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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte Jan./June 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Da Verwerfung em Freud à foraclusão em Lacan

 

From verwerfung in Freud to foreclosure in Lacan

 

 

Keylla Barbosa

I Université Paris Diderot - Paris 7

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Propomos analisar nos textos de Lacan e seus interlocutores (sobretudo Freud e Hyppolite) a formação da hipótese da foraclusão como alicerce teórico no que diz respeito à constituição das psicoses. Para tal, iremos percorrer junto com Lacan a tomada da palavra “Verwerfung”, que aparece no artigo de Freud sobre o “Homem dos Lobos”, e a sua transformação em “foraclusão”. Examinaremos esse ato criativo de Lacan, a fim de situar esse novo conceito no plano epistemológico deixado por Freud e revisitado por Lacan.

Palavras-chave: Psicanálise, Psicose, Foraclusão, Verwerfung.


ABSTRACT

We propose to analyze in the texts of Lacan and his interlocutors (above all with Freud and Hyppolite) the formation of the hypothesis of foreclusure as a theoretical foundation for the constitution of psychoses. To do this, we shall follow Lacan's use of word Verwerfung, which appears in Freud's article on the "The Wolf Man", and its transformation into foreclosure. We will examine this creative act of Lacan in order to situate this new concept in the epistemological plane left by Freud and revisited by Lacan.

Keywords: Psychoanalysis, Psychosis, Foreclosure, Verwerfung.


 

A foraclusão é uma hipótese criada por Lacan para explicar a ausência do significante Nome-do-Pai na cadeia significante e no lugar do Outro. Essa hipótese, que estaria na base da estrutura psicótica, indica seu mecanismo de defesa. Nesse caso, a psicose seria definida pela não inscrição desse significante que é o responsável pela possibilidade de significação.

A palavra em francês “forclusion” [foraclusão] foi escolhida por Lacan para traduzir a palavra “Verwerfung”, utilizada por Freud para fazer menção a um possível processo de defesa. A tomada da palavra “Verwerfung” e sua substituição pela palavra “forclusion” não apenas se trata de uma tradução, mas também da criação de um conceito inexistente em Freud. A palavra “Verwerfung” era utilizada por Freud a fim de marcar a ação de uma barreira, de uma rejeição ou uma abolição. E é, então, com Lacan que a Verwerfung ganha um estatuto de pilar fundamental no estudo das psicoses.

Neste artigo, vamos acompanhar o processo de formação do termo “foraclusão”, de modo a colocar uma lente sobre suas minúcias, seus detalhes, seus apoios teóricos e epistemológicos.

É o artigo de Freud sobre o Homem dos Lobos que inspira Lacan a construir a foraclusão. Desse artigo, Lacan toma alguns comentários de Freud como ponto de partida para delinear um novo significado para a palavra “Verwerfung”. Na parte VII desse texto, intitulada Erotismo anal e complexo de castração, Freud analisa as fantasias do Homem dos Lobos a respeito da cena de sexo entre seus pais vista por ele quando muito jovem:

Era por certo uma contradição que, a partir desse momento, pudessem coexistir angústia de castração e identificação com a mulher mediante o intestino, mas era apenas uma contradição lógica, o que não quer dizer muito. Todo o processo é agora característico do modo como o inconsciente trabalha. Uma repressão é algo diferente de uma rejeição (FREUD, [1914-1918] 2010, p. 71).

A frase “Uma repressão é algo diferente de uma rejeição”, que em alemão se escreve “Eine Verdrängung ist etwas anderes als eine Verwerfung” (FREUD, [1914-1918] 1924, p. 85), é a frase de Freud que deu origem à foraclusão lacaniana. A pontuação de que uma rejeição é diferente de uma repressão ou um recalque1 abre a possibilidade de se pensar em mecanismos de ação inconscientes diferentes entre si e, consequentemente, em seus resultados.

Para Freud, o modo de operação do aparelho psíquico culmina em diferentes tipos clínicos, sendo possível, a partir dessa hipótese, sugerir uma diferença de base entre a neurose e a psicose. Ao observar essa abertura potente deixada por Freud, Lacan eleva a Verwerfung à categoria de conceito fundamental em relação à psicose, propondo, assim, uma explicação de base estrutural para isso que se apresenta na clínica.

Mais adiante, ainda no capítulo VII do artigo sobre o Homem dos Lobos, encontramos o seguinte trecho a respeito de uma possível resposta em relação à castração:

Já nos é conhecida a atitude inicial do paciente para com o problema da castração. Ele a rejeitou e se ateve ao ponto de vista da união pelo ânus. Ao dizer que a rejeitou, o significado imediato da expressão é que não quis saber dela, no sentido de que a reprimiu. Com isso não se pronunciava um juízo sobre a sua existência, mas era como se não existisse (FREUD, [1914-1918] 2010, p. 75).

A frase na citação acima traduzida como “Ele a rejeitou” em alemão se escreve “Er verwarf sie” (FREUD, [1914-1918] 1924, p. 91), ou seja, Freud aqui se utiliza do verbo verwerfen, que dá origem ao substantivo Verwerfung, para falar sobre o destino da castração nesse caso. A frase que aparece na edição brasileira, citada acima, “não quis saber dela, no sentido de que a reprimiu”, na edição alemã aparece como “er vor ihr nichts wissen wollte im Sinne der Verdrängung” (FREUD, [1914-1918] 1924, p. 91).

O modo como essa frase é colocada por Freud no texto em alemão apresenta certa ambiguidade que possibilita a Lacan fazer dela uma leitura no sentido de isolar a Verwerfung como um mecanismo de defesa diferente da Verdrängung. No seminário, livro 3: as psicoses ([1955-1956] 2010), bem como no artigo Resposta ao comentário de Jean Hyppolite ([1954] 1998), Lacan deixa registrado que sua tradução dessa frase é a seguinte: “le sujet ne voulait rien savoir de la castration même au sens du refoulemen” (LACAN, [1955-1956] p. 121),2 que na edição traduzida para o português se torna “o sujeito nada queria saber da castração, mesmo no sentido do recalque” (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 177).

Para completar, o autor leva ao extremo a afirmação de Freud de que, no caso do Homem dos Lobos, “era como se [a castração] não existisse”, no original “aber es war so gut, al sob sie nicht existierte” (FREUD, [1914-1918] 1924, p. 91) e a traduz como “il en fut aussi bien que si elle n’avait jamais existé” (LACAN, [1954] 1966, p. 384-385), que na versão em português aparece como “foi exatamente como se ela nunca tivesse existido” (LACAN, [1954] 1998, p. 389). Foi a partir dessas traduções/interpretações que Lacan pôde construir, para as psicoses, um mecanismo que se coloca na base, ou melhor, na estrutura de seu funcionamento.

No decorrer do Seminário 3: as psicoses, podemos mapear, em vários momentos, exatamente os passos dados pelo autor a partir do texto de Freud sobre o Homem dos Lobos no caminho da construção do conceito de Verwerfung, expressamente cunhado e lapidado desta forma:

Se há coisas de que o paciente não quer nada saber, mesmo no sentido do recalque, isso supõe um outro mecanismo. E como a palavra Verwerfung aparece em conexão direta com essa frase e também com algumas páginas antes, eu me apodero dela. Não me prendo especialmente ao termo, prendo-me ao que ele quer dizer, e creio que Freud quis dizer isso (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 177)

E, finalmente, define, na página seguinte, deste modo:

De que se trata quando falo Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então neste nível. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da paranoia (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 178).

É importante notar que foi apenas na última lição do Seminário 3 que Lacan introduz a palavra “forclusion” como substituta na língua francesa para a palavra “Verwerfung”. Antes, ele apenas usava a palavra em alemão. Mais precisamente, no dia 4 de julho de 1956, Lacan anuncia:

O que há de tangível no fenômeno de tudo o que se desenrola na psicose é que se trata da abordagem pelo sujeito de um significante como tal, e da impossibilidade dessa abordagem. Não torno a voltar à noção de Verwerfung de que parti, e para a qual, tudo bem refletido, proponho que vocês adotem definitivamente esta tradução que creio ser a melhor – a foraclusão (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 369-370, grifo do autor).

Em nenhum momento de sua obra, Lacan diz o motivo pelo qual escolheu a palavra “foraclusão” [forclusion]. Então, vamos as suas origens. É certo que essa palavra configura um termo jurídico tanto na Alemanha quanto na França, onde é empregada para se referir à impossibilidade do uso de um direito que, não tendo sido exercido dentro de certo prazo, não pode mais ser requerido pelo sujeito. A possibilidade de uso de um direito prescreveu, e o fato sobre o qual o direito recairia não poderá mais ser analisado e julgado perante a lei, o que quer dizer que o direito de chamar uma lei à ação foi foracluído. Porém, antes de se tornar um termo jurídico, a palavra “foraclusão” em francês constava no vocabulário corrente e era utilizada como um sinônimo de excluir, privar, expulsar, impedir, banir, omitir, cortar, prender do lado de fora ou banir alguém para fora de algum limite (RABINOVITCH, 2001, p. 17).

Outra origem do uso dessa palavra por Lacan é o emprego dela por Édouard Pichon e Jacques Damourette em uma coletânea de sete extensos volumes de gramática francesa publicada por esses autores em 1911 e nos anos subsequentes. A coletânea é chamada: Des mots à la pensée. Essai de grammaire de la langue française, que, traduzindo, seria “Das palavras ao pensamento. Ensaios de gramática da língua francesa”.

Nessa gramática, seus autores utilizam a palavra “foraclusão” para explicar a formação da negação na língua francesa. Em francês, para se construir uma negação, é preciso usar dois termos na frase: o primeiro é o “ne” e o segundo varia de acordo com o propósito da negação ou com o objeto; nesse lugar podemos encontrar as palavras “pas”, “plus”, “jamais”, “persone” ou ainda o “que” restritivo. Para esses gramáticos, o primeiro termo da negação é o que torna a frase discordante, portanto é chamado, de discordanciável; o segundo termo é o foraclusivo, pois tem a função de expulsar a ideia representada do campo da possibilidade, excluindo o passado e o futuro.

A segunda parte da negação em francês, constituída por palavras como nada, nunca, jamais, nenhum, ninguém, mais, dificilmente, etc., se aplica aos fatos que o locutor não visa como fazendo parte da realidade. Esses fatos são de algum modo forclos, também damos a essa segunda parte da negação o nome de foraclusivo (DAMOURETE; PICHON, [1911-1927] 1987, p. 115, tradução nossa, grifos dos autores).

Em sua obra Lacan não deixa clara a origem do termo “foraclusão” por ele utilizado. A opção por traduzir Verwerfung por foraclusão parece ter intensa relação com a proposta de Damourette e Pichon, para os quais também se trata de excluir algo passível de representação do campo da possibilidade e do acontecimento. Lacan em alguns momentos chega a comentar o trabalho de Pichon e Damourette, mas não em relação à foraclusão. Em geral, os textos pós-lacanianos que se referem à origem desse termo indicam sua fonte jurídica. Porém, a gramática de Pichon e Damourette é algo que não pode ser deixado de lado, quando se trata da investigação da origem desse termo, pois é certo que Lacan conhecia esse compilado de livros sobre a língua francesa. E nada mais justo ao psicanalista do inconsciente estruturado como linguagem fundar um conceito com bases gramaticais.

Por outro lado, em muitas versões dos textos freudianos a palavra “Verwerfung” foi traduzida como “rejeição”. Apesar de ser uma palavra frequente em Freud, ela não delimita exatamente um conceito, nem propriamente um mecanismo de funcionamento inconsciente que trata da formação das psicoses. É claro que a Verwerfung só ganha esse estatuto com Lacan.

Ainda no Seminário 3: as psicoses, embora o delineamento preciso de Lacan sobre a Verwerfung como uma operação significante apareça na lição 11 e sua tradução apareça no último capítulo, já na lição 1, o autor começa a introduzir esse tema, costurando o caminho que o levará às consequências finais desse livro. Assim, ele marca uma distinção entre Verwerfung [rejeição/foraclusão] e Verneinung [negação] e relaciona ambas com a Bejahung [afirmação] termo apresentado por Freud ([1925] 2010) em A negação [Die Verneinung].

Nesse artigo, Freud aborda a questão dos primeiros processos do aparelho psíquico que dizem respeito à afirmação e à negação. Desse modo, afirmar algo é distingui-lo como bom e introduzi-lo no aparelho psíquico, enquanto negar é colocar algo como mau e excluí-lo deste. Portanto, segundo Freud, nesse processo de distinção, ocorre uma Bejahung (afirmação) e uma Ausstossung (palavra traduzida como expulsão).

De acordo com a tese do princípio de prazer, aquilo que é bom será afirmado e internalizado pela Bejahung, enquanto aquilo que é mau será posto para fora pela Ausstossung. A Bejahung será lida por Lacan como o processo inicial da inclusão do primeiro corpo de significantes, ou seja, como a instauração do lugar do Outro, e a Ausstossung como a constituição do fora perdido para sempre, ou seja, a constituição do Real. A Ausstossung e a Bejahung são como avesso e direito de um “mesmo gesto de divisão” (RABINOVITCH, 2001, p. 46) entre fora e dentro.

Freud nos diz que, mediante a ação do par Bejahung/Ausstossung, deve operar a verificação de posse e de realidade das representações internalizadas. Isso foi por ele chamado de juízo de atribuição e juízo de existência, respectivamente. É no juízo de existência que irá funcionar a Verneinung como uma sucessora da Ausstossung, distorcendo o valor de existência de determinadas representações. A Verneinung nega a existência de algo já internalizado no aparelho psíquico, portanto, é desse modo que ela se distingue da Ausstossung, visto que esta última tem a função de expulsar tudo aquilo que não traz satisfação à libido. A Verneinung pressupõe a existência daquilo que ela nega, ou seja, daquilo que foi internalizado pela ação do par Bejahung/Ausstossung, mantendo a separação entre representação e coisa, e agindo sobre uma representação a serviço do retorno do recalcado. A Verneinung age deformando o conteúdo inconsciente para que este possa alcançar o consciente; ela não é um processo de defesa, mas opera a serviço de um.

Dito isso, cabe a pergunta sobre o ponto em que se situa a Verwerfung nesse plano mítico da constituição do dentro e do fora.3 Segundo Lacan, a Verwerfung corta pela raiz aquilo que, internalizado pela Bejahung, é submetido ao juízo de atribuição. Desse modo, a Verwerfung impede a formação do simbólico, o que só pode surgir por meio dos mecanismos de negação explicados anteriormente. Qualquer significante incorporado pela Bejahung/Ausstossung pode ser lançado fora pela Verwerfung e nunca mais será encontrado. Não irá sobrar nenhum vestígio da existência desse significante havendo uma alteração no juízo de atribuição e existência, mantendo aquilo que foi foracluído como se nunca houvesse existido nem dentro, nem fora do aparelho psíquico. Tudo se passará como se algo nunca tivesse sido introduzido nesse primeiro corpo de significantes, o que, de certo modo, cria uma identidade entre Ausstossung e Verwerfung (RABINOVITCH, 2001, p. 26).

Nesse período da obra de Lacan, a Ausstossung configura a expulsão primária, e é a partir dela que o Real irá se constituir como aquilo que fica para fora da Bejahung. O funcionamento desse jogo entre incorporação e expulsão nada mais é do que o processo formador do simbólico. O que é afirmado constitui o simbólico, e o que é negado fica para o lado de fora da simbolização.

A Verwerfung, portanto, corta pela raiz qualquer manifestação da ordem simbólica, isto é, da Bejahung que Freud enuncia como o processo primário em que o juízo atributivo se enraíza, e que não é outra coisa, senão a condição primordial para que, do real, alguma coisa venha se oferecer à revelação do ser (LACAN, [1954] 1998, p. 389).

A grande diferença entre os dois modos de negação representados pela Verneinung e pela Verwerfung é que a primeira se faz com a lógica da simbolização, enquanto na segunda há um bloqueio do simbólico onde há um retorno do real através de construções imaginárias. Esse momento trata não de uma relação do sujeito com o que há no mundo, mas sim de um reconhecimento daquilo que é; o que está envolvido nesses primeiros processos psíquicos é uma relação do sujeito com o ser.

Na resposta que Lacan escreve sobre o comentário de Jean Hyppolite a respeito da Verneinung freudiana, ele é bem claro ao situar sua hipótese da foraclusão como aquilo que vem para se opor à afirmação (Bejahung) primordial. Nesse caso, ou há a Bejahung, ou o que se coloca em frente ao princípio de realidade é a Verwerfung.

O processo de que se trata aqui sob o nome de Verwerfung, e que não tenho notícia de que algum dia tenha sido objeto de um comentário um pouquinho consistente na literatura analítica, situa-se muito precisamente num dos tempos que Sr. Hyppolite acaba de destacar para vocês na dialética da Verneinung: trata-se exatamente do que se opõe a Bejahung primária e constitui como tal aquilo que é expulso (LACAN, [1954] 1998, p. 389).

Portanto, o processo formador da psicose envolve a exclusão pela Verwerfung de um significante particular. Mas, ao delinear a Verwerfung, Lacan não o pressupõe como algo exclusivo da psicose. A Verwerfung diz de algo que ficou fora da simbolização e, portanto, está nas bases da constituição do Real. Esse mecanismo pode envolver outros significantes e nomear fenômenos para além do que se passa nas psicoses, visto que nesta, o que está em jogo é a foraclusão de um significante bem específico. No Seminário 3: as psicoses, Lacan enuncia qual é esse significante apenas nos momentos finais.

Segundo Arrivé (1999, p. 154), Lacan faz certo suspense sobre o significante faltante, pois em alguns trechos ele declara essa falta, sem especificá-la, como em:

Isso pode parecer-lhes impreciso, mas é suficiente, mesmo se não podemos dizer de imediato o que é esse significante (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 235).

E mais adiante em:

Não há nenhum meio de apreender, no momento em que isso falta, alguma coisa que falta (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 294).

Essa questão sobre o que é que falta será respondida por Lacan no fim de seu seminário sobre as psicoses, quando se refere a esse significante a partir de uma análise sobre a crise do presidente Schreber:

Qual é o significante que é posto em suspenso em sua crise inaugural? É o significante procriação em sua forma mais problemática, aquela que o próprio Freud evoca a propósito dos obsessivos, que não é a forma ser mãe, mas a forma ser pai (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 337-338, grifos do autor).

No penúltimo capítulo desse seminário, ele declara: “Esse significante, nomeei-o da última vez – tu és aquele que é, ou que será, pai”. E no parágrafo seguinte, finalmente nomeia:

Antes que haja o Nome-do-Pai, não havia pai, havia todas as espécies de outras coisas (LACAN, [1955-1956] 2010, p. 353).

O que foi posto para fora da simbolização pela rejeição ou, como diz Lacan, pela foraclusão, o que ficou preso para fora do simbólico pela Verwerfung, vai emergir no registro do real. Trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, aquele de um primeiro corpo de significantes que começou a se formar.

Essa expulsão, que muitas vezes pode ser confundida com o mecanismo da projeção, tem características peculiares no caso da psicose. Ela não é apenas uma projeção no sentido de colocar no outro aquilo que é seu, como acontece na neurose. Na psicose, a projeção tem a ver com esse mecanismo de colocar algo para fora do simbólico. Sob a ameaça de castração, quando o mecanismo de ação é o do recalque (Verdrängung), aquilo que sofre essa ação é certo que volta como sintoma: o recalque e o retorno do recalcado são como o avesso e o direito de uma mesma coisa.

Porém, quando o mecanismo é a Verwerfung, o que é recusado no simbólico, reaparece no real. As psicoses mostram que há uma etapa lógica no desenvolvimento que é anterior a toda simbolização, anterior à dialética neurótica. Na psicose, há algo que não é simbolizado, que impede o surgimento de uma articulação entre recalcado e retorno do recalcado. Isso que não é simbolizado é foracluído. Se fosse simbolizado seria recalcado.

A importância da criação por Lacan da foraclusão enquanto algo que pretende ocupar o lugar de uma primeira hipótese de base para a teoria das psicoses é a de inaugurar a discussão a respeito desse tema a partir de um novo ponto de vista. Ao contrário da neurose, em Freud, a psicose acaba ocupando um segundo plano no sentido de que não foi algo discutido extensamente por esse autor. Lacan, por sua vez, se propõe a reparar essa falta, se dedicando mais substancialmente ao estudo das psicoses e, aparentemente, faz uma tentativa de sustentação teórica ao mesmo tempo em que faz uma tentativa discreta de reparação, indo buscar no texto de Freud o fundamento para sua nova teoria.

É importante salientar que o que Lacan encontra no artigo sobre o Homem dos Lobos faz parte de seu método de releitura de Freud; assim, ele fundamenta sua proposta teórica, com certeza nova, naquela do pai da psicanálise, o que se torna consistente a partir de um pilar epistemológico fundamentado nas operações de construção do aparelho psíquico.

A foraclusão é, portanto, fruto de uma releitura, uma nova proposição de tradução, uma fundamentação teórica sólida e, por fim, uma dose de interpretação.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: keyllafb@yahoo.com.br

Recebido em: 30/10/2018
Aprovado em: 15/04/2019

 

Sobre a autora

Keylla Barbosa
Psicóloga.
Doutoranda em psicopatologia e psicanálise pela Université Paris Diderot - Paris 7.
Mestre em linguística pela Unicamp.
Especialista em Saúde Mental e Saúde Coletiva pela Unicamp.

 

 

1 A tradução da palavra “Verdrängung” para o português varia entre ‘repressão’ e ‘recalque’ a depender de como cada tradutor escolhe articular os conceitos de Freud.
2 Esta citação do Seminário 3 foi consultada no site <www.stataferla.free.fr>, no seguinte link: <http://staferla.free.fr/S3/S3%20PSYCHOSES.pdf>.
3 Segundo Jean Hyppolite em seu texto Comentário falado sobre a Verneinung de Freud (que pode ser encontrado tanto nos Escritos, de Lacan, bem como no livro Ensaios de psicanálise e filosofia, citado anteriormente) a questão da criação de um lugar interior e outro exterior, que está em jogo nas operações que dão origem ao aparelho psíquico, pode ser entendida como um mito. Lacan reitera essa opinião no texto Resposta ao comentário de Jean Hyppolite (também encontrado nos Escritos) dizendo que a aposta em entender esses processos no plano do mito nos ajuda a não cair na armadilha de entendê-los como algo do nível do desenvolvimento.

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