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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.76 Belo Horizonte July/Dec. 2018

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Melancolia: o objeto perdido que me assombra

 

Melancholy: the lost object that haunts me

 

 

William Selau Alves

I Centro Universitário de Brasília

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio tem como objetivo explorar teoricamente a condição da melancolia como estrutura clínica, a partir do viés psicanalítico. Com base no livro Psicose e laço social, de Antonio Quinet (2006), as principais características desse fenômeno serão apresentadas aqui, paralelamente com o entendimento de outros autores que já trabalharam com essas ideias. Fazendo uma passagem de Freud a Lacan, será possível compreender os motivos que levam a melancolia a se enquadrar como uma estrutura psicótica.

Palavras-chave: Psicanálise, Melancolia, Psicose, Freud, Lacan.


ABSTRACT

This essay aims to theoretically explore the condition of melancholy as a clinical structure from a psychoanalytic standpoint. Based on the book "Psicose e laço social" by Antonio Quinet (2006), the main characteristics of this phenomenon will be presented here, along with what was understood by other authors who have worked these ideas before. Moving from Freud to Lacan, it will be possible to understand the reasons which allow melancholy to be tagged as a psychotic structure.

Keywords: Psychoanalysis, Melancholy, Psychosis, Freud, Lacan.


 

Introdução

Com base nos artigos de Freud ([1915] 1976) sobre metapsicologia, entendemos que o aparelho psíquico é regido pelo princípio de prazer, em que uma força pulsional tenta reduzir o nível de excitação anímica para um estado menor de gasto de energia. Diante disso, compreendemos que o aumento da excitação corresponderia à diminuição do prazer, portanto a dor seria característica dessa energia psíquica em ação.

A partir da segunda tópica, em um dos últimos conceitos originais de Freud, a psicanálise apresenta a pulsão de morte. Há um prazer atrelado à diminuição da excitação como uma tentativa do aparelho psíquico em retornar ao estado de inércia, representativo da satisfação. Essa dor psíquica, que tende a ser evitada pelo sujeito, também se manifesta em dor de existir.

Quinet (2006) relembra as ideias do budismo sobre o tema, em que muitos fenômenos da vida estariam relacionados à dor, como o nascimento, a doença, a separação daquilo que amamos e a tristeza. Com a noção de que existe uma finitude da vida e de seus recursos vitais, o sujeito se movimenta animicamente por essa realidade dura, marcada pela essência do vazio psíquico, que nunca será preenchido. Portanto, a dor representaria a falta estrutural, e o desejo, uma forma de lidar com esse vazio.

Relembrando a psicanálise de Freud, os autores Mendes, Viana e Bara (2014) descrevem os principais aspectos da relação do sujeito com os objetos primários, e como a melancolia se apresenta como resultado de uma perda da libido do sujeito, ao perder o objeto de amor idealizado.

Diferentemente do processo de luto, no qual o sujeito vivencia uma perda real, a melancolia se manifesta como uma estrutura clínica marcada pela idealização de um objeto perdido, com o qual o sujeito se identifica. No sujeito melancólico, a perda não simbolizada é acompanhada do predomínio da realidade interna que se sobressai à realidade externa. Esse é um dos fundamentos pelo qual a melancolia se aproxima da concepção de psicose.

A melancolia, enquanto uma categoria clínica da psicose, trabalha no nível inconsciente; portanto, é um fenômeno que funciona a partir das leis da instância inconsciente. Uma característica importante para essa compreensão é o fator atemporal de funcionamento. Como a melancolia é o resultado psíquico da perda de um objeto idealizado, é possível verificar que o sujeito não sabe quando o perdeu nem por quanto tempo haverá o investimento no objeto perdido, que está internalizado.

No entanto, o objeto perdido/abandonado exerce uma influência significativa na constituição do seu eu, e não à toa, possui uma identificação com ele. A partir dessa concepção, a perda pode ser vista muito mais como uma modificação dessa relação do que como o encerramento dela.

Se os movimentos psíquicos inconscientes visam o alcance do prazer, na catexia objetal prevalece um investimento narcísico do objeto, o que pode ser observado no aspecto de incorporação e identificação. Já que o objeto é narcisicamente idealizado, pode-se compreender que sua perda também será de natureza ideal.

Um reflexo dessa questão pode ser percebido nas características comportamentais de um melancólico que se recusa a se alimentar, atividade inerente ao processo de incorporação que foi frustrante ao sujeito. A energia destinada ao objeto na sua perda não será descolada para outro, pois como visto, faz parte desse eu.

Em Luto e melancolia, Freud ([1917] 1976) descreve que a libido não deslocada se volta para o próprio sujeito, e este se identifica com o objeto perdido. Portanto, o objeto idealizado está dentro do sujeito, e, por sua vez, o abandono do objeto seria também uma perda de si mesmo.

 

O esvaziamento do desejo

Conforme Quinet (2006), a perda que o sujeito não sabe que teve, de algo que ele não sabia que tinha, se manifesta como um esvaziamento da libido através de um furo deixado pela experiência psíquica da falta.

Partindo de Freud, Quinet (2006) elabora que a articulação neuronal do aparelho psíquico fica prejudicada. Em seguida, vincula essas ideias à psicanálise lacaniana afirmando que, no estado melancólico, a rede de significantes dificulta a formação de cadeia. Através desse ‘furo’ se esvazia a libido do sujeito, resultando no delírio de ruína, por exemplo, com o empobrecimento de seus bens.

Enquanto o neurótico possui uma referência de objeto no qual baseia sua busca de prazer e de tentativa de reencontro da satisfação primeira, o psicótico não consegue constituir uma cadeia de significantes, e seu desejo pode se manifestar como delírio.

Enquanto no paranoico o delírio é de perseguição, no melancólico a via delirante pode se expressar como decadência ou até mesmo autopunição. O desejo, que deveria se apresentar como uma referência para busca de prazer, se manifesta como algo destrutivo. Quinet (2006) relembra que o sujeito na psicose não teve a interdição de um terceiro na relação fusional, portanto a instância do desejo está desorganizada.

Na psicose lacaniana ou na neurose narcísica freudiana, o sujeito está sofrendo de uma hemorragia do desejo; como um ralo por onde escorre sua libido (QUINET, 2006). Para Quinet (2006), esse furo seria equivalente à foraclusão do Nome-do-Pai, o que explicaria a ausência da vivência do registro simbólico na psicose. As manifestações dessa psicodinâmica são percebidas nos comportamentos de um melancólico, que não consegue investir libidinalmente em seu mundo externo, o qual não lhe apresenta nenhuma fonte de prazer.

Ao descrever os conceitos lacanianos para a compreensão da melancolia, Tenório e Costa-Moura (2014) afirmam que se trata de uma relação direta com o objeto perdido, que acaba por constituir o sujeito. Portanto, a ausência do objeto está no campo do Real e se confunde com o próprio sujeito.

Para Tenório e Costa-Moura (2014), ao passar por uma experiência de luto, o neurótico tentaria elaborar a perda do objeto amado buscando substituí-lo por outro, deslocando sua libido ainda existente na procura de uma reposição de um novo objeto que amenize a falta deixada pela ausência do objeto anterior. Na melancolia, como já apontado, a perda se estabelece como fenômeno idealizado e o objeto perdido se volta para o sujeito que, por sua vez, o incorpora e, por conseguinte, não procura em seu exterior uma tentativa de substituição.

 

O sujeito maníaco-depressivo

Quando resgata a ideia freudiana de que na melancolia se estabelece um “furo no psiquismo” por onde escorre toda a libido do sujeito, Quinet (2006) afirma que deve existir uma “tampa” que possa fazer a suplência dessa abertura.

Atrelando aos conceitos lacanianos, Quinet (2006) integra a ideia de que esse furo, por onde se esvai o desejo do sujeito, equivale a um buraco no simbólico resultante da não inscrição do significante Nome-do-Pai. Com a ausência do significante organizador da cadeia desejante, o sujeito melancólico não atribui simbolização ao seu desejo, e essa falta se manifesta no real, constituindo sua dor de existir.

Para Quinet (2006), o sujeito melancólico está sempre na posição de causa. A ruína que constitui seu delírio de autodepreciação é a causa da perda desse objeto internalizado. Seu desejo, que escorre pelo ralo, é causa de uma culpa pela perda do objeto de amor destruído. Já no polo maníaco o furo aparenta estar completamente tampado, e o sujeito delira estar sendo causa da fortuna dos outros.

Ferrari (2006) retoma as ideias de Lacan sobre a mania como uma das expressões da estrutura melancólica. No delírio melancólico de ruína o sujeito se desprende de qualquer atributo positivo, se esvaziando de seus bens, pois está identificado com o objeto destruído. Já na mania o sujeito tenta demonstrar que não tem limite e que triunfou sobre o objeto de desejo.

Coura (2000) exemplifica, com as ideias de Abraham, uma relação do estado maníaco da melancolia com a euforia de uma criança em sua festa de aniversário. Ao receber diversos presentes, a criança se depara com a impossibilidade de não poder usufruir do brinquedo favorito, já que é necessário dividir com os amigos convidados da festa. A criança não se satisfaz com nenhum presente específico e troca de brinquedo constantemente, na tentativa de brincar com todos, já que nenhum a satisfaz plenamente.

Num esforço desenfreado de buscar a constituição da cadeia de significantes, a mania se expressa como uma errância à procura do objeto, como uma tentativa de composição de uma metáfora. Como o objeto perdido está internalizado, é possível compreender que a busca será falha, visto que nenhum significante será integrado ao outro e, metonimicamente, o sujeito desliza seu desejo sem se colar a nenhum objeto externo.

 

A arte como fenômeno cultural de suplência

A arte pode ser vista como uma expressão cultural advinda do processo de sublimação dos sujeitos. Em Freud ([1915] 1976) entendemos que a sublimação seria o processo pelo qual a pulsão muda seu alvo em busca da relação com um objeto socialmente valorizado. As vicissitudes revelam as saídas às quais a energia pulsional é submetida quando capturada pelo aparelho psíquico, tentando dar uma ordem ao caos inconsciente.

Para Freud ([1915] 1976), essa é uma maneira que as exigências pulsionais encontram para ser acolhidas sem a influência do recalque alcançando, assim, a satisfação ao atender uma necessidade sexual.

O que fica claro com Garcia-Roza (2008) é a característica de satisfação parcial da pulsão, que nunca encontra um estado pleno de alcance do prazer. Esse atributo está atrelado a um dos elementos da pulsão, que é a sua força sempre constante e que jamais será saciada.

Outro componente fundamental para compreensão da pulsão é o objeto. Garcia-Roza (2008) reforça a ideia freudiana de que esse objeto é não uma coisa-no-mundo, mas uma síntese de representações que se ligam aos atributos da experiência subjetiva do sujeito.

Esse será o meio pelo qual a pulsão tentará encontrar uma forma de satisfação, baseada em modelos anteriores. O objeto estaria no nível de representação, mas anterior a esse trabalho haveria um componente não assimilável, o que Garcia-Roza (2008) retoma como algo que permanece excluído da organização psíquica.

Antes mesmo da constituição do mundo anímico há um vazio que não será norteado pelos princípios do aparelho após sua formação e esse ‘algo não consumado’ seria o índice da Coisa. O conceito de das Ding não se submete a uma síntese de categorias no campo do entendimento racional, o que torna sua tentativa de descrição cada vez mais complexa, podendo apenas ser pensada e não conhecida.

Jorge (2010) relembra essa peculiaridade de das Ding não ser resumida em nenhuma palavra ou imagem. Na tentativa de evocá-la na experiência nenhum significante irá substituí-la, mas poderá tentar passá-la a uma condição de objeto (JORGE, 2010). Estando as características do objeto no nível de representação anímica, ao tentar elevar a Coisa ao mundo da linguagem, se apresentará desse esforço a noção de falta, pois se ausenta da cadeia significante a tentativa de representação da Coisa.

Com isso, nos aproximamos da compreensão de que esse vazio tentará um preenchimento pela via pulsional, como se tentasse dar corpo existencial à Coisa. A força constante da pulsão será marcada por essa falha de concretizar o que não existe numa tentativa de reencontro do que nunca se teve.

Ao descrever sobre a Coisa na melancolia, Quinet (2006) indica que o artista se utiliza da essência de das Ding, o vazio, para criar algo novo, sugerindo uma articulação entre a melancolia e a criação. Segundo Quinet (2006), a circunstância para criar é associada à ausência de algo da cadeia significante, pois, ao contrário, haveria apenas a repetição.

Na psicose maníaco-depressiva a Coisa se manifesta no registro do real, dificultando a simbolização e inviabilizando a metáfora. Com traços melancólicos, o artista, a partir de sua criação e baseado no vazio da Coisa, tenta tamponar sua falta estruturante, fazendo de sua arte a suplência do Nome-do-Pai.

 

Para concluir

Nos estudos sobre melancolia alguns autores não utilizam a psicanálise lacaniana para explicar o fenômeno, como é o caso de Mendes, Viana e Bara (2014) e Coura (2000), citados nesse artigo. Entretanto, Quinet (2006) consegue fazer uma articulação entre Freud e Lacan, facilitando a compreensão da estrutura psicótica maníaco-depressiva.

Neste trabalho foi possível explorar as principais características da melancolia enquanto psicose, especialmente pela ausência da inscrição do significante Nome-do-Pai, organizador da cadeia significante.

A partir disso, compreende-se que a falta estruturante ao sujeito não encontra uma referência para se organizar enquanto desejo do Outro, e a consequência da operação do mecanismo de foraclusão está presente também nas demais manifestações da psicose.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
William Selau Alves
E-mail: wsarba@gmail.com

Recebido em: 21/05/2018
Aprovado em: 28/09/2018

 

Sobre o autor

William Selau Alves
Psicólogo de orientação psicanalítica com experiência na área clínica.
Graduado em Psicologia no Centro Universitário IESB (2016).
Especializando em teoria psicanalítica pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB) (2017-2018).

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