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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.75 Belo Horizonte jan./jun. 2018

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Fundamentalismo religioso, narcisismo negativo e desamparo: algumas reflexões

 

Religious fundamentalism, negative narcissism and helplessness: some reflections

 

 

Edson Santos de Oliveira

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é tentar mostrar como o fundamentalismo religioso é uma resposta aos valores defendidos pela sociedade pós-moderna, focada na cultura do narcisismo e do espetáculo. Nessa sociedade tem-se acentuado o desamparo, que procura ser neutralizado por atitudes religiosas radicais e fálicas. Na teoria psicanalítica, uma das possíveis explicações para esse fenômeno estaria no “narcisismo negativo” (GREEN, 1998) e no masoquismo patológico. Propõe-se, no final do artigo, a feminilidade (BIRMAN, 1999) como uma possível saída para o fundamentalismo. Nessa linha, é possível entender a religião, não como uma prática fálica ou crença cega, mas como um ponto para re-ligar a estrutura (RODRIGUES, 2017). Nesse sentido, a religião estabelece uma interface com a poesia.

Palavras-chave: Fundamentalismo, Desamparo, Narcisismo negativo, Feminilidade.


ABSTRACT

This work aims at trying to show how the religious fundamentalism is a answer to the values defended by the post-modern society focused on the culture of narcissism and spectacle. In such a society helplessness has been growing although seeking to be neutralized by radical and phallic religious attitudes. For the psychoanalytic theory, one of the possible explanations for said phenomenon would be on the “negative narcissism” (GREEN, 1998) and pathologic masochism. In the end the article it is proposed feminity (BIRMAN, 1999) as a possible exit for fundamentalism. In this line of thought, it is possible to understand religion, not as a phallic practice or a blind belief, but as a point to reconnect the structure (RODRIGUES, 2017). In this sense, religion establishes an interface with poetry.

Keywords: Fundamentalism, Helplessness, “Negative narcissism”, Feminity.


 

A psicanálise, na esteira de Freud e posteriormente de Lacan, sempre tentou questionar o saber absoluto. Reelaborando o conceito freudiano de perda, Lacan refinou a noção de falta rompendo com as formas totalizantes de pensamento, baseadas no que chama de discurso do mestre e de discurso universitário.

Defendendo um discurso faltante, a psicanálise continua incomodando na atualidade, momento histórico marcado por tentativas ilusórias de tamponamentos, já que o que marca o pós-moderno é a fragmentação da subjetividade, fomentada por um capitalismo que valoriza mais o consumo que a produção, priorizando o descartável, o culto à imagem (DEBORD, 1997) e o centramento no eu (LASCH, 1983).

Há várias formas de tamponar a falta na contemporaneidade. Algumas delas são as teorias da ciência, a utilização das drogas, as religiões além de outras. Dada a limitação deste trabalho, vamos nos ater aqui a algumas considerações sobre o fundamentalismo religioso, relacionando-o com o desamparo, o narcisismo negativo e apontando possíveis saídas.

O projeto cultural da modernidade, baseado na razão iluminista, responsável pelo desenvolvimento da ciência, que dominou a natureza e apostou no progresso, malogrou. A partir daí, a religião, que antes ocupava papel central na Idade Média, deslocou-se do espaço público para o privado (CHAUÍ, 2006).

O fracasso do projeto moderno iluminista, iniciado no final do século XVII, foi acelerado pela Revolução Industrial e pelo capitalismo, acrescido de acontecimentos marcantes ocorridos nos séculos XX e XXI tais como as duas grandes guerras, a ascensão americana e a revolução tecnológica, desaguando na globalização.

Tais fatos trouxeram novos fenômenos como o consumismo exagerado, que viabilizou a chegada da “sociedade líquida” (BAUMAN, 1998), marcada pelo descartável, pela pulverização do sujeito, pela cultura do narcisismo, exibicionista e autocentrada, que não oferece alternativas para um futuro com alguma estabilidade.

Esse projeto fracassado de modernidade, que Max Weber sintetizou com a expressão “desencantamento do mundo”, cujos traços são a contingência e a efemeridade, não possibilitou, nos séculos seguintes, a solidariedade nem as trocas intersubjetivas, acentuando o sentimento de desamparo e abrindo espaço para o fundamentalismo religioso e para a violência.

Zeferino Rocha (2014, p. 3-4) define o fundamentalismo religioso como

[...] um modo de ser, de pensar e de agir, que resulta de uma crença e de uma adesão incondicionais a uma doutrina religiosa, qualquer que ela seja, judaica, cristã ou islâmica, considerando-a como a única detentora do Bem e da Verdade. E em virtude dessa atitude radical, os fundamentalistas religiosos tratam como inimigas todas as outras religiões e pessoas, que não comunguem com suas crenças, nem com seus ideais, tanto religiosos como políticos.

O fundamentalismo religioso ignora a alteridade, apresentando respostas prontas a todas as perguntas. Ele acredita numa verdade revelada, fechada, e não consegue dialogar com outras formas de crença, não percebendo que o outro nos enriquece e nos leva a descobrir o estrangeiro que habita em nós. Ora, é pela alteridade que temos variadas percepções desse real que nos rodeia, que é tão opaco e tão surpreendente. Riobaldo, personagem do romance Grande Sertão: veredas, diz ao doutor que o ouve uma frase que já se tornou lugar-comum, mas que é pouco assimilada: “[...] o real não está na saída nem na chegada; ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”.

Talvez tenha sido essa percepção intuitiva do real em Riobaldo que o levou a experimentar várias crenças. Falando de religião, o mesmo personagem afirma: “Bebo água de todo rio”. Na sua percepção aguda e filosófica do real, o protagonista rosiano está apontando não para uma mera pluralidade religiosa, mas para uma tentativa, rústica e sincera, de fazer borda nesse real tão traiçoeiro e impossível de nomear.

Na esteira de Lacan, pode-se dizer que em todas as religiões, e mais precisamente no fundamentalismo, predomina o discurso do mestre e do universitário, marcados pelo domínio do saber, presos a um sujeito barrado que se ilude em ficar no lugar de S1. No extremo oposto desses dois discursos, está o do analista, já que sua posição demanda uma verdade parcial, inacabada, nunca podendo ser S1 e que nunca se esgota numa troca intersubjetiva. Isso porque todo ato analítico pede um corte, que deixa sempre um resto que reinicia a cadeia de significantes. Ora, esse saber que não acaba, estruturado a partir de uma falta, incomoda, traz mal-estar, balança as ideologias, principalmente os radicalismos religiosos, que querem respostas prontas e fechadas para um real sempre fugidio.

Em O triunfo da religião Lacan (2005) volta a afirmar que o real é o que não funciona. No caso da religião, o psicanalista francês, de forma extremamente cética, garante que ela triunfará não só sobre a psicanálise, mas sobre muitos outros saberes porque ela tenta dar um sentido a tudo.

Referindo-se à relação entre os teólogos e a ciência, afirma o psicanalista francês:

Eles [os teólogos] gastaram um tempo, mas de repente compreenderam qual era sua chance com a ciência. Vão precisar dar um sentido a todas as reviravoltas introduzidas pela ciência. E, no que se refere ao sentido, eles conhecem um bocado. São capazes de dar um sentido realmente a qualquer coisa. Um sentido à vida humana, por exemplo. São formados nisso. Desde o começo, tudo o que é religião consiste em dar um sentido às coisas que outrora eram as coisas naturais (LACAN, 2005, p. 66).

E continua Lacan (2005, p. 72) em sua ironia: “A religião é feita para isso, para curar os homens, isto é, para que não percebam o que não funciona”. A psicanálise não propõe respostas absolutas para o fundamentalismo. No entanto, há hipóteses que podem ajudar a entender essa prática religiosa. Uma delas é o “narcisismo negativo”, conceito criado por André Green, que acompanhou Lacan em alguns seminários. Rastreando o pensamento de Green, vamos destacar traços do narcisismo negativo, a partir de algumas reflexões de Rocha e Garcia.

Desenvolvendo o conceito freudiano de narcisismo primário, que supõe uma ilusória plenitude imaginária, Green propõe o “narcisismo negativo”, como “contrapartida negativa do narcisismo primário absoluto” (ROCHA, 2014). A expressão “narcisismo primário” levou alguns teóricos a enfocá-la num sentido de “posição primeira”.

Como afirma Rocha, ela deve ser entendida como “‘condição de possibilidade’” de toda a vida libidinal e como fundamento da estruturação do sujeito enquanto ser de desejo. Segundo o pesquisador, o “narcisismo primário” deve ser entendido como uma categoria não temporária, mas estruturante, “[...] já que ele continua mesmo depois do investimento da libido nos objetos” (ROCHA, 2014, p. 5).

Green garante que há uma ligação estreita entre narcisismo e pulsão de morte, tendo sido esta última pouco explorada por Freud. A pulsão de morte seria uma espécie de narcisismo negativo. Como afirma Renata Cromberg, Green propõe chamar a pulsão de morte de narcisismo negativo, duplo sombrio do eu unitário do narcisismo positivo, de modo que todo o investimento de objeto, assim como do eu, implica seu duplo invertido que visa a um retorno regressivo ao ponto zero, que se manifesta clinicamente pelo vazio (CROMBERG, 1988).

Green estuda o narcisismo negativo a partir da segunda teoria das pulsões em Freud, que propõe uma articulação entre pulsão de vida e pulsão de morte. O psicanalista egípcio, rastreando o pensamento de Freud, afirma que na dessexualização, que está ligada à sublimação, é possível encontrar uma fusão entre Eros e a própria dessexualização. No eu podem ocorrer a integração e a desintegração das pulsões. Nessa linha é que Green propõe um narcisismo positivo e um narcisismo negativo, o primeiro supondo uma integração e o segundo, uma desintegração, marcada pela destrutividade.

No caso do narcisismo positivo, haveria uma prioridade da libido do eu em lugar dos objetos; já no narcisismo negativo, um desinvestimento da libido do eu, não direcionado aos objetos. Na esteira de Freud, Green propõe a expressão “função objetalizante”, relacionada à pulsão de vida e “função desobjetalizante”, ligada à pulsão de morte.

Garcia (2009), numa releitura atenta de Green, nos auxilia na compreensão dessas duas funções:

A sua proposta – a autora se refere a Green – nesse sentido é compreender a meta essencial da pulsão de vida como sendo a de garantir uma função objetalizante, isto é, criar relação com o objeto, interno e externo, assim como transformar estruturas em objeto [...] (garantindo) a simbolização. Em contrapartida, a meta da pulsão de morte é realizar uma função desobjetalizante. No desligamento que ela empreende são atacadas as relações com o objeto e também o próprio investimento (GARCIA, 2009, p. 106-107, grifos nossos).

A partir dessa perspectiva, pode-se dizer que no narcisismo negativo o sujeito se fecha e não se abre ao outro. O desejo passa a ser assim “desejo de não desejo” ‘tendendo ao zero absoluto’ (ROCHA, 2014, p. 5). No caso do fundamentalismo, ele se estriba no narcisismo fálico infantil. O indivíduo abandona seu eu ideal projetando-o no ideal de um grupo ou líder, obtendo uma satisfação narcísica, como afirma Rocha:

Morrendo por seus ideais, os fundamentalistas não fazem necessariamente uma opção contra a vida; eles renunciam ao desejo de viver sobre esta terra, porque acreditam que uma nova vida os aguarda além da morte, na qual todos os seus desejos serão plenamente satisfeitos (ROCHA, 2012, p. 6).

Importa ainda frisar que essa busca de uma satisfação plena, no fundamentalismo, tem uma explicação não só a partir da teoria psicanalítica, mas também da sociologia da “modernidade líquida”, que traz esclarecedoras reflexões sobre a estruturação do sujeito.

Como afirma Bauman (1998), enquanto no começo da modernidade predominava o excesso de ordem e a escassez de liberdade, na contemporaneidade, ou modernidade tardia, usando aqui a expressão de Giddens, estamos assistindo a um excesso de liberdade e a uma fragmentação da ordem patriarcal.

Em O mal-estar na civilização, Freud ([1930] 1996) argumenta que a civilização cobrou uma renúncia pulsional deixando o homem desamparado diante da morte do pai. O psicanalista austríaco mostra que, para evitar o sofrimento, temos três saídas: o isolamento, a droga e o aniquilamento das pulsões (FREUD [1927-1931], 1996, p. 85-86). No entanto, apesar dessa renúncia, o ideal de felicidade buscado pelo homem não se deu.

O desamparo, que na teoria psicanalítica deve ser entendido a partir de uma posição estruturante, é também um preço pago por todos nós nos tempos atuais. Na contemporaneidade, ele é fruto do excesso pulsional, da busca da liberdade absoluta, da fragilidade simbólica. Uma sociedade comandada por uma subjetividade narcísica, desfocada da ordem paterna, caracterizada pelo culto à imagem e ao espetáculo, abre espaço para uma posição de desamparo, favorecendo o narcisismo negativo.

Nesse painel social, o fundamentalista acredita que só a volta às raízes de determinado credo poderia ser a solução para a infelicidade humana. Ignorando o ideal do eu, que pede a castração, ele retrocede ao eu ideal, numa suposta totalidade e adere à violência como o caminho para se chegar a “felicidade plena”.

Fruto de uma sociedade do gozo absoluto, o fundamentalista banaliza a vida do outro e a sua própria. Tentando evitar o seu desamparo, ele adere a um masoquismo patológico. Luciana Menezes (2012, p. 116), no estudo que faz do desamparo, ancorada em Freud, afirma que o masoquismo primário, erógeno, apoiado na fusão e desfusão das pulsões, amortece a pulsão de morte, embora não a elimine. Ele tem assim uma positividade apontando para a sublimação. Evidentemente a pulsão de morte tem que ser entendida aqui como potência criadora.

Já o masoquismo secundário, como introjeção da pulsão de morte, se volta para dentro do sujeito, regredindo a uma posição anterior. Trata-se aí de uma forma patológica, uma vez que o sujeito, para fugir do desamparo, se coloca como servo de um líder, buscando um pai protetor. Temos aí uma posição fálica, já que o sujeito desamparado busca uma proteção ilusória, atendo-se a um gozo masoquista, perverso.

Menezes afirma:

[...] Podemos dizer que as formas típicas de subjetivação contemporânea são tentativas neuróticas e perversas de restaurar, num plano imaginário, a proteção onipotente por meio do gozo masoquista. Para fugir da condição originária do desamparo, para a qual sabemos, não há saída, o sujeito pode estabelecer com o outro uma relação de servidão figurada pelo masoquismo moral e feminino [...] (MENEZES, 2012, p. 117).

Que saída tem a psicanálise para a visão totalizante do fundamentalismo? Não há soluções mágicas já que ele tem estreitas relações com várias culturas religiosas e fálicas. Uma das possíveis explicações está no “repúdio à feminilidade”.

Com relação à posição feminina, que independe de gênero, afirma Birman:

Por tudo isso, a tese psicanalítica sobre a feminilidade, anunciada o final do discurso de Freud, é fundamental para a psicanálise na atualidade. Ela nos diz que a feminilidade está no centro do erotismo do sujeito. Sabe-se, de acordo ainda com Freud, que o sujeito tem horror a isso, justamente porque nesse registro o referencial fálico está ausente e em suspensão. Na feminilidade os enunciados são parciais e fragmentários, distantes da falácia universalista. Por isso mesmo, a feminilidade é fonte de horror. Nela, a finitude e a incerteza humanas tomam corpo, colocando o sujeito em aberto face a seu fazer, o que evidencia sua impossibilidade de encontrar enunciados totalizantes (BIRMAN, 2012, p. 102).

A tese sobre a feminilidade mostra que não há garantias na trajetória existencial. Somos estruturalmente seres desamparados e não existem certezas inabaláveis. Birman afirma ainda que a marca do sujeito é o desamparo e insiste que ele é não “[...] um momento temporal da história da subjetividade, mas uma marca estrutural da condição humana” (BIRMAN, 2012, p. 165).

O pesquisador carioca sustenta que a morte é originária e não derivada na existência de todo indivíduo. Já que somos marcados pela dependência do outro desde a pré-maturidade, a marca fundamental de todo homem é o desamparo:

Vale dizer, não somos desamparados apenas por uma insuficiência genético-evolutiva, mas também por vocação, na medida em que o desamparo se materializa pelo rasgão originário que nos marca para sempre. Essa fenda está sempre lá nos carcomendo, pela distância abissal existente entre a força e o circuito da pulsão, entre o organismo prematuro e o outro. Somos então prematuros para sempre, de maneira irremediável, já que não existe costura para esse rasgão sempre reposto. Por isso mesmo, somos marcados pelo desamparo e pelo apelo sempre relançado ao outro (BIRMAN, 1999, p. 165).

Freud ([1930] 1996, p. 92), em O mal-estar na civilização, chama a religião de “infantilismo psicológico” na medida em que ela deprecia o valor da vida, intimidando a inteligência. E na mesma obra pontua que

[...] não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo (FREUD, [1930] 1996, p. 91).

Poderíamos aqui levantar uma hipótese, acompanhando Gilda Vaz Rodrigues (2017, p. 10): será que a religião, num sentido bem amplo de “re-ligar” o homem a um ponto da estrutura, tomando diversas formas para se contornar o objeto faltoso, não seria uma possível saída? Numa teologia fundamentalista, religião e poesia se distanciam. Numa perspectiva mais ampla do re-ligar da estrutura, religião e poesia tendem a se encontrar.

O poeta mexicano Octavio Paz parece caminhar nessa direção quando afirma que

[...] entre o nascer e o morrer a poesia nos abre uma possibilidade que não é a vida eterna das religiões nem a morte eterna das filosofias, mas um viver que envolve e contém o morrer, um ser isto que é também um ser aquilo (PAZ, 1982, p. 188).

O crítico literário italiano Ezra Pound afirma que “os poetas são as antenas da raça”. Mesmo não conhecendo psicanálise, eles nos dão pistas para bordejarmos o real. Isso porque a poesia não é efeito de sentido, mas de furo.

No soneto que segue, de Carlos Nejar, a expressão “deixar-se abandonar ao vento” sugere um saber conviver com o desamparo:

Abandonei-me ao vento

Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro, livre, que me sabe

quando me levantar e o corpo solte
o seu despojo vão. Em toda a parte
o vento há de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.

E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.

Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.

Saber conviver com o desamparo, como um “grão abandonado ao vento”, significa não mera capitulação, mas consciência de que o amor supõe a falta. E se amar é dar o que não se tem, como sustenta Lacan, a teologia, se algum dia quiser dialogar com a psicanálise, não poderá perder de vista a perspectiva do furo.

Lacan, no Seminário 20, faz referência ao Zen como uma forma de ruptura com o sentido:

O que há de melhor no budismo é o Zen, e o Zen consiste nisto: em te responder com um mugido, meu amiguinho. É o que há de melhor quando se quer naturalmente sair desse negócio infernal, como dizia Freud (LACAN, [1972-1973] 1985, p. 157.)

Evidentemente Lacan não está elegendo o Zen como religião ideal. Vale ressaltar que o Zen não é religião, mas uma forma de suspensão do pensamento, como afirma Suzuki, o maior especialista nessa mística (SUZUKI apud TERÊNCIO, 2007, p. 151). No Zen, o discípulo quer dar um sentido a tudo, como as religiões, mas o mestre lhe responde com um mugido, propondo-lhe um vazio representacional.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: edson-so@uol.com.br

Recebido em: 02/10/2017
Aprovado em: 16/03/2018

 

Sobre o autor

Edson Santos de Oliveira
Doutor em Estudos Literários
Candidato em formação no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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