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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.76 Belo Horizonte jul./dez. 2018

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

As movimentações da ideia de repetição no texto freudiano: uma leitura cronológica

 

The development of the idea of repetition in freudian texts: a chronologic overview

 

 

Fabrizia Izabel Meira SoutoIII; Jacqueline de Oliveira MoreiraIII; Breno Ferreira PenaI, II

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais
II Universidade Federal do Pará
III Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente texto pretende realizar uma apresentação das movimentações na construção do conceito de repetição no texto freudiano. Defendemos a tese de que a ideia da repetição aparece nos textos pré-psicanalíticos através da noção de facilitação neurônica. Em seguida, recebe uma lapidação a partir da articulação com os conceitos de transferência, resistência e elaboração. Por fim, encontra sua última forma na ideia de compulsão à repetição. Concluímos que é um conceito cunhado a partir da experiência clínica e decisivo para a constituição do sujeito.

Palavras-chave: Freud, Psicanálise, Repetição, Transferência, Compulsão à repetição.


ABSTRACT

The present article aims to discuss how the concept of repetition is constructed and developed throughout Freud’s oeuvre. We suggest that the idea of repetition is discussed in the author’s pre-psychoanalytic texts through the notion of neuronal facilitation. Later, the concept is lapidated as it is articulated with the ideas of transference, resistance and elaboration. Finally, it relates to the idea of repetition compulsion. It can be concluded that, even though the development of this concept is based on clinical experience, it is decisive for the construction of the subject.

Keywords: Freud, Psychoanalysis, Repetition, Transference, Repetition compulsion.


 

O conceito de repetição nos primórdios da psicanálise

O conceito de repetição perpassou toda a obra de Sigmund Freud orientando seus estudos e suas práticas clínicas. Dessa forma, é um conceito fundamental da teoria psicanalítica.

A problemática posta em relevo através desse conceito nos leva a indagar acerca de sua natureza e de sua relação com os fenômenos observáveis não só na prática clínica como também na vida cotidiana.

Por que as pessoas repetem?

Por que o sujeito é compelido contra a sua vontade a reeditar eventos traumáticos?

Podemos dizer que Widerholungszwang [compulsão à repetição] foi um motor para a formulação das teorias mais audaciosas de Freud. Desde Projeto para uma psicologia científica (FREUD, [1895] 1996), o termo “facilitação” já abria caminho para a compulsão à repetição, revelando a tendência a se percorrer um caminho já percorrido anteriormente.

Ao postular a teoria do neurônio, Freud ([1895] 1996, p. 352) pontua que “[...] a memória está representada pelas facilitações existentes entre os neurônios ?” e pergunta do que depende, afinal, a facilitação que ocorre entre eles. Para o autor, a resposta se encontra na magnitude da impressão recebida, pois o conceito de memória elaborado no Projeto revela que ela depende da intensidade da impressão recebida e da sua repetição mais ou menos frequente.

Em 1896, nos Novos comentários sobre as psiconeuroses de defesa, texto no qual utilizou pela primeira vez a expressão “retorno do recalcado” (KAUFMANN, 1996, p. 452), Freud assinalou que a falha na defesa poderia ser considerada como aquilo que abre o campo da repetição sob a forma de um retorno do recalcado.

Kaufmann afirma que, no texto mencionado, Freud demonstra com clareza o lugar atribuído ao mecanismo de defesa (Abwehr) na estrutura da repetição, ou seja, é exatamente a falha na defesa que abre o campo da repetição.

Nesse movimento de retorno das lembranças recalcadas, Freud destaca a impossibilidade que se apresenta na repetição do que já aconteceu, pois há sempre uma diferença entre a impressão mnêmica original e a lembrança que assoma à consciência depois.

Falar de repetição em Freud é buscar contextualizar um arcabouço teórico que foi se ampliando significativamente. Observa-se um interesse crescente pelo tema da repetição e seus efeitos na clínica no âmbito científico, devido a sua relevância para compreendermos os aspectos fundamentais da constituição do indivíduo e seu posicionamento, em particular na clínica psicanalítica.

Conceituada como ato ou efeito de voltar a fazer algo feito anteriormente, a repetição demonstra ser um fenômeno sempre presente na história humana. Garcia-Roza (2003, p. 27) pontua que o homem sempre procurou ordenar o caos e, para isso, acabou criando modelos para os acontecimentos tanto presentes quanto futuros.

Esses modelos são repetidos pelo homem das culturas arcaicas e primitivas,

[...] é através dessa repetição que os fatos do cotidiano ganham sentido e realidade. Os acontecimentos do cotidiano não possuíam realidade em si mesmos, mas apenas na medida em que repetiam acontecimentos pretéritos (GARCIA-ROZA, 2003, p. 27).

No que possui de verdadeiro, o mundo, de acordo com o autor, se constitui numa repetição e

[...] o que não é repetição permanece imerso no caos, carecendo de sentido e de realidade (GARCIA-ROZA, 2003, p. 27).

Podemos afirmar que Freud foi o primeiro autor a pensar o tema repetição no âmbito da constituição psíquica do sujeito, fato que se presentifica a partir da escuta clínica de seus pacientes.

Atendendo a jovem paciente Dora, Freud utilizou como prática terapêutica a catarse e a ab-reação para que a moça pudesse se lembrar de algum acontecimento traumático vivido na infância e, a partir da recordação, preenchesse as lacunas de memória e se livrasse dos sintomas.

Não obstante todo o empenho clínico efetivado através da hipnose, o que se desenha nesse momento para Freud é o fenômeno da repetição [Wiederholen]. Em vez de recordar, Dora repete com Freud, na forma de um acting-out, um fato que vivera anteriormente e acaba abandonando o tratamento antes do término efetivo.

A partir daí, Freud se depara com o fenômeno da resistência do paciente ao tratamento e, ampliando a sua escuta terapêutica, volta a sua atenção para a repetição, instituindo-a como um referencial de suma importância para a prática clínica.

Desde então, é possível observar o conceito de repetição em textos de Sigmund Freud, tais como A dinâmica da transferência (1912) e Recordar, repetir e elaborar (1914).

Garcia-Roza (2003, p. 46) argumenta que, para Freud, a experiência primária de satisfação apresenta o diferencial prazer-desprazer e pergunta: “[...] não seria essa experiência o primeiro elemento da série a ser repetido indefinidamente?”.

O amor materno é o protótipo de todos os amores que viveremos posteriormente?

O autor pontua que,

[...] sem dúvida, podemos ver no amor pela mãe o ponto inicial de uma série, mas isto se considerarmos apenas a série particular que une a criança à mãe. No entanto, nessa articulação criança-mãe podemos reencontrar outras articulações amorosas (GARCIA-ROZA, 2003 p. 46).

Assim como o prazer, o desprazer tem origem no estado de desamparo inicial ao qual o indivíduo é lançado após o nascimento. De acordo com Freud, o que perturba o ser humano causando excitação ao aparelho psíquico são as urgências da vida, como fome, sexo e respiração. Essas urgências necessitam de uma ação específica, que é operada no meio externo e que venha a colocar um fim no processo de somação.

No estágio inicial da vida, essa ação específica só pode ser realizada pelo outro, e sem essa ação, a vida da criança estaria irremediavelmente ameaçada. Assim, ao ser atendida pelo outro em suas necessidades, ocorre a descarga de Q, que é sentida pela criança como prazer. Nesse momento, ocorre o registro mnêmico do objeto que o auxiliou no momento de urgência.

Sempre que o processo de somação se repetir, ou seja, quando os estímulos endógenos forem se somando, aumentando, exigindo uma descarga, a criança investe no traço mnêmico desse objeto, na tentativa de descarga de Q. Sentida com prazer, essa experiência deixa um resíduo, que é o desejo.

As experiências de dor, que estão ligadas à excitação externa excessiva, expressam o fracasso dos dispositivos de proteção contra Q e levam o aparelho ao máximo de funcionamento. Além disso, conduzem à formação de trilhas e ao registro de um objeto – um objeto hostil, que poderá ser reinvestido em outras circunstâncias perceptivas. Nessas experiências de dor o resíduo é o afeto.

Dessa forma, vemos dois circuitos no organismo:

• a satisfação, que se originou através do processo de somação e teria como consequência psíquica o surgimento dos “estados de desejo”;

• o processo de dor, que se originou através dos estímulos externos e teria como consequência o surgimento do afeto, cujo protótipo são os estados de angústia.

As experiências de prazer/desprazer marcam o aparelho psíquico, e a elas retornamos em diversos estágios da vida.

A repetição parece se apresentar como um fenômeno estrutural e estruturante da subjetividade humana, portanto não há como pensar a prática clínica sem nos atermos profundamente a esse tema.

Diante dessa prerrogativa, colocou-se o problema: o que na clínica conduz Freud a teorizar sobre a repetição?

 

Repetição, elaboração e transferência

Podemos pensar que em 1914, no texto Recordar, repetir e elaborar, o conceito de repetição deu entrada nos escritos freudianos, mas não podemos nos esquecer de que essa ideia está presente em toda a obra de Freud.

De acordo com Kaufmann, desde As neuropsicoses de defesa (1896), o termo Zwangsvorstellungen [representação coercitiva] se fez presente, revelando o caráter de urgência, de insistência dessas representações.

O autor informa que nesse momento já é possível ver esboçada a ideia de uma repetição constitutiva do funcionamento do aparelho psíquico, pois

[...] o termo Zwang indica o caráter de insistência, de perseverança, de necessidade. É justamente nessas representações coercitivas que encontramos com maior frequência os atos obsessivos e repetitivos que deram lugar ao termo Zwangneurose [neurose compulsiva] (KAUFMANN, 1996, p. 450).

Freud ([1896] 1996) anuncia uma modificação na teoria da neurose histérica, que, diferentemente do que Pierre Janet propunha anteriormente, sugere agora que

[...] a divisão da consciência é secundária e adquirida: ocorre porque as representações que emergem nos estados hipnoides são excluídas da comunicação associativa com o resto do conteúdo da consciência (FREUD, [1896] 1996, p. 54).

Freud denomina esse tipo de histeria como “histeria de defesa” e observa que a divisão do conteúdo da consciência se efetiva por um ato voluntário do paciente, em especial, no caso das mulheres, quando as representações incompatíveis com a vida representativa são de origem sexual. Então, os esforços defensivos se mobilizam ou para expulsar esse tipo de representação para longe, ou para esquecê-lo.

No entanto, o autor pontua que esse esquecimento não obteve êxito nos pacientes atendidos por ele, mas que

[...] levou a várias reações patológicas que produziram ou a histeria, ou uma obsessão, ou uma psicose alucinatória (FREUD, [1896] 1996, p. 55).

Para o autor, o eu, em sua atitude de defesa, impõe a si mesmo a tarefa de lidar com essa representação incompatível como algo que não aconteceu, algo do qual nada se sabe, non-arrivé. Contudo, isso é impossível, visto que nem o registro do traço mnêmico, nem o afeto que se vinculou a ele não podem ser erradicados.

No entanto, o eu retira o afeto dessa representação incompatível, tornando-a fraca e fazendo com que ela se submeta com mais facilidade ao trabalho associativo. Destarte, afirma Freud ([1896] 1996, p. 56) que “[...] a soma de excitação desvinculada dela tem que ser utilizada de alguma outra forma”.

No caso em questão, em se tratando de uma histeria, a soma de excitação da representação incompatível se transforma em alguma coisa somática, num fenômeno denominado pelo autor como “conversão”.

É interessante observar que, se naquele momento Freud ([1896] 1996) ainda não havia utilizado a palavra “repetição”, ela se faz presente através da representação incompatível que, produzindo a excitação,

[...] vez por outra reencontra o caminho de volta para a representação da qual se destacou, e compele então o sujeito a elaborar a representação associativamente ou a livrar-se dela em ataques histéricos (FREUD, [1896] 1996, p. 57).

Depois dessa advertência, retomamos o artigo Recordar, repetir e elaborar, no qual Freud ([1914] 1996, p. 166) constata que o paciente algumas vezes recorda fatos e experiências, mas, na maioria dos casos, repete e reedita, na relação transferencial, fatos passados, dos quais não se lembra.

São fatos passados porém presentes e atuantes através da repetição, pois

[...] o começo que o psicanalista nos leva a contemplar, ou melhor, a repetir, não se apresenta como um passado cronológico (GARCIA-ROZA, 2003, p. 59).

Para Garcia-Roza, no processo analítico, não se trata de construir um relato fiel das nossas vivências psicológicas passadas, mas de dar voz a algo que está aí, presentificando-se através das repetições, sendo “[...] vivido em contemporaneidade com nosso presente histórico” (GARCIA-ROZA, 2003, p. 59). Nesse ponto, a ideia da repetição se articula com os conceitos de resistência e transferência.

Segundo Kaufmann (1996), Freud utilizou a palavra “transferência” pela primeira vez em 1888, num artigo escrito para o Dicionário médico de Villaret. O artigo referia-se à histeria, e a palavra “transferência” era designada para situar a mudança do sintoma histérico de um lado para outro do corpo (KAUFMANN, 1996, p. 548).

Pouco mais tarde, em 1895, Freud identificou a transferência no atendimento a pacientes histéricas, conceituando-a como uma “falsa ligação” com o médico. Paradoxalmente, a relação transferencial constitui o motor para o processo analítico e a manifestação da resistência. Assim, a dinâmica da transferência passa a ser efetuada pelo viés da resistência que deve, então, ser contornada por meio da interpretação do analista e revelada ao paciente.

Foi a partir da resistência que se modificou o método clínico utilizado por Freud. De forma diversa da hipnose, a técnica psicanalítica está intrinsecamente ligada à repetição. O sujeito repete porque não se lembra. Assim, podemos ver que a repetição está do lado da atuação, movida por componentes psíquicos recalcados e determinada pela ocorrência da resistência. O repetir, dentro das condições da psicanálise, implica evocar um fragmento da vida real, relacionado às experiências sexuais infantis e atuá-lo mesmo na presença do analista.

Freud pontua que o paciente inicia o seu tratamento por uma repetição desse tipo, pois,

[...] enquanto o paciente se acha em tratamento, não pode fugir a esta compulsão à repetição; e, no final, compreendemos que esta é a sua maneira de recordar. O que nos interessa [...] é, naturalmente, a relação desta compulsão à repetição com a transferência e com a resistência. Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual (FREUD, [1911-1913] 1996, p. 166).

Observamos que, quanto maior for a resistência, tanto maior será a atuação. De acordo com Freud, o paciente repete em vez de recordar. E repete sob as condições da resistência.

O autor questiona, então, o que, afinal, é repetido pelo paciente, concluindo que

[...] repete tudo o que já avançou a partir das fontes do reprimido para sua personalidade manifesta – suas inibições, suas atitudes inúteis e seus traços patológicos de caráter. Repete também todos os seus sintomas, no decurso do tratamento. E podemos agora ver que, ao chamar atenção para a compulsão à repetição, não obtivemos um fato novo, mas apenas uma visão mais ampla (FREUD, [1914] 1996, p. 167).

Kaufmann pontua que

[...] Freud reconheceu de imediato o caráter perturbador da transferência, a saber, o surgimento na análise do amor que se volta (tragen) para o analista, desempenhando um papel ao mesmo tempo revelador do passado (catalisador, diria Ferenczi), mas também de resistência ao relato desse passado (KAUFMANN, 1996, p. 548).

Finalmente, é no amor de transferência, na análise, que vai se dar o preenchimento das lacunas de memória, através do trabalho de construção efetuado pelo analista. Podemos pensar que a resistência se apresenta como uma repetição e atualização do laço erótico infantil. Através dos acting-out endereçados ao analista, o paciente repete esse laço, sem saber que o está repetindo.

Assim, diante das frequentes repetições dos seus pacientes na clínica, Freud se pergunta:

O princípio de prazer é soberano ou existe algo que se sobrepõe a ele?

O que aponta para um além do princípio de prazer?

 

Compulsão à repetição para além do princípio do prazer

Como é possível perceber nos textos escritos após 1920, em seu trabalho clínico, Freud percebe que a repetição não contradiz o princípio de prazer, pois, se a experiência é desagradável em nível consciente, ela traz prazer como realização de desejos, em nível inconsciente.

Não era exatamente isso o que os sintomas histéricos ofereciam às pacientes de Freud?

Em outras experiências, Freud percebeu que existe uma compulsão à repetição que, se é desagradável à consciência, nada pode ser agradável ao inconsciente. A repetição de eventos traumáticos se coloca em contraste com a suposta primazia do princípio de prazer sobre o aparelho psíquico.

Nessa perspectiva, a compulsão à repetição é o fenômeno que aponta para um aspecto da vida psíquica, da ordem do pulsional, que se mostra para além do princípio de prazer.

Podemos observar dois momentos na teoria freudiana sobre as pulsões:

• Na primeira teorização sobre as pulsões, Freud postula que o conflito psíquico se expressaria através da oposição entre as pulsões do eu e as pulsões sexuais; a neurose resultaria da prevalência das pulsões do eu.

• Na segunda teoria pulsional, Freud argumenta que as pulsões estariam mais ligadas à lógica da constituição do sujeito, ou seja, à lógica da castração, da falta, do falo e, consequentemente, ao Édipo.

No texto Além do princípio de prazer (FREUD, [1920] 2016), a questão da compulsão à repetição é citada na intenção de demonstrar que “algo escapa” no psiquismo e não se submete ao princípio de prazer. Dois fatos contundentes levaram Freud a pensar a repetição como um fenômeno para além do princípio de prazer.

O primeiro deles foi uma brincadeira infantil, o “fort-da”. O criador da psicanálise presenciou uma cena em que uma criança de apenas um ano e meio que, brincando com um carretel preso a um cordão, jogava-o para além da borda do próprio berço, fazendo com que o objeto desaparecesse de sua visão. Naquele momento, a criança proferia um significativo “o-o-ó”. Quando puxava o cordão, e o carretel surgia novamente, a criança o saudava com um receptivo “da”.

Para Freud, ([1920] 2016) o que se evidencia com esse processo, o jogo do “fort-da”, é a renúncia pulsional que a criança precisa empreender quando “deixa” a mãe ir embora sem protestos. É fato, diz Freud, que a partida da mãe não pode ser sentida pela criança como algo agradável ou até mesmo indiferente. Ele observa que a criança se encontra numa posição passiva diante da mãe e de sua partida. Ao repetir a cena através do jogo nas brincadeiras infantis, ela se torna ativa dentro da situação criada e, ao mesmo tempo, se vinga da mãe, por abandoná-la.

Para Freud ([1920] 2016), durante a brincadeira, a criança passa da passividade da experiência que viveu para a atividade do jogo. A partir daí transfere a experiência desagradável para um de seus companheiros de brincadeira e, dessa forma, pode se vingar por meio de um substituto.

O autor destaca que, no caso da brincadeira infantil, a repetição da experiência de desprazer permite à criança lidar de uma forma mais completa com conteúdos indesejáveis e dolorosos do que se apenas sofresse passivamente.

O segundo fato que leva Freud a pensar a repetição “para além do princípio de prazer”, foi o atendimento aos soldados que sobreviveram à Grande Guerra. Com a eclosão da I Guerra Mundial, a clínica de Freud é interrompida parcialmente. É nesse momento que o pensador inicia a produção de importantes textos para a sua obra, como Além do princípio de prazer (1920) e Psicologia de grupo e análise do eu (1921).

Ao se deparar com os sonhos repetitivos, Freud questiona a teoria dos sonhos que formulara anos antes, na qual asseverava que os sonhos seriam realizações de desejos. No caso de neuróticos traumáticos, por exemplo, os sonhos demonstram a peculiaridade de reconduzi-los à situação traumática, fazendo com que acordem tomados por um novo susto. Essas situações revelam a fixação ao trauma. Evidencia-se aqui a intrigante peculiaridade da compulsão na vida psíquica de levar o sujeito à repetição de experiências desagradáveis.

É dessa forma que, nesse momento, buscamos a compulsão à repetição como elemento da pulsão de morte. Que força é essa que se manifesta sob a forma de tendência à destruição, voltada contra o mundo e muitas vezes contra o próprio sujeito?

Esse conceito limítrofe entre o psíquico e o somático, que, como nos disse Freud em O mal-estar na civilização (1930), foi o que ele tateou mais penosamente o seu caminho.

Freud alerta que, além da pulsão para conservar a substância vivente, deveria existir uma outra contrária a ela e com o intuito de conduzi-la ao estado primordial inorgânico. Ao lado do amor, o Eros platônico, encontraríamos a pulsão de morte. Enquanto as manifestações de Eros se apresentam ruidosas, a pulsão de morte opera de forma silenciosa no interior do ser vivo, visando sua própria destruição. A pulsão de morte se apresenta sempre como um tema enigmático, um caminho impossível.

É a esse caminho que a compulsão à repetição nos conduz, ou como dizia Freud no último capítulo do O mal-estar na civilização:

[...] cabe agora esperar que a outra das duas potências celestiais, o eterno Eros, empreenda um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o sucesso e o desenlace? (FREUD, [1930] 2010, p. 122).

 

Considerações finais

O que nos moveu desde o início deste trabalho foi o tema da repetição e o caminho percorrido por Freud até relacioná-lo com a compulsão à repetição. Tentamos entrar no pensamento freudiano e, numa certa medida, buscamos sangrar a teoria do mestre vienense, dela extraindo as considerações aqui disponíveis.

Sem a pretensão de esgotar um tema que consideramos tão complexo quanto fundamental na prática psicanalítica, esperamos ter contribuído para elucidar o fenômeno da repetição, cujo conceito esteve presente em praticamente toda a obra de Sigmund Freud.

Suas inúmeras transformações apontaram nuances distintas nos diferentes movimentos da elaboração teórica freudiana. Foi apontada nos primórdios da psicanálise com o termo “facilitação” [Bahhung], posteriormente como “representação coercitiva” [Zwangvorstellungen], “repetição” [Widerholung] e, finalmente, “compulsão à repetição” [Widerholungszwang]. E ganhou nuances distintas nos diferentes movimentos da elaboração teórica freudiana.

Acompanhando o pensamento do autor, buscamos uma articulação interna dos conceitos que nos permitisse compreender a relação das redes conceituais nos diferentes movimentos da elaboração teórica de Freud.

 

Referências

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KAUFMANN, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise: o legado de Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Zahar, 1996.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Fabrizia Izabel Meira Souto
E-mail: fabrizia.soutopsi@gmail.com

Jacqueline de Oliveira Moreira
E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br

Breno Ferreira Pena
E-mail: brenopena@hotmail.com

Recebido em: 02/07/2018
Aprovado em: 28/09/2018

 

Sobre os autores

Fabrizia Izabel Meira Souto
Psicóloga.
Conteudista de Pós-Graduação.
Mestre em Psicologia pela PUC Minas.

Jacqueline de Oliveira Moreira
Psicólogo.
Psicanalista.
Professora da PUC Minas.
Bolsista CNPq e Fapemig

Breno Ferreira Pena
Psicólogo.
Psicanalista.
Membro do CPMG e do CPPA.
Mestre e doutor em Psicologia pela PUC Minas.
Professor adjunto da graduação em Psicologia da UFPA.
Professor e orientador de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PPGP) da UFPA.

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