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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte jan./jun. 2019

 

AUTOR CONVIDADO

 

A psicanálise na escola do pintor David Malkin

 

Psychoanalysis at paville school David Malkin

 

 

Paolo Lollo
Tradução:
Bernardo Maranhão
Revisão da tradução:
Carlos Antônio Andrade Mello

I Universidade de Paris 13
II Escola de Psicanálise Corpo Freudiano - Seção Paris
III Insistance

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Que relação há entre psicanálise e arte? Que traço comum podemos perceber entre essas duas modalidades do agir humano? Não se trataria de duas maneiras de fazer vibrar um real que escapa a todo saber? Dois atos que estariam, um com o outro, em ressonância e em contiguidade quase íntima? Em todo caso, David Malkin, pintor colorista que atravessou o século XX como artista, inventor e cabalista, sabia alguma coisa sobre o real, sobre a vida e a morte. Malkin fez da imagem e da aparência uma ponte de cristal que nos conduz ao coração do real, uma ponte de que a psicanálise pode se servir para suas travessias rumo a todos esses impossíveis.

Palavras-chave: Psicanálise, Arte, David Malkin.


ABSTRACT

What relationship is there between psychoanalysis and art? What common trace can we perceive between these two modalities of human action? Wouldn't they be two ways of causing to vibrate a real that exceeds all knowledge? Two acts which would be in resonance and in almost intimate contiguity with each other? Anyway, David Malkin, a colorist painter who has gone through the 20th century as an artist and inventor but also as a kabbalist, knew something about the real, about life and death. Malkin has made out of image and appearance a crystal bridge that leads us to the heart of the real, a bridge psychoanalysis can use to cross towards all these impossible.

Keywords: Psychoanalysis, Art, David Malkin


 

O grau zero do passe1

A história das matemáticas dá testemunho de uma imensa resistência a acolher na família dos números a cifra zero, que se apresentava aos olhos dos padres como uma criatura enigmática e diabólica com a pretensão de encarnar o nada. A numeração primitiva se limitava a produzir signos que deviam corresponder aos números de objetos representados. Eram necessários, portanto, vários signos para significar os diferentes números. A numeração antiga, da qual temos um conhecimento histórico, a numeração babilônica, por exemplo, utilizava símbolos bem precisos, como cravos. Parece-me interessante recordar que os escribas babilônios representavam o zero com um cravo inclinado, que indicava uma separação. O zero era um espaço vazio, mas esse vazio tinha a função de separar dois outros signos, como dois cravos.2 Em hebraico, os números são representados pelas letras do alfabeto, mas não há letra para significar o zero. Essa falta foi preenchida pela palavra “sefer”, que significa ao mesmo tempo contar e escrever, o que indica tanto o número quanto a letra. Na tradução bíblica, Sefer designa o livro sagrado, o Sefer Torah.

O termo “sefer” se escreve em hebraico com três consoantes, sfr, que estão contidas também no termo grego zephuros, que é o vento vindo do oeste. Mas qual relação há, então, entre sefer, o livro, e zéfiro, o vento? Parece-me evidente que o vento remete ao vazio que seu sopro evoca, um sopro que permanece impalpável, imaterial, mas potente, atuante. O vento sopra e agita as planícies e os mares. Assim como zephuros, o espírito divino no relato bíblico sopra sobre a superfície da terra e cria assim o mundo. Da mesma maneira, o espírito dos homens sopra e, assim, cria. O vento, em sua passagem, modela e transforma os espaços, e assume a cada momento uma forma diferente. É por essa razão que o termo “zéfiro”, por obra das transcrições de uma língua a outra, transforma-se no termo “cifra” e, nas línguas neolatinas, por contração, torna-se “zero”. O árabe o confirma: Sifr significa vazio. É a partir desse vazio que diversas formas e passagens podem surgir.

 

Escrever, gravar, fazer o vazio

Ora, qual relação lógica há entre o número zero e o termo hebraico sefer, que remete à escrita e, portanto, à letra? Qual relação há entre o ato de esvaziar e o de escrever? Um primeiro sentido do termo sefer, que remete ao radical sfr, é o de raspar, retirar matéria, ou seja, gravar sobre a pedra. Eis um ato eminentemente fundador da escrita. Com efeito, na origem, para escrever, se tratava não de deitar tinta sobre um pergaminho, mas de retirar um fragmento de pedra a fim de inscrever signos ou palavras, de gravá-los. Escrever significa, então, fazer o vazio, produzir um espaço “entre”, gravar “em” uma pedra, criar o vazio, produzir o zero.

É sobre esse vazio que Freud constrói seu método analítico, que se opõe ao método da sugestão praticado pelos médicos e pelos psicólogos. A propósito disso, em Sobre a psicoterapia, Freud ([1905] 1976) cita Leonardo da Vinci, que coloca em oposição, no campo das artes, a técnica da pintura e a da escultura. O pintor trabalha, diz Leonardo, per via de porre, ou seja, acrescentando cor à tela branca. Inversamente, o escultor procede per via di levare,3 isto é, retirando material da pedra para dar forma a uma estátua. Do mesmo modo, a técnica sugestiva procede com o método que Leonardo define como via di porre,4 ao passo que a psicanálise age per via di levare. A nova prática criada por Freud retira, despoja, faz o vazio em torno do sintoma, reduz o imaginário, para poder isolar a ideia patógena que perturba e desativá-la. A sugestão induzida pelo psicólogo age cobrindo o sintoma, que permanece intacto sob a cor, sob as interpretações que o psicoterapeuta fornece ao paciente. Seu propósito é aprisionar o sintoma, impedir que ele se manifeste. Do mesmo modo, a cor cobre a tela do quadro, que passa a ficar escondida.

Per via di levare é o método da psicanálise, que move o analisante, em face do silêncio do analista, a sugerir a si mesmo uma associação, uma ‘inter-pretação’, o que funda seu tratamento como analítico. Trata-se, então, de uma sugestão que surge do interior do sujeito, do inconsciente do paciente, e não do exterior.

É a partir do vazio, produzido por essa operação de extração de sentido, que procede o ato analítico. Cada ato é uma passagem que se coloca em um espaço de incerteza, de indecisão entre dois. Essa passagem é um deslocamento subjetivo, um “passe”, que poderia ser representado por uma barra oblíqua, a da escritura babilônica que sugere a separação. Trata-se de uma cunha, um signo que indica um espaço vazio .

É no espaço vazio da sessão analítica que se origina a possibilidade de toda escrita. É ainda no espaço vazio entre dois significantes que se marca uma diferença. É precisamente essa diferença, que a cunha inscreve no real da pedra, que se torna escrita.

 

A luz de David Malkin

Se, por um lado, os relatos de meus analisantes me ensinaram a criar em mim esse silêncio que permite escutar e interpretar, por outro, foram os quadros de um pintor que me levaram a pensar e a escrever. Há imagens que inspiram meu trabalho de pesquisa e me convidam a atravessar, de uma maneira nova, alguns territórios da psicanálise. Essas imagens, propostas pelos quadros de David Malkin, têm o inquietante poder de me emocionar e me questionar. Com efeito, é perturbador se encontrar diante de uma imagem que convida nosso olhar a ir, paradoxalmente, além do visível. As formas e as cores, por um estranho efeito de luz, conduzem a outras dimensões, que levam o observador mais longe, para além das aparências. É uma experiência visual e ao mesmo tempo espiritual que nos impulsiona a fazer uma travessia. Entre a aparência da imagem e a outra margem da imagem, há, com efeito, uma soleira que é preciso saber atravessar. Os quadros de Malkin são janelas de pequeno formato que, por sua vez, dão acesso a outras janelas, menores, abertas para o desconhecido. Há figuras e signos que nos conduzem a um outro lugar, que permanece, contudo, inacessível e que, assim como a cena de um sonho enigmático, demanda interpretação. Essas janelas que se abrem diante de nós são lugares de passagem que põem em relação o visível e o invisível, a matéria e o espírito. Essas passagens têm, todavia, uma dupla função: colocam em relação e, ao mesmo tempo, separam. Então, se é verdade que o pintor agrega cor à tela branca, isso não impede que sua pintura e suas cores se subtraiam à evidência e façam ouvir alguma coisa do invisível. Uma obra assim conduz a uma outra dimensão, que convoca os demais sentidos e induz um outro entendimento. A plenitude da cor pode, portanto, produzir um vazio de determinação, uma ausência de sentido, e levar a um além da imagem e da matéria.

 

O anjo da vida e da morte

Em hebraico, a palavra “passagem” se diz Pessa’h. Reencontramos a raiz semítica dessa palavra no termo latino “pascua”, como no português Páscoa, que designa a festa religiosa que todos conhecemos. A Páscoa judaica celebra a fuga do Egito empreendida pelo povo judeu e sua passagem pelo Mar Vermelho. Os hebreus se emancipam, se libertam da escravidão e buscam sua liberdade se dirigindo à Terra Prometida. Trata-se de uma passagem de um lugar a outro, de um estado a outro: da escravidão à liberdade. Esses são dois estados opostos, mutuamente excludentes, sem relação recíproca. Tornamo-nos escravos quando nos retiram toda a nossa liberdade. No entanto, uma vez que saímos da escravidão, ainda não somos totalmente livres. Há, pois, uma terceira dimensão, que representa o momento de passagem no qual a liberdade ainda está em relação com a servidão. Essa passagem religando o passado de escravidão a uma liberdade por vir é um deslocamento que cria uma escansão. Vivemos em constante movimento, como o povo judeu através do deserto, em busca não só de uma terra, mas também de uma promessa. Além disso, estamos sempre “de passagem”.

A festa de Pessa’h, entretanto, põe em cena, na tradição judaica, um outro movimento, o do anjo da morte que passa sobre as portas das casas marcadas com o selo rubro do sangue do cordeiro sacrificial. Nessas casas o anjo não se deterá para trazer a morte ao primogênito varão. A terrível maldição baterá, porém, à porta das outras casas. As janelas dos quadros de Malkin têm essa marca. O anjo da morte passa por sobre as janelas do pintor, e elas se abrem então a um tempo messiânico portador de esperança. Nós, que as olhamos, somos levados a um além da imagem. Somos chamados a ir além da aparência. Os quadros de Malkin nos convidam a nos ultrapassarmos e a atravessarmos, sem medo, as passagens de nossa vida: nascimento, infância, maturidade, doença, velhice, morte. Algumas dessas passagens são felizes; outras, sofridas. Malkin nos convida a dar luz e cor à nossa vida, a dar peso à nossa existência, não somente para o bem-estar de nosso pequeno presente, mas para responder ao chamado que nos é feito pelo futuro. A palavra “futuro” tem uma forma latina antiga, fuo, derivada da raiz indo-europeia bheu, que significa crer, nascer, tornar-se. Ela remete ao termo grego “physis”, que significa também crescer. O termo “futurus” é, portanto, o “particípio futuro” de fuo, uma forma verbal que só existe em algumas línguas. Futurus significa o que está em vias de advir, o que será. Na língua francesa [e também no português], falta essa terceira dimensão do particípio, a que permite à natureza, physis, crescer e ao homem, advir. Sustento que o particípio futuro “participa” desse movimento de criação que põe o passado em relação com o futuro. Destaco também que o termo latino fuo evoca o grego phoos, que significa luz e remete à palavra “fogo”. Para manter aceso o fogo do futuro do mundo que virá, é preciso que o presente se torne uma ponte, uma passagem entre o passado e o futuro, e que se possa, desse modo, não só fazer nascer, mas também fazer advir. A pintura de David Malkin, sua busca artística e espiritual de luz, é uma abertura para o futuro.

 

O anjo da história

A crítica considera David Malkin um pintor abstrato e o aproxima de Nicolas de Staël, pintor francês de origem russa. Parece-me, contudo, que a pintura de Malkin se torna mais compreensível se confrontada às obras de Wassily Kandinsky e de Paul Klee. Para esses dois artistas, a abstração permite uma busca por novos meios formais, capazes de penetrar nos segredos da natureza. Libertos da amarra figurativa, eles se consagram ao estudo de novas formas por meio de uma análise dos signos, das cores e da luz.

Na pintura de Malkin, a abstração permite decompor a natureza em elementos simples que perdem também seu caráter definido e reconhecível. A forma se emancipa da figura, que é prisioneira de uma modalidade (a moda) convencional de representação da realidade. A forma se libera de sua propensão a fixar a imagem em uma ideia, em um ídolo.

Malkin faz estilhaçar a figura em mil fragmentos, que se tornam chispas de luz aptas a desvelar pedaços de invisível. Segundo Klee (1964, p. 34), a arte não reproduz o visível, ela torna visível. Para Kandinsky (1990, s.p.), toda coisa é perecível e “[...] o que resta da vida é o espírito. O Espiritual na arte: aquilo que na arte é artístico”.

O espiritual, para Malkin, pode tomar corpo, tornar-se cor, transformar-se em luz. O nome Malkin remete à raiz hebraica malak, que significa ao mesmo tempo anjo e mensageiro. Eis aqui uma clave, ou melhor, uma Klee interessante, para interpretar a obra do pintor das cores e da luz. A visão do mundo futuro se apresenta por intermédio dos mensageiros que têm acesso ao real e que estão à altura de fazer dele um relato. Um célebre quadro de Klee põe em cena um anjo que olha para o passado. Aterrorizado, uma vez que vê todas as catástrofes do passado, o anjo caminha recuando rumo ao futuro, para o qual dá as costas.

 

Em face do real

Assim, a exemplo desse anjo que Walter Benjamin (2012, s.p.) identificará como “o anjo da história”,5 David Malkin olha para as ruínas do passado. Ainda que essa visão o deixe paralisado e siderado, o vento sopra em suas asas de artista e o impulsiona para o porvir. É por ter visto de frente o real, a morte, que ele pode não fazer-lhe o relato, mas mostrar-lhe o acesso em sua pintura. Essa leitura de sua obra se apoia em um episódio da vida do pintor. Com efeito, alguns dias depois de seu nascimento, o pequeno Malkin morre subitamente. A mãe constata o trágico falecimento e, no dia seguinte, de coração partido, coloca o pequeno corpo sem vida do menino em um caixão que ela transporta sobre um carro de mão, e o leva ao cemitério. Ao longo do trajeto, por ruas um tanto acidentadas da pequena cidade de Akkerman, ela ouve alguma coisa se mexer no pequeno caixão: abre-o e constata que seu filho continua vivo!

Essa história espantosa nos faz arrepiar. A história do pintor também foi marcada por essa experiência. Depois de ter visto, com pavor, o furo da morte, David tentará durante toda sua vida mostrar essa passagem limite, pintando janelas que se abrem para a luz. Essas aberturas estabelecem um elo entre o aqui da imagem e o além da representação. As obras de Malkin põem em cena um conflito entre sombra e luz, no qual o presente engaja uma luta contra a destruição.

Filho de um boticário que fabricava tintas, David Malkin se torna o grande mestre colorista da pintura contemporânea. Suas obras do período parisiense são de pequeno formato, feitas a óleo sobre papel do Japão. Sobre esse suporte bem simples, uma tempestade de cor se delineia; figuras buscam uma definição, sombras errantes encontram uma forma incerta: rostos, silhuetas, rabinos em prece, palhaços tristes, músicos que dançam. Há um mundo detrás do mundo. A realidade, as paisagens, os rostos são ao mesmo tempo janelas abertas para o invisível.

 

A pintura em face do invisível

Assim fala Kandinsky (1990, s.p.) dos artistas capazes de revelar, pela criação de formas novas, a vida invisível que constitui a realidade verdadeira do homem. Suas obras dão um novo movimento ao espírito e impulsionam “para cima e para adiante o pesado carro da Humanidade”.6 A arte de Malkin tem essa força de um despertar profético capaz de engendrar uma nova visão do mundo por vir.

Nascido em 1910, em Akkerman, a alguns quilômetros de Odessa, David Malkin estuda escultura no ateliê de um velho mestre francês que vivia na cidade. Em 1934, Malkin se muda para um kibutz na Palestina. Trabalha por alguns anos nos depósitos de laranja da comunidade e, à noite, esculpe retratos e nus. Sua primeira exposição em Jerusalém era destinada a provocar um escândalo. O jovem escultor, neto de um escriba da Torá, havia transgredido o interdito bíblico de fazer um ídolo, pesel, ou uma imagem, temouna, “do que está em cima no céu ou abaixo na terra”.7 Esses interditos orientarão a arte de Malkin, que se colocará no cruzamento entre a pintura figurativa e a abstrata. Há, com efeito, uma ambiguidade, uma indecisão nas formas que o pintor coloca em imagem; elas são manchas de cores, abstrações que, no entanto, evocam figuras. Para Malkin, não é proibido ver ou interpretar uma mancha de cor; o interdito, para ele, recai sobre uma imagem que se dá como ídolo, que se faz ídolo. Ela se torna sedutora e até fascinante e, como tal, nos distrai do essencial. O que conta para o pintor não é o que aparece, mas o que fica escondido. No relato bíblico, o povo de Israel se deixa fascinar pelo bezerro de ouro e se afasta, desse modo, de sua crença monoteísta em um deus invisível cujo nome é impronunciável. Aquilo que permanece inacessível ao nosso olhar e fica, digamos, separado do visível, é o real. É esse corte mesmo entre o visível e o invisível que funda o sagrado. Ao mesmo tempo, esse corte produz a separação entre o sagrado e o profano, sobre a qual se fundam todas as religiões. Para o judaísmo, o ídolo é a negação do sagrado. O monoteísmo que se funda sobre a Bíblia crê em um universal invisível e uno, no Invisível.8 Para as religiões politeístas, os deuses são manifestações ou modalidades do divino, que podem habitar a natureza e frequentar o homem. O perigo contido nessa visão é o de não mais se poder distinguir e separar nitidamente transcendência e imanência, sagrado e profano, invisível e visível.

O percurso artístico de Malkin nada concede, portanto, aos ídolos, que são modalidades de um visível que perdeu todos os seus segredos. Malkin é um criador que não cede aos efeitos da moda e não se submete à ilusão do mercado que transforma as coisas e os humanos em mercadorias bem feitas. Segundo Kandinsky (1990), os criadores autênticos não procuram nem o reconhecimento nem a celebridade, porque sua obra lhes basta, ela é o seu salário. Por essa razão, Malkin permaneceu por muito tempo afastado do público, longe do mundo mercantil da arte. Integralmente absorvido por seu trabalho de criador, não permitiu que as pressões acadêmicas obstruíssem a fonte de sua inspiração. Posicionado à parte da sociedade de consumo, Malkin não era, contudo, isolado do mundo. Sua curiosidade intelectual, sua sede de saber, sua vasta cultura eram o produto de uma profunda alegria de viver e de um desejo terrestre de experimentação.

Colocar-se à parte das ilusões do mundo, conservando-se, entretanto, próximo do mundo, assinala o caráter próprio do percurso e da vida de um artista. Essa ambivalência é o resultado de uma operação que separa o visível do invisível e que permite, desse modo, a emergência de um espaço intermediário. Tal espaço, por se encontrar “em tensão entre duas dimensões”, pode comodamente acolher a diferença.

A luz, para se revelar, necessita de sombra; a música, de silêncio. A imagem não pode prescindir da palavra para ser interpretada. Somente nos intervalos entre imagem e som, entre som e palavra, entre um significante e outro é possível pôr em movimento a cadeia das associações e, nessa mesma trilha, a psicanálise. Esse intervalo, essa colocação à distância do real em relação ao imaginário, permite o surgimento e o funcionamento da dimensão simbólica. A psicanálise, portanto, precisa do real e do imaginário para desdobrar a palavra que se encontra, ao mesmo tempo, em disjunção e em ligação com a vida e com o evento. Por essa razão, a psicanálise não pode se abster de frequentar a escola dos artistas e de participar dos “ateliês” que lhe permitem manter contato com o real e o imaginário.

 

Referências

FREUD, S. Sobre a psicoterapia (1905 [1904]). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976. p. 263-278. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).         [ Links ]

KLEE, P. Théorie de l’art moderne. Paris: Gallimard, 1964.         [ Links ]

KANDINSKY, W. Do espiritual na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1990.         [ Links ]

BENJAMIN, W. Teses sobre o conceito de história, IX. In: ______. O anjo da história. IX. Tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: insistance@free.fr

Recebido em: 11/03/2019
Aprovado em: 15/04/2019

 

Sobre o autor

Paolo Lollo
Psicanalista, filósofo por formação.
Ensinou literatura italiana e linguística no ensino médio e universitário na Itália, Alemanha, Polônia e França.
Pesquisador da Universidade de Paris 13 (Unité transversale de recherche psychogenèse et psychopathologie).
Membro e secretário-geral da Insistance, associação que liga a psicanálise à arte e à política.
Membro do conselho editorial da revista Insistance (Paris: Érès).
Cofundador e presidente da Escola de Psicanálise Corpo Freudiano - Seção Paris.

 

 

1 O passe é um dispositivo de formação da psicanálise, criado por Lacan para permitir aos analisantes se tornarem analistas.
2 Os escribas babilônios (aprox. 1792-1750 a.C.) não utilizavam mais do que duas cifras: um “cravo” vertical (), representando a unidade, e uma “cunha” , associada ao número dez. Eles conceberam posteriormente (século III a.C.) um signo que se apresentava como uma dupla cunha inclinada . Esse signo de separação na escrita dos números é uma genuína cifra zero. Contudo, esse zero é concebido pelos babilônios não como uma quantidade, mas como separação entre duas “passagens”.
3 “[…] retira da pedra tudo o que oculta a superfície da estátua nela contida” (FREUD, [1905] 1976, p. 270).
4 “[…] aplica uma substância – partículas de cor – onde nada existia antes, na tela incolor” (FREUD, [1905] 1976, p. 270).
5 “Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de alguma coisa que ele olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto se volta para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos o progresso é esse vendaval.” BENJAMIN, 2012. s.p.
6 “Infalivelmente, surge então um homem [o artista], um de nós, em tudo um nosso semelhante, mas dotado de uma misteriosa potência de ‘visão’. Vê e mostra o caminho. Quererá por vezes se desvencilhar desse dom, que frequentemente lhe pesa como uma cruz. Não poderá fazê-lo. Apesar do desprezo e do ódio, ele arrasta em sua esteira, no caminho atulhado, para cima e para adiante, o pesado carro da humanidade” (KANDINSKY, W. Do espiritual na arte, São Paulo: Martins Fontes, 1990. s. p.).
7 “Não farás para ti imagem de escultura, figura alguma do que há em cima nos céus, abaixo na terra e nas águas debaixo da terra” (Êxodo, 20, 3; Deuteronômio, 5, 7. Bíblia Hebraica. Tradução de David Gorovits e Jairo Fridlin. São Paulo: Sêfer, 2006).
8 No original, l’UNvisible, termo cunhado pelo autor para condensar o Um e o invisível. Note-se a homofonia entre o termo criado, UNvisible, e o vernáculo invisible. Dada a impossibilidade de explorar homofonia semelhante em português, a tradução optou por grafar o termo como “1nvisível”, substituindo a letra i pelo algarismo 1. (N. T.)

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