD, [1914] 1996).

A parafrenia, ou neurose narcísica, frequentemente acarreta num desligamento apenas parcial da libido dos objetos e, por isso, Freud distinguiu três tipos de fenômenos nesse quadro:

(1) os que representam o que resta de um estado normal de neurose (fenômenos residuais); (2) os que representam o processo mórbido (afastamento da libido dos seus objetos e, além disso, megalomania, hipocondria, perturbações afetivas e todo tipo de regressão); (3) os que representam a restauração, nos quais a libido é mais uma vez ligada a objetos, como uma histeria (na demência precoce ou na parafrenia propriamente dita), ou como numa neurose obsessiva (na paranoia) (FREUD, [1914] 1996, p. 93).

Assim, as neuroses narcísicas englobam o grupo das psicoses funcionais, ou seja, aquelas cujos sintomas não provêm de uma lesão somática (LAPLANCHE; PONTALIS, 1970).

 

4 A psicanálise freudiana: o sexual e seus efeitos na linguagem do psicótico

Tendo em vista o que foi apresentado até então, interessa-nos saber como o sexual aparece na linguagem do psicótico.

Em O inconsciente, Freud ([1915] 1996), escreve que na esquizofrenia ocorre, principalmente nas etapas iniciais, grandes modificações na fala do indivíduo. Com frequência, os pacientes modificam a maneira de se expressar, tornando suas falas afetadas. Constroem suas frases de maneira desorganizada, tornando-as incompreensíveis para quem ouve, o que faz parecer que suas pontuações sejam incoerentes ou ilógicas.

Geralmente na esquizofrenia o indivíduo refere-se aos órgãos corporais ou suas inervações como os principais conteúdos de sua fala (FREUD, [1915] 1996). Na esquizofrenia as palavras estão sujeitas ao processo primário, que é análogo àquele processo que suscita as imagens oníricas dos sonhos. As palavras passam por uma condensação e sofrem também um deslocamento, transferindo, então, todo o investimento libidinal de uma palavra para outra.

Esse processo pode ser tão complexo, que apenas uma palavra pode assumir a representação de todo um encadeamento de pensamento no esquizofrênico, ou seja, ele passa a tratar as palavras como coisas, gerando os neologismos, por exemplo. A esse processo ele deu o nome de formação substitutiva.

Para ilustrar a formação substitutiva na esquizofrenia, Freud ([1915] 1996) cita o exemplo de um paciente para o qual espremer os cravos era um substituto da masturbação, e a cavidade que surgiu em sua pele por sua própria culpa é o órgão genital feminino, que deve ser considerado, portanto, como a evidente ameaça da castração – ou pelo menos a fantasia dessa ameaça – provocada pela masturbação.

Na formação substitutiva com os sintomas da esquizofrenia, o que ocorre é a predominância “do que tem a ver com as palavras sobre o que tem a ver com as coisas” (FREUD, [1915] 1996, p. 205).

Até onde se pode perceber, existe apenas uma similaridade muito pequena entre o espremer um cravo e uma emissão do pênis, e ela é ainda menor entre os inúmeros poros rasos da pele e a vagina; mas o primeiro caso há, em ambos os exemplos, um ‘esguicho’, enquanto que, no último, o cínico ditado ‘um buraco é um buraco’ é verdadeiro em seu sentido verbal. O que dita a substituição não é a semelhança entre as coisas denotadas, mas a uniformidade das palavras empregadas para expressá-las. Onde as duas – palavras e coisas – não coincidem, a formação de substitutos na esquizofrenia diverge do que ocorre nas neuroses de transferência (FREUD, [1915] 1996, p. 205).

Uma das características mais impressionantes da esquizofrenia é o pensamento, isto é, os atos de investimentos libidinais, que se encontram distantes da percepção, isentos de qualidade e inconscientes, e somente podem se tornar conscientes a partir de uma ligação com resíduos de percepções das palavras (FREUD, [1915] 1996).

Desse modo, o processo de pensar do esquizofrênico é caracterizado pela maneira de tratar as coisas concretas como se fossem abstratas, pois, para esse indivíduo, as palavras não têm relação com as representações-objeto que são inconscientes.

Na esquizofrenia, recalque “consiste da retirada da catexia instintual dos pontos que representam a representação inconsciente do objeto” (FREUD, [1915] 1996, p. 208), e a parte da representação desse objeto que se encontra no sistema Pcs. – as representações-palavras –, recebe um investimento mais forte. Como as representações-palavras não são recalcadas, elas se apresentam como a primeira tentativa de cura que se manifesta no quadro clínico esquizofrênico.

Essa tentativa de cura diz respeito à recuperação do objeto perdido e, para recuperá-lo, frequentemente a cura é conduzida por um caminho que leva ao objeto através de sua parte verbal, por isso torna-se obrigada a se satisfazer com palavras, em vez de coisas ou objetos (FREUD, [1915] 1996).

Na paranoia, no caso Schreber (Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Dementia paranoides), Freud ([1911] 1996) analisou o conteúdo simbólico das fantasias e dos delírios apresentados nesses escritos e propôs que o mecanismo de formação desse quadro clínico nos indivíduos do sexo masculino é o desejo ou a fantasia homossexual de amar um homem.

O mecanismo formador de sintomas paranoicos, de alguma maneira, obriga que os sentimentos desse indivíduo sejam trocados por percepções do mundo externo, que se apresentam como contrárias ao sentimento original e que, por isso ocorre uma projeção (FREUD, [1911] 1996).

Dessa maneira encontram-se, nos principais tipos de paranoia, contradições na proposição fundamental: “eu (um homem) o amo (um homem)”, o que constitui um desejo homossexual. Essa proposição dá origem a todas as maneiras possíveis de contradições que se apresentam no quadro paranoico (FREUD, [1911] 1996).

Um dos tipos de contradições que aparecem é o delírio de perseguição, que se caracteriza como os sentimentos inconscientes que surgem compulsivamente e aparecem como resultado de percepções externas: “Eu não o amo – eu o odeio, porque ELE ME PERSEGUE” (FREUD, [1911] 1996, p. 71). Essa observação, afirma Freud, significa que aquele que persegue o psicótico é alguém que foi amado anteriormente.

Na erotomania, em que a frase que seria dita como “Eu não o amo – eu a amo” é transformada pela projeção em “Eu noto que ela me ama” e, consequentemente, em “Eu não o amo – eu a amo, porque ELA ME AMA” (FREUD, [1911] 1996, p. 71).

Já nos delírios de ciúmes, a frase “Não sou eu quem ama o homem – ela o ama” leva o indivíduo a suspeitar da mulher e acreditar que ela se sentirá atraída por todos aqueles que ele é estimulado a amar.

Nesse caso, não ocorre a modificação por conta da projeção, pois há mudança do sujeito que ama, e, dessa forma, todo o processo é jogado para fora do eu. O fato de a mulher amar os homens é tido como a percepção externa; já os fatos de que ele não ama, mas odeia, ou, então, que ele ama não esta mas aquela pessoa são percebidos internamente (FREUD, [1911] 1996).

Para Freud,

[...] os delírios de ciúme contradizem o sujeito, os delírios de perseguição contradizem o predicado, e a erotomania contradiz o objeto (FREUD, [1911] 1996, p. 72).

Mas há ainda outro tipo de contradição, que ocorre quando o indivíduo diz: “Não amo de modo algum – não amo ninguém”; supõe-se que essa frase seria o equivalente a dizer: “Eu só amo a mim mesmo”.

Sabendo-se que é necessário que a libido seja investida em algo, ela só pode estar investida no eu, causando nele uma supervalorização sexual, tornando-se, então, o objeto amoroso supervalorizado e dando origem à megalomania.

 

Conclusão

Ao longo do texto, foram retomados alguns pressupostos freudianos, por exemplo, o sexual em sua busca múltipla e incessante pelo prazer. O sexual é ainda o próprio inconsciente, que se manifesta em atos falhos, fantasias, etc.

Em suma, percebe-se que, no quadro clínico da psicose, de um modo geral, o sujeito apresenta algumas especificidades em sua linguagem, que se manifestam em forma de delírio, alucinações ou formações substitutivas.

Essa formação substitutiva traz à tona o sexual que não foi recalcado e, assim, condensa o significado das palavras e das coisas, transformando-as em objetos sexuais, ou seja, em objetos que dão vazão à pulsão do indivíduo psicótico.

Além disso, o mundo externo é desinvestido – no caso da esquizofrenia – e parcialmente investido pelo paranoico. Se é desinvestido, é porque no mundo externo houve algo que se tornou insuportável para esse indivíduo, sobretudo quando não há recalque. Temos, pois, a hipótese de que a causa para o desinvestimento libidinal do mundo externo é a tentativa interna de fugir ao controle externo do sexual. Nesse caso, o sexual continua solto, perverso e polimorfo, sem estar subordinado ao recalque e, logo, aos processos secundários.

No segundo caso, ocorre um retorno da libido ao eu, o que gera nele desprazer, ansiedade. Ao realizar uma ligação efetiva de sua libido ao mundo exterior, ou seja, aos objetos e às coisas e superando esse retorno da libido ao eu, o indivíduo inicia seu processo de cura.

Esse processo de cura é o delírio, que é construído pela linguagem e que também pode ser compreendido como uma tentativa do psicótico de se reconciliar com o sexual que lhe causava sofrimento, na medida em que, ao construir um delírio, ele cria um mundo em que pode viver suportavelmente.

Nota-se, mais especificamente no caso da paranoia, a clara relação entre o sexual e a psicose, quando Freud define sua etiologia a um desejo homossexual de um homem por outro homem. A homossexualidade é uma das expressões múltiplas e polimorfas do sexual, e, portanto, condenada pelo discurso normativo e patologizante.

Vale lembrar que Freud, há mais de 100 anos, supôs que na psicose o indivíduo cria um mundo próprio – o delírio – como uma tentativa de cura, onde ele possa viver de maneira mais suportável com sua expressão particular do sexual.

Tentar controlar o sexual através de discursos externos jamais será efetivo do ponto de vista pulsional: o sexual pulsional sempre seguirá o seu destino.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Adriano Vieira de Morais
E-mail: adriano.vieiram@gmail.com

Paulo Roberto Ceccarelli
E-mail: paulorcbh@mac.com

Recebido em: 27/02/2018
Aprovado em: 16/03/2018

 

Sobre os autores

Adriano Vieira de Morais
Psicólogo clínico graduado pela PUC-MG

Paulo Roberto Ceccarelli
Psicólogo.
Psicanalista.
Doutor em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise - Universidade de Paris 7 - Diderot.
Pós-doutor pela Universidade de Paris 7.
Coordenador do Instituto Mineiro de Sexualidade (IMSEX <www.imsex.com.br>).
Diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental (CESAME <www.cesamebh.com.br>).
Membro da Société de Psychanalyse Freudienne - Paris, França.
Membro da Associação Universitária de Pesquisa em psicopatologia fundamental.
Pesquisador do CNPq.
Professor Adjunto IV da PUC Minas.
Professor e orientador de pesquisas do mestrado de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professor e orientador de pesquisas na pós-graduação em psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Sócio do Circulo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).
Sócio fundador do Círculo Psicanalítico do Pará (CPPA).

 

 

1 Embora utilizemos os termos “id, “ego” e “superego”, é importante lembrar que as atuais traduções da obra de Freud utilizam a tradução diretamente o alemão: isso, (das Es); eu (das Ich); supereu (das Überich).

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