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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.76 Belo Horizonte jul./dez. 2018

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Considerações sobre a angústia: acontecimento do Real

 

Considerations about anguish: an event of the Real

 

 

Scheherazade Paes de Abreu

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerações sobre a angústia é o artigo que trata do afeto que mais interessa à prática analítica: a angústia, modo de ruptura e apropriação subjetiva. Além do mais, o sofrimento encobre algum dizer. É acontecimento do Real e evoca descontinuidade temporal. A análise não é apenas atenuante do sofrimento; ela possui efeitos de travessia. A angústia é uma via de acesso ao Real. Não há relação sexual pelos diferentes modos como esta fracassa em existir. É disso que se trata a angústia, a sexualidade humana.

Palavras-chave: Angústia, Real, Vazio, Destituição subjetiva, Objeto a, Das Ding.


ABSTRACT

This text deals with the affect that most interests analytical practice: anguish, as a mode of subjective appropriation, besides suffering which covers the speech. Anguish belongs to the Real, and evokes temporal discontinuity. Psychoanalysis not only mitigates suffering, but also has the effects of going over. Anguish is a path to the Real. There is no sexual relation, because of the ways in that this relation fails to exist. This is the meaning of the anguish, of the human sexuality.

Keywords: Anguish, Real, Empty, Subjective Dismissal, Object a, Das Ding.


 

Deveria ser óbvio que
o discurso analítico não consiste, de jeito algum,
em fazer com que aquilo que não esteja bem vá embora,
em suprimir o que não esteja indo bem no discurso comum.

LACAN

 

Acontecimento do Real

Este artigo é sobre a angústia, o afeto que mais interessa à prática analítica. É também um modo de investigar um trajeto já trilhado por muitos. Assim, em cada vestígio tomado desses trajetos para além da escrita, é preciso transpor na própria escrita alguma falta de sossego. É preciso percorrer algum desejo.

O que é a angústia? Em geral, aparece nos dicionários, como sofrimento nos desabafos entre amigos, nas conversas que beiram os ouvidos, nas relações de trabalho e no seio familiar, nas coisas estranhas que irrompem a incomodar.

Algo de muita aflição e dor, a angústia é acompanhada de opressão, pânico, privação de palavras, falta de ar, depressão, sentimento de medo, tormento, temor, desassossego, sufoco para mais que tristeza.

Com isso, a angústia pode indicar também algum despertar?

A angústia se passa em acontecimentos, através de seus traços de descontinuidade com o tempo e gosto pelo insólito. O tempo é subjetivo. E uma vez submetidos, esses instantes, mesmo que portem um ar passageiro, carregam consigo o gosto amargo de sutil eternidade e o tormento da certeza.

O sujeito está assombrado pela crença de que isso permanecerá, desnorteado em relação aos começos e sem esperança em relação aos tempos de cessar. Cada um, já habitado por um imaginário que contempla a angústia, tem as cenas e fora de cenas, que em si fizeram morada, desde a mais tenra existência de vida, essa anterioridade que é de origem, que sempre esteve lá, em sua fase e sua temporalidade itinerante.

Nesse sentido, por menos que se esteja submetido à angústia, sabe-se que esses instantes têm nuances de eternidade. A angústia dispõe da especificidade de ser um acontecimento, e do Real, Lacan escreve “acontecimento”. E isso evoca um traço de descontinuidade temporal, faz com que a angústia seja um momento de certeza.

Portanto, Soler (2012, p. 56-57) diz que Lacan ([1954] 1998), no texto Resposta ao comentário de Jean Hippolite sobre a “Verneinung” de Freud, descreve esse caráter temporário ao qual chama de funil temporal. Lacan, assim, observa que, no caso da angústia, trata-se de um instante que faz corte no vetor do tempo mensurável, no qual o tempo é detido. Além disso, há uma posição de imobilidade, algo como petrificação motora.

 

Qual dizer o sofrimento esconde?

Freud ([1917] 1996, p. 151) afirma:

Nada vindo de fora penetrou em você; uma parte da atividade da sua própria mente foi tirada do seu conhecimento e do comando da sua vontade.

Em outras palavras, tal parte não pode ser calada.

Nessa ruptura há um saber a ser despertado. O que antecede é como se expressaram o sexual, o inconsciente, a nostalgia do objeto perdido, e o modo como isso vai esculpir os embaraços com a vida, que inclui a morte.

Esse é o ponto a acentuar, a dimensão do ignorado, pois o modo como o sujeito se arranja é crucial a fim de despertar o interesse pelo inconsciente.

Qual dizer o sofrimento esconde?

Freud ([1926] 1996), no texto Inibições, sintomas e ansiedade, faz a inversão de sua tese desenvolvida. Em um primeiro momento Freud pensou a angústia como um efeito do recalque através da privação pulsional, que o próprio recalque implica. Porém, elabora que a angústia não é um efeito. A angústia é causa e está na origem, pois é causa do recalque, está no princípio de todo recalque, mas não está recalcada.

A angústia é algo de que o sujeito padece. Assim, não há afetos inconscientes. Os afetos estão à deriva. Além disso, o que é recalcado são os insistentes significantes que amarram os afetos.

Para Safouan (1989, p. 57), a angústia é sinal de um perigo próximo à realização, que anuncia o possível desvelar da representação recalcada, mas o neurótico a recusa, pois se trata do que há de legítimo, na medida em que a angústia é também o sinal da proximidade de um saber.

Lacan, em O seminário, livro 10: a angústia ([1962-1963] 2005, p. 62), nos diz que o neurótico se recusa a se dar à angústia. Assim, a análise consiste em pelo menos ceder ao equivalente, pois começa por ceder um pouco ao sintoma. E desse modo, a análise começa por uma configuração dos sintomas, pois na medida em que as demandas se esgotam até o fim, aparece a relação de castração.

Há aqueles sem solução. E aqueles que, adaptados demais, dizem “tudo vai bem”, se constituem num sintoma que satisfaz, encerram as questões e permanecem de forma petrificada.

Qual é o sentido?

A que se endereça o sofrimento?

O que significa dizer que tudo vai bem?

Qual é o impossível que pode irromper?

O que se pode dizer sobre a morte?

São questões subjetivas expelidas do Real, que afetam o sujeito.

A escrita de Philip Roth (2013, p. 104) retrata o sentimento de colidir com a proximidade do inesperado, do disruptivo; além disso, suscita a ruptura com o que aliena, que o sofrimento pode desse modo desencapsular.

[...] Um cara talhado certinho, como uma pilha de cartas de baralho. Nem de longe preparado para aquilo que iria se abater sobre ele. Como poderia, com toda a sua bem calibrada bondade, ter imaginado que os riscos de viver de forma obediente eram tão elevados? A obediência está contida na ideia de baixar os riscos. Uma esposa linda. Uma casa linda. Cuida dos negócios como um brinco. É assim que vivem os bem-sucedidos. São bons cidadãos. Sentem-se afortunados. Sentem-se gratos. Deus está sorrindo lá de cima para eles. Existem problemas, eles dão um jeito. E de repente tudo muda e fica impossível. Nada está sorrindo lá de cima para ninguém. E quem é que pode dar um jeito nisso? Ali estava alguém despreparado para o caso de a vida ser infeliz, muito menos para o impossível. Mas quem é que está preparado para o impossível que vai acontecer? Quem é que está preparado para a tragédia e para o absurdo do sofrimento? Ninguém. A tragédia do homem despreparado para a tragédia – esta é a tragédia do homem comum.

 

A angústia e a cura

Sobre a angústia, Firgermann (2012, p. 14) diz esperar que os psicanalistas fiquem instigados e se interessem pelo valor de sinal que ela porta, pois o ímpeto da cura é capaz de escamotear não somente a angústia mas também o que ela indica de radicalmente subversivo e insubmisso do sujeito enquanto possibilidade de criação. Assim sendo, a angústia é também capaz de operar como ato de invenção, além de força que coloca em marcha o sujeito na análise.

Freud persiste em diversos momentos que a cura em psicanálise vem por acréscimo. A cura é um efeito do processo da análise e não pode ser antecipada como o objetivo maior. Nesse sentido, não adianta desangustiar os homens.

O psicanalista não se finca na busca da cura, que constitui um obstáculo à análise, nos diz Jorge (2017, p. 66). O alcance terapêutico existe, mas não como um objetivo em si mesmo. Além do mais, qual é o destino daquilo que resta de incurável?

A angústia afeta o sujeito. Afetará o analista?

Para Harari (1997, p. 15), o analista não pode ser um tipo de indutor tampouco domesticador da angústia que, ao menor sinal de que a angústia emergirá, coloca rápidas barreiras de contenção ao dar um nome que conceda um sentido imaginário ao vivenciado pelo analisando. Assim, a angústia pode diminuir de forma quase imediatamente, porém ao mesmo tempo se sufocará o que através dela se queria dizer.

Quanto à pergunta se a angústia afetará o analista, permanece como pergunta neste artigo, visto que como pergunta pode preservar certa ressonância. A análise é questão de dosagem da angústia, e isso se faz ao estar atento aos instantes do sujeito, bem como a expressão da intensidade das coisas.

Safouan (1989, p. 103) propõe que o analista seja algo mais do que o lugar no qual se recolhem significações, automatismos, recalques e vicissitudes das sessões. Ademais, importa que o analista seja capaz de um pouco de logística, de retórica, de dramaturgia e até mesmo de diplomacia, escreve Safouan. Por exemplo, se o analisante aborda algo tão profundo que ir mais longe, chegaria a uma angústia insuportável. Nesse momento, é preciso adaptar a dose e esperar o tempo subjetivo do sujeito.

 

Sobre o objeto a

Para dizer da angústia, não se pode deixar de dizer do objeto a articulado por Lacan. Trata-se de um resto de operação significante, que resiste ao sentido e às identificações com o outro. Algo que constitui, mas que ao mesmo tempo escapa. Alguma coisa subtraída originalmente, uma precariedade que condiciona os movimentos de apetência e de alteridade.

Portanto, é o objeto a que condiciona o desejo. E isso o faz pertencer a uma anterioridade em relação a todos os objetos do mundo. A anterioridade lógica do significante remete ao gozo originário, que só existe na medida em que o significante lhe fornece alguma consistência.

O objeto a é anterior ao sujeito, visto que ocorre da relação com o outro, isto é, da relação com os efeitos da linguagem. É preciso que a seja anterior para estar no lugar de causa. Se o objeto é causa de desejo, Soler (2012, p. 25) nos diz que Lacan faz o possível para marcar a distância entre objeto como causa de desejo e objeto que serve para fixar a angústia.

O desejo procede da falta estrutural, em que o objeto primordial foi perdido, desde sempre e para sempre para o sujeito, pois o significante atribui retroativamente a significação de tal perda que ele mesmo impõe. A falta não é consecutiva à perda de um objeto real, que teria sido fonte de satisfação. É o objeto encontrado que toma o lugar dessa falta sem, com isso, fornecer ao sujeito a satisfação ideal esperada que a nostalgia do objeto primeiro perdido na origem forneceria.

Nota-se que a Coisa [das Ding] que habita o sujeito é aquilo que vem no lugar do objeto primeiro perdido de sempre, que o sujeito de desejo procura encontrar, seja por coordenadas de prazer, seja por coordenadas de desprazer. São os traços mnêmicos, os significantes, assim chamados por Lacan.

Ocorre que no lugar da coisa inacessível, apenas se encontram objetos substitutos, que são objetos da fantasia e que mascaram a dimensão da Coisa e o vazio interior. A Coisa é ao mesmo tempo vazio gerado pela linguagem e que, pelo fato de ser vazio, é algo como vontade de obter, como vontade de gozo, escreve Valas (2001, p. 30).

Na angústia algo aparece onde nada deveria aparecer. E aparece para indicar que é certo que permaneça vazio. E o que aparece não é o próprio objeto a, mas a iminência de sua demasiada presença, da resposta possível, pois tal objeto é desprovido de imagem e de significante.

Quando o objeto aparece no campo do percebido visual, trata-se do envelope que o emoldura, ou seja, um investimento é feito. A angústia surge quando a própria falta vem a faltar. Assim, não diz do despontar da falta constituinte, mas anuncia o perigo de que tal falta, advenha a faltar.

Lacan nos diz que a angústia é não sinal da falta, mas a falta de apoio dada pela falta.

O vaso é a metáfora do envelope utilizada por Lacan. É uma criação significante que circunscreve o vazio interior da Coisa, que anteriormente não existia. Isso nos diz também que o real é apreendido pela linguagem, ou seja, tecido pelo simbólico. Dizer que a imagem envelopa o objeto significa dizer que a imagem o oculta e o encobre assim como o objeto pode maquiar a falta.

Aqui há uma pausa durante a escrita dessas palavras, pois se encontram por perto dois vasos que estavam imobilizados na estante, destinados a ser peças de museu. Na origem, um deles é de estanho e outro é de porcelana. Não houve escolha, e não será possível deixar de ser daquela matéria bruta de que foram feitos – estanho e porcelana, pois estarão para sempre marcados no traço.

O que se faz a partir disso já determinado?

O que se faz da mesmice, que tolhida de tombar, se procura de todo modo adaptar?

Os vasos estavam desabitados no interior. O de estanho, um pouco mais alto, de traço resistente e sóbrio; o de porcelana, mais redondo, de traço frágil e vestido de flores coloridas pintadas à mão. Isso lhes uma aparência de consistência.

Por fora desses envoltórios conservados, a ação do tempo de vida, a poeira e o efeito de ser esquecidos na estante de livros, e isso é coisa que pode corroer vagarosamente o brilho. No espaço de dentro, a silenciosa presença do vazio e da pulsão de morte; além de escasso sentido e fina camada de poeira suspensa na ausência de traços.

O vazio é, assim, o fator habilitante de qualquer presença.

 

O simbólico, o imaginário e o Real

Soler (1989, p. 17-20) escreve que, se, por um lado, o simbólico é o que permite o sentido e responde à questão “o que é que isso quer dizer?”, por outro lado, o Real é aquilo que resiste a se reduzir ao campo simbólico, ou seja, o ejetado do sentido, aquilo de que se padece, que desperta.

No entanto, é impossível resguardar todo o Real. A associação livre fabrica cadeias de significantes que são cadeias de sentido; porém, o Real como obstáculo à simbolização faz rupturas. Desse modo, temos um movimento, que vai do Real em direção ao simbólico e procura reencontrar um Real que coloque fim ao infinito possível. A análise envolve certo escoamento, lento e constante, do Real ao simbólico.

Segundo Jorge (2017, p. 210), o imaginário é de sentido unívoco, por isso pode se compactar e se cristalizar. O Real, Lacan o considera o estritamente impensável, de não sentido, ou seja, o Real é impossível de ser simbolizado, além de possuir a característica da irreversibilidade, pois é pegado ao tempo e à morte.

O simbólico é reversível, ambíguo e de duplo sentido. O sentido cristalizado no imaginário pode ser barrado pelo Real, além de se reorganizar pelo simbólico, que empresta plasticidade a outras possibilidades. Portanto, a inibição (sentido unívoco) é a invasão do imaginário no simbólico, o sintoma é a invasão do simbólico no Real, e a invasão do Real no imaginário é a angústia.

 

Destituição subjetiva

Em que ponto está à angústia? Está onde não há espelho. O sujeito se angustia sem saber diante de que ou de quem, sem saber a razão pela qual padece. O acesso à imagem própria passa não somente pela imagem real, mas também por intermédio do espelho do outro. E isso inclui os significados. E isso faz com que o espelho seja emissor de enunciados.

Por isso, há lacunas entre o sujeito, o próprio retrato e a própria imagem, pois há um furo no imaginário, e algo persiste em delatar, o que tenta inutilmente se esconder: esse ponto que não se vê.

Esse grande Outro do qual se fala é o lugar do significante, é um lugar não somente incompleto e não-todo, pois lhe falta um significante. É inconsistente, pois é sempre possível instituir um outro através da demanda, por isso, a angústia não é sem objeto – a Coisa – mas ela é sem outro.

O sentido é imaginário, está ligado ao eu e à autoimagem de quem se é e do que se é. Na análise, as identificações são denunciadas e perdem a potência; entretanto, denunciar é recusar através de “não sou isso”. Desse modo, o sujeito começa por dizer tudo o que não se é. Isso vai do consentimento ao protesto.

É possível apreender naquelas coisas das quais se gosta e naquelas coisas das quais se desgosta. Assim, há um infinito de posições possíveis. São muitos sentidos, porém o analista não propõe novos significados, mas faz o resgate do sem sentido. Assim, ele se volta para articular o singular entre o sujeito e significante.

O que aparece na angústia é vazio de significação, e não se sabe o que isso quer dizer, mas não há dúvida, há esse efeito de certeza de que isso quer dizer alguma coisa.

No entanto, nos diz Soler (2012), é preciso ainda uma condição suplementar, que a cadeia significante na qual emerge o vazio seja a cadeia do ser, a cadeia em que se apreende, em que se busca e onde se interroga o lugar da falta no Outro.

A destituição subjetiva é o momento em que o sujeito é separado do objeto que o instituiu, está sobre o plano da questão do ser: que sou eu em meu desejo e em meu ser? Qual é a minha verdade?

São questões de uma vã tentativa em guarnecer de sentidos a tolice de existir. Porém, não se é somente sujeito ‘falta a ter’, castração; é objeto. Esse é o ponto de destituição. O sujeito se apreende como objeto, e o desejo como incógnita fica suspenso.

Lacan situará a angústia não mais encadeada ao objeto, não mais em relação ao desejo, mas diz que é um acontecimento do Real.

Nesse sentido, o sujeito só é sujeito quando for capaz de experimentar, explica Safatle (2017 p. 80) em si mesmo algo que o ultrapassa, algo que o faz não ser idêntico a si mesmo. Trata-se da experiência de desidentidade, logo capaz de adoecer e da mesma forma capaz de curar. Por sinal, são questões importantes às noções de cura, de normalidade e o destino do sofrimento psíquico.

 

Efeitos de travessia

Mas há outros elementos sobre a angústia, uma certa torção que faz Lacan. Dunker (2016, p. 236) nos diz que a angústia “não é sem objeto”, porém isso não é o mesmo que dizer que ela tem um objeto, pois há um deslocamento do ‘ter’, que caracteriza o objeto fálico, para o ‘ser’, que retoma a forma ontológica da angústia.

Como é possível a negação da falta? O objeto da angústia é não especularizável, tem matriz do corte e do vazio, que são expressões da negatividade, por isso possui efeitos de travessia capaz de exprimir um percurso através do Real.

Além disso, escreve Dunker (2016, p. 237), é preciso distinguir as formas da angústia: o objeto a aparece encoberto misturado a objetos pulsionais, envelopado por imagem e gramática simbólica como no desamparo, no estranho, mas essas são formas impuras da angústia. A análise extrai dessas formas impuras a angústia, que não se pode contornar, cujo referente é o Real, em vez do simbólico e do imaginário.

Esse é um ponto importante, pois se trata de fazer essa passagem. A análise não é algo apenas atenuante do sofrimento, mas é algo que possui efeitos de travessia. Tal travessia só finda, nos diz Dunker (2016, p. 239), no momento em que a angústia Real se torna companheira de viagem. Na forma cristalina de tantas angústias e no pior das vivências, há algo que precisa ser reconhecido, mas não eliminado.

 

Ao final, a angústia é uma via de acesso ao Real

Portanto, Lacan (2005, p. 366) nos diz que certamente convém que o analista seja aquele que minimamente, e não importa por qual borda, tenha feito o desejo entrar suficientemente nesse a irredutível. Assim, poderá oferecer à questão do conceito de angústia uma garantia real.

De outro modo, o analista faz travessias e tão somente depois de desvelar o Real do simbólico, o Real do real e o Real do imaginário, além de despir o objeto perdido a ponto de modificar o valor. Assim, poderá oferecer possibilidade de passagem ao Real, no trabalho de análise, pois a angústia é via de acesso ao Real.

Por sinal, em Terra sonâmbula, ao explicar a falta do mundo no qual se nasce, Mia Couto (2007, p. 76), nos diz:

[...] afinal, todos queremos no peito o nó de um outro peito, o devolver da metade que perdemos ao nascer.

Em outras palavras, é o pelejar com a impossibilidade de completude nesse viés de inconsistência do que é anterior.

Para Lacan, o sujeito busca no corpo do Outro os traços arqueológicos das próprias cenas fantasmáticas, vindas das primeiras experiências de satisfação.

Porém, a devastadora experiência em perceber que, mesmo diante de tentativas em prover a vida de sentido, coisas acontecem, sofrimentos irrompem, e não importam os anseios. São formas necessárias de ruptura a normativas de adaptação alienantes, tal como a psicanálise não poderia ser normativa.

Por fim, Safatle (2017, p. 77) traz que a experiência humana é também norteada por algo disruptivo, subjetivo, que não pode ser efetivamente simbolizado ou colonizado por imagens fantasmáticas, que é o Real; por isso, sempre descrito de maneira negativa, pois há coisas que somente se mostram sob a forma de negação.

Ao final de análise, se produz um indivíduo assegurado de saber que não há relação sexual pelos diferentes modos como esta fracassa em existir, pelos restos inconsistentes. Logo, se torna inapto ao complemento. É disto que se trata a angústia: da sexualidade humana. A separação esvazia de harmonia a fusão, dissipa o sentido das coisas a que se endereçam. Há outro gozo que não o gozo fálico.

Quem é que está preparado para a tragédia e para o absurdo do sofrimento?

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: scheherazade_abreu@yahoo.com.br

Recebido em: 28/06/2018
Aprovado em: 28/09/2018

 

Sobre a autora

Scheherazade Paes de Abreu
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

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