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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.40 no.76 Belo Horizonte July/Dec. 2018

 

PSICANÁLISE E LIETERATURA

 

O agora é um instante

 

The now is an instant

 

 

Andrezza Souza Martinez Machado

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nem todos vivenciam o instante de maneira plena. Algumas pessoas vivem presas ao passado ou ansiosas com o futuro. Outras não conseguem apreciar o que o presente tem a oferecer dado o caráter efêmero do momento. Há ainda aquelas que não conseguem atribuir nenhum tipo de significado à própria experiência. O artigo objetiva abordar tais questões dentro de um enquadre atual e com uma abordagem psicanalítica. Para tanto, utiliza a obra de Clarice Lispector intitulada Água viva, publicada em 1973.

Palavras-chave: Clarice Lispector, Instante, Freud, Transitoriedade.


ABSTRACT

Not everyone can fully enjoy the moment. Some people remain stuck to the past or anxious about the future. Others are unable to cease what the present has to offer them due to its ephemeral features. And there are even those who fail to give any meaning to such experience. This paper aims to deal with these matters under a modern perspective with a psychanalytic approach. For that, one shall use Clarice Lispector’s book entitled Água Viva, published in 1973.

Keywords: Clarice Lispector, Instant, Freud, Transience.


 

A vida moderna exige cada dia mais que se viva em função de tarefas intermináveis e, por vezes, impossíveis. Supostos preceitos imaginários ditam obrigações que transcendem os limites humanos. Assim, as pessoas bem-sucedidas são aquelas que superaram todos os seus limites e conseguiram feitos inconcebíveis para a maioria da população.

Com a velocidade dos acontecimentos e a automatização do comportamento, as pessoas se perdem em tantas obrigações que as impossibilitam de vivenciar a verdadeira essência de cada instante. O imperativo capitalista moldou valores e ambições em matéria monetária, favorecendo a acumulação sem significado real. De tal forma, perde-se o sentido da realidade.

Necessidades são criadas pela mídia a cada instante, e atribui-se como pertencente a si próprio a imposição maciça do consumismo. Ao entrar nesse ciclo de mercado, torna-se difícil saber o limite da tênue linha que demarca o real desejo do sujeito e a vontade imposta pela propaganda. Logo se percebe que um mero objeto adquirido não tem o poder de conceber satisfação a longo prazo. Tão fugazes são tais valores que se torna difícil o preenchimento de uma necessidade adquirida. A dívida para viver em sociedade por vezes é alta, e o preço da civilização onera os desejos.

Constata-se que ilusões são criadas, pois a esperança favorece o percurso da vida. O desamparo da vida causa um sentimento de falta que norteará desejos e escolhas. A impotência frente ao universo e seus enigmas propicia subterfúgios acerca do valor da realidade. Criam-se mecanismos para tamponar o desconforto. E a felicidade fica distante de sua nascente.

Não surpreende saber que a taxa de depressão aumenta em índices alarmantes. O Relatório global, publicado pela Organização Mundial da Saúde (2017), revela que o número de casos de depressão aumentou 18% entre 2005 e 2015, são 322 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, a depressão atinge 11,5 milhões de pessoas (5,8% da população). Dados como esses incitam a pensar na gênese psíquica de crenças e valores.

Um profundo sentimento de vazio tem tomado conta da vida, norteando a existência humana. O processo de viver pode ser angustiante. Não há controle sobre os acontecimentos nem do que irá ocorrer com cada um. Tomemos, pois, ciência da fatalidade do acaso.

Para abordar tal assunto, desconcertante para a maioria das pessoas, utiliza-se uma ferramenta valiosa para a compreensão da realidade: a produção literária. Para tanto, evidencia-se a obra de Clarice Lispector, uma figura mítica brasileira em cujo trabalho encontra-se toda gama da experiência humana. Escritora e jornalista nascida na Ucrânia em 1920, Clarice era estrangeira não pelo fato de ter nascido em outro país, mas por ser uma estrangeira na Terra (MOSER, 2013).

De origem judaica e buscando fugir do horror da perseguição antissemita da guerra civil russa, sua família emigrou com destino ao Brasil para a cidade de Maceió em 1922, onde ficou por três anos até mudar para o Recife. Aos quinze anos de idade, Clarice mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, onde posteriormente cursou Direito e se casou com um diplomata, o que a fez morar por algum tempo em diferentes países enquanto esteve casada.

A autora publicou diversos contos, crônicas e livros. Faleceu em 1977, em decorrência de um câncer no ovário (MOSER, 2013). Alguns de seus personagens, que adquiriram gradativamente consciência de si mesmos, foram desenvolvidos numa trajetória em busca de sentido para a vida.

Em Água viva, Clarice ([1973] 1998), criteriosamente, transforma sua experiência pessoal em poesia universal: recursos filosóficos e emocionais são empregados no decorrer de sua narrativa dando um caráter de espontaneidade. Com o auxílio de sua grande amiga Olga Borelli, que a ajudou a estruturar os manuscritos, o livro foi publicado em agosto de 1973. O título faz alusão à coisa que borbulha, uma fonte ou nascente (MOSER, 2013).

O aspecto mais misterioso do livro está na maneira como o tempo presente acontece. Transmite-se, de forma pulsante e fragmentada, a experiência real de estar vivo. Com alusão aos sentidos, entra-se em contato com o mundo interior do instante que passa no decorrer das linhas, por meio de uma simplicidade alcançada através de muito trabalho (MOSER, 2013).

Na apresentação do livro, Lúcia Helena (1998) destaca que Clarice adentrou em seu processo característico de narrativa, enfatizando a fragmentação, a contaminação do romanesco com o lírico e o abrandamento das linhas descritivas e representacionais.

A trama do livro expõe ânsias e procura num discurso de fluidez ininterrupta entre o delírio, a confissão e a sedução. “A protagonista busca surpreender as intricadas relações entre o instante fugido e sua inscrição no espaço”. No texto flui o sentimento de agora e, paradoxalmente, interliga a petrificação e a mudança.

A partir de uma leitura pautada na busca do significado e na vivência do instante, possibilita-se tecer algumas reflexões a respeito do presente e da vida. Adentrar no mistério da existência causa em alguns, indagações nem sempre respondidas. Clarice ([1973] 1998) convida a essa jornada, na qual será possível destacar alguns pontos relevantes.

A produção literária possibilita a elaboração da vida. Além disso, constitui um artifício que cria uma realidade dedicada a transfigurar os acontecimentos, entregar-se ao instante, que é desconhecido e vivo. Presenciar de maneira verdadeira o hoje possibilita a instauração do futuro. A vida vista pela vida não precisa ter sentido, pois é essa falta de sentido que faz pulsar a vida. Viver somente o que é passível de sentido é limitar-se.

[...] na pintura como na escritura procuro ver estritamente no momento em que vejo – e não ver através da memória de ter visto num instante passado. O instante é este. O instante é de uma iminência que me tira o fôlego. O instante é em sim mesmo iminente. Ao mesmo tempo que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para o outro instante (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 75).

Uma possibilidade de se captar o que acontece é viver cada coisa que surge. Assim, a transfiguração acontece. Em outras palavras, passa a existir uma realidade única, que significa de maneira singular cada acontecimento. Por vezes, a caminhada torna-se sofrida, mas vivida. Cada um tem uma maneira distinta de se salvar (LISPECTOR, [1973] 1998).

Não existe uma fórmula ou receita que leve facilmente para o caminho da felicidade. Cada um tem a tarefa de encontrar o seu próprio método e, assim, tentar manter à distância o sofrer; ou seja,

[...] cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 41). Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 40)

E em nenhum deles podemos alcançar tudo o que desejamos (FREUD, [1930] 2010).

É interessante quando se toma consciência de que o improviso também faz parte da arte de existir. Nada é estático. Assim, necessita-se de flexibilidade para poder viver de acordo com a ocorrência dos fatos e não com um roteiro predeterminado, que impinge uma atuação mecanizada exigida por certos padrões concretizados (próprios ou do mundo).

A significação de cada existência ultrapassa significados. Tem-se um processo que em algumas situações carece de sentido. A renúncia do significado traz liberdade e, com isso, pode-se encontrar a beleza no sentido oculto. O mistério permeia o cotidiano e eventualmente a única ordem visível do mundo consiste na respiração (LISPECTOR, [1973] 1998).

Ao articular acerca da falta de sentido, Clarice ([1973] 1998) conclui que isso pode ser fonte de sentido e pode ser capaz de transformar. Destaca ainda que

[...] a palavra mais importante da língua tem uma única letra: é. É (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 28).

Diante disso, pode-se depreender algumas informações. Palavra originada do verbo ser, que, segundo o Dicionário Aurélio, significa aquilo que é, que existe, existência, vida. Além disso, conjugada no presente do indicativo, tempo que expressa certeza e um fato atual.

No âmago do “É” não há questionamentos.

Aliás uma pessoa é tudo. Não é pesado de se carregar porque simplesmente não se carrega: é-se o tudo (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 33).

Vale evidenciar o excerto retórico em que autora aborda de maneira oblíqua as contrariedades da vida:

Não gosto é quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que me contorça toda. Os fatos da vida são o limão na ostra? Será que a ostra dorme? (LISPECTOR, 1973, p. 31).

A reflexão que se segue traduz que não estamos preparados para que certos eventos ocorram. Eles são como limões em nossas profundezas, com um teor que possibilita a quebra de um dito controle e equilíbrio, fazendo com que haja algum tipo de mudança.

Ademais, os fatos da vida são comparados ao limão na ostra, capaz de produzir pérolas a partir de uma reação natural contra invasores externos. Por outro lado, uma ostra ganha sabor e tona-se mais palatável com o toque do limão (LISPECTOR, [1973] 1998).

É surpreendente perceber como a falta de controle pode ser entendida mediante uma faceta agradável. Quando Clarice ([1973] 1998, p. 34) diz “Não dirijo nada. Nem minhas próprias palavras”, segue-se o complemento: “Mas não é triste: é humildade alegre”.

Algumas páginas depois podemos acompanhar a considerável constatação:

Ocorreu-me que não é preciso ter ordem para viver. Não há padrão a seguir e nem há o próprio padrão: nasço (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 37).

Logo, o não planejamento também faz parte da vida. Viver consiste em um trabalho intuitivo e perpassa pelo indireto, pelo informal e pelo imprevisto.

Lispector ([1973] 1998) dedica-se também a fazer reflexões que dizem respeito às angústias da vida e da morte. Enigmas tecidos ao longo da vida, que nem sempre são decifráveis. Fortuitamente, torna-se escura e sem guia a caminhada.

Mas, o “[...] andar na escuridão completa à procura de nós mesmos” (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 45). E se a incerteza persistir, temos a resposta em um fragmento: “Para onde vou? e a resposta é: vou” (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 29).

Sem ingenuidade, o decurso da vida pode acompanhar processos dolorosos. Entretanto, a dor sinaliza a evidência da vida. Mesmo que tal processo suscite alguma dor, essa dor faz parte do processo do ‘vir-a-ser’ tendo, assim, um benefício intrínseco. Por vezes, o que impede a felicidade é o sentimento de medo.

Nesse caso, significativo se faz tomar a liberdade de poder errar, cair e levantar; de ser o hoje (LISPECTOR, [1973] 1998).

O que sou neste instante? Sou uma máquina de escrever fazendo ecoar as teclas secas na úmida e escura madrugada. Há muito já não sou gente. Quiseram que eu fosse um objeto. Sou um objeto. Objeto de sangue. Sou um objeto que cria outros objetos e a máquina cria a nós todos. Ela exige. O mecanismo exige e exige a minha vida. Mas não obedeço totalmente: se tenho que ser um objeto, que seja um objeto que grita. Há uma coisa dentro de mim que dói. Ah como dói e como grita pedindo socorro. Mas faltam lágrimas na máquina que sou. Sou um objeto sem destino [...] (LISPECTOR, 1973, p. 86)

Assim, pode-se ainda engendrar um coerente diálogo com Freud ([1916] 2010) no artigo A transitoriedade. O texto se ambienta em uma narrativa do próprio autor ao apreciar “[...] uma rica paisagem num dia de verão” (FREUD, [1916] 2010, p. 248). Surge uma divergência relacionada a duas perspectivas distintas: a de Freud e a de um poeta que o acompanhava. O poeta, ao admirar a paisagem, lamenta o fato de que toda aquela beleza estaria fadada à extinção.

O autor, então, entra em defesa do valor do belo, a despeito da brevidade que o destino impõe. A exigência da imortalidade consiste em um produto oriundo dos desejos, e ela pode instigar uma preocupação com a fragilidade do que é belo e perfeito.

Sabemos que tal preocupação com a fragilidade do que é belo e perfeito pode dar origem a duas diferentes tendências na psique. Uma conduz ao doloroso cansaço do mundo mostrado pelo jovem poeta; a outra, à rebelião contra o fato constatado. Não, não é possível que todas essas maravilhas da natureza e da arte, do nosso mundo de sentimentos e do mundo lá fora, venham realmente a se desfazer em nada. Seria uma insensatez e uma blasfêmia acreditar nisso. Essas coisas têm de poder subsistir de alguma forma, subtraídas às influências destruidoras (FREUD, [1916] 2010, p. 248).

Uma visão que fugiria do pessimismo seria utilizar a própria transitoriedade como fonte de maior valorização.

Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. A limitação da possibilidade da fruição aumenta a sua preciosidade [...] Se existir uma flor que floresça apenas uma noite, ela não nos parecerá menos formosa por isso (FREUD, [1916] 2010, p. 249).

Por essência, podemos desfrutar intensamente só o contraste; baseado no pensamento de que “[...] nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias belos” (GOETHE apud FREUD, [1930] 2010, p. 31).

A delimitação do tempo não deprecia; pelo contrário, a efemeridade acrescenta um encanto. Mas para tomar ciência de tais constatações, um poderoso elemento emocional influencia no julgamento. Um gosto antecipado do luto pela ruína pode acarretar prejuízo ao desfrutar o belo (FREUD, [1916] 2010).

De tal forma, o pensamento desenvolvido assente a efemeridade de muitas coisas que por muito pareciam sólidas. Todavia, a estima não necessariamente será perdida com a descoberta da fragilidade. Freud ([1916] 2010) termina a narrativa discorrendo em defesa da reconstrução. No caso, a reconstrução dos bens destruídos pela Primeira Guerra Mundial, salientando a possibilidade de se construir em “[...] um terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes” (FREUD, [1916] 2010, p. 252).

Por ser passageiro, cada instante carrega uma beleza única e inigualável. O futuro é incerto. Existe o presente, o agora, o instante. O valor será atribuído não pela durabilidade, mas pelo seu significado atribuído. Assim sendo, mesmo com sua finitude, cada instante se manterá vivo pelo seu valor.

Diante do exposto, constatamos que se entregar ao instante não é tarefa fácil. Há momentos em que o instante se torna um “[...] vazio branco esperando o próximo instante” (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 52).

Todavia, não podemos perder o fascínio pelo “imprevisto improvisado”.

“Agora é um instante. Você sente? eu sinto” (LISPECTOR, [1973] 1998, p. 46).

 

Referências

FREUD, S. A transitoriedade (1916). In: ______. Introdução ao narcisismo ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 247-252. (Obras completas, 12).         [ Links ]

FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1930). In: ______. Inibição, sintoma e angústia, o futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 231-301. (Obras completas, 17).         [ Links ]

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). In: ______. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-354. (Obras completas, 18).         [ Links ]

LISPECTOR, C. Água viva (1973). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.         [ Links ]

MOSER, B. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.         [ Links ]

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Depression and other Common Mental Disorders: Global Health Estimates. Geneva, 2017. Licence: CC BY-NC-SA 3.0 IGO.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Andrezza Souza Martinez Machado
E-mail: andrezza_martinez@yahoo.com.br

Recebido em: 16/05/2018
Aprovado em: 28/09/2018

 

Sobre a autora

Andrezza Souza Martinez Machado
Psicóloga. Mestre pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
Candidata do 1º Tempo da Formação Psicanalítica do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).

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