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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte jan./jun. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

O que é o amor?

 

What is love?

 

 

Maria Pompéia Gomes Pires

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo se pergunta sobre o que é o amor, através de Freud e Lacan. É um sentimento que realmente existe ou é uma expressão sempre narcísica.

Palavras-chave: Amor, Narcisismo, Fantasma, Desejo.


ABSTRACT

The article discuss what love is through Freud and Lacan. of love. It’s something real or only a narcissist state?

Keywords: Love, Narcisism, Phantom, Desire.


 

Para falar de amor tem-se que, primeiramente, falar de pulsão. Em Os instintos e suas vicissitudes, Freud ([1915] 1996, p. 127) nos apresenta a definição de pulsão:

Se agora nos dedicarmos a considerar a vida mental de um ponto de vista biológico, uma pulsão nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o somático e o psíquico, como o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente, no sentido de trabalhar em consequência de sua ligação com o corpo.

A pulsão de apresenta em estado de pressão constante. Vê-se que o conceito de pulsão aqui exige a marca do representante psíquico para se identificar como pulsão. Uma fixação e, assim, uma ligação nunca mais desfeita.

A essa ligação da pulsão a um representante psíquico chama-se recalque primário. Fator estrutural, responsável pela atração a si de todas as fantasias inconscientes posteriores, dando-lhes a sua tonalidade, a sua especificidade.

O que no processo psicanalítico se chama de “a travessia da fantasia” nada mais é que o desfalecimento do secundário em primário. A redução da diversidade das fantasias recalcadas ao seu núcleo original. É também chamada de “fantasma fundamental”, que caracterizaria um final de análise, oferecendo ao analisando seu “nome próprio” analítico. A marca de seu ser no mundo, sua alma.

Eu almo, tu almas, ele alma... Condensação: alma e amor fazendo amor.

Mas o que é o amor?

Já em 1920, em Além do princípio de prazer, Freud chega a algo completamente extravagante daquilo que se pensava até então. Lança o conceito de pulsão de morte como:

• Pulsão primordial;

• Pulsão sem representação, intensidade pura, que tende a conduzir o organismo por seus próprios meios em direção ao esgotamento total.

Pode-se compreender tal conceito de duas maneiras:

• Que o montante energético contido naquele organismo se esvaísse sem parada até seu esgotamento total por seus próprios meios;

• Que o falasser movido por aquele montante energético, intensidade pura, buscasse o caminho do excesso na condução ao último termo da cadeia significante em direção a das Ding resíduo permanente, não assimilável da primeira experiência de satisfação.

Então, a pulsão de morte tem relação com o superego do gozo, cujo ordenamento é “Goza!” – excesso.

Na primeira definição da pulsão relatada (FREUD, 1915), apresenta-se a expressão de Eros, ligação das representações recalcadas, logo fundação do inconsciente enquanto estrutural, metafórico.

Na segunda definição (FREUD, 1920) temos a expressão de Thanatos, intensidade pura que só à primeira vista seja da ordem da negatividade, segundo o que se segue em relação ao que seja o amor.

Ao nascer, o falasser se encontra numa condição de desamparo para a vida. Monada fechada, a pulsão toda voltada para dentro de si mesmo.

Chama-se a esse estado de narcisismo primário e a busca de satisfação, autoerótica. Nada além de si mesmo, que de si nada sabe. Há recusa do mundo externo, a cujos estímulos, se perturbadores, a resposta é a expulsão para fora – não.

Ódio anterior ao amor: Ausstossung – expulsão – ódio.

Se gratificador, há sua incorporação, passando a ser também aquela monada fechada, fazendo parte do amor a si: Bejahung – afirmação – amor.

Parece impossível a abertura desse ser para o mundo. Só o amor e o desejo do Outro, representado pelas fantasias de desejo dos pais, principalmente da mãe que cuida e amamenta, só esse amor torna possível a manifestação lenta da abertura do falasser para o Outro.

Jaz aí outra vez o amor narcísico? O filho à imagem...

O narcisismo é um ninho da pulsão de morte, pulsão por excelência.

Segundo Safouan (1982, p. 90), “[...] a criança ama a si mesma e é objeto libidinal para si mesma antes que nada há de ser”.

Mas não é possível assumir sua imagem especular e reconhecer-se nela, se essa imagem não lhe parecer constituir o objeto amado pelo Outro materno.

A pulsão de morte se metaboliza em pulsão de vida quando sexualizada pelo Outro. Chama-se gozo em Lacan o que se chama pulsão de morte em Freud.

Nessa descrição vê-se que o gozo foi barrado pelo significante chamado falo, fazendo surgir, pelo recalque primário, a fantasia fundamental, ou seja, a fixação da pulsão uma representação de desejo particular, fantasia para sempre recalcada. ()

Essa fantasia é a proteção contra o gozo mortífero. Mas é também a marca do falasser, ser de linguagem, para sempre determinado a ser através do símbolo. Cercado para sempre pela fantasia inconsciente, prisão eterna que o põe diante de Deus (A) e diante da morte (castração).

Ser de semblant, sem acesso à realidade. (Mas o que é a realidade?) Sua realidade é enquadrada pela fantasia, que são seus olhos.

Diz Lacan no Seminário 2 ([1954-1955] 1985, p. 198):

Que uma coisa exista realmente ou não, pouco importa. Ela pode existir no sentido pleno do termo mesmo que não exista realmente. Toda existência tem por definição algo de tão improvável que, com efeito, a gente fica perpetuamente se interrogando sobre sua realidade.

O poeta Rilke (1988, p. 83) afirma:

Estamos aqui talvez, para dizer: casa, ponte, árvore, porta, cântaro, fonte, janela – e ainda coluna, torre... para dizer, compreende, para dizer as coisas como elas jamais pensaram ser intimamente.

E Lacan ([1954-1955] 1985, p. 119) confirma:

A vida só está presa ao simbólico de maneira despedaçada, decomposta. O próprio ser humano se acha, em parte, fora da vida, ele participa do instinto de morte. É só daí que ele pode abordar o registro da vida.

Continuando:

Em si, sendo outro, manifesta-se o narcisismo secundário. Outra vez, amor à sua imagem internalizada como Eu, imagem ideal, mas imagem a partir do outro especular.

Parece que o amor do falasser não escapa ao narcisismo. É sempre amor a si, mesmo disso não sabendo.

A pulsão de morte se metaboliza em pulsão sexual, fazendo a história do amor.

Sexualidade: Homem – Mulher, na sua diferença.

Segundo Lacan ([1972-1973] 2008, p. 62), “O que vem em suplência à relação sexual é precisamente o amor”.

O encontro sexual é o encontro de duas fantasias, cada parceiro buscando seu objeto particular de desejo no outro parceiro.

E o amor faz uma história de ficção. Homem e Mulher na sua diferença.

O homem se caracteriza por ser marcado pelo falo:

 

 

Sua busca é sexual, fálica. Seu desejo pelo objeto vem em primeiro lugar e é o que possibilita o acompanhamento do amor (mas nem sempre!).

A mulher também é marcada pelo falo, mas não-toda:

 

 

Ela é não-toda na ordem sexual. Algo escapa ao falo. Se escapa ao falo, se orienta ao gozo. A mulher tem um gozo a mais. Ela, em primeiro lugar, ama o parceiro, por isso o deseja.

Podemos, então, dizer com Lacan ([1957-1958] 1999, p. 264): “Amar é dar o que não se tem”.

Para Freud, o amor não se constitui como uma pulsão componente da sexualidade, mas faz parte da organização sexual como um todo.

O amor é consequência do significante e da castração, consequência do ser da significância. Numa referência ao nó borromeu, situa-se na articulação do simbólico com o imaginário, fazendo um sentido.

Coutinho Jorge (2010) dentro da fórmula da fantasia situa:

 

 

No polo do sujeito do inconsciente, o amor; na punção; o desejo; no polo do objeto, o gozo.

A fantasia como fantasia de desejo, numa articulação entre o inconsciente e a pulsão, donde “[...] só o amor permite ao gozo acesso ao desejo” (LACAN, [1962-1963] 2005, p. 197).

Mas o que é o amor?

É necessário refletir sobre a posição privilegiada do objeto a, aquele que se apresenta como resto pulsional da operação significante, ou seja, a introdução do símbolo no real. Resto, excesso pulsional que promove a instalação da alma do falasser. Situa-se, não é à toa, no núcleo do nó borromeu. Sua importância talvez não seja tão notada pelos psicanalistas.

Sobre o objeto a:

• Resto da operação significante, permanece como pulsão livre, sem ligação;

• Essa pulsão é o móvel da estrutura chamada “nó borromeu”;

• Esse resto pulsional tem a função de causa: causa o desejo e é causa do desejo. Causa a ocorrência do desejo no falasser em decorrência do processo de perda ocasionada pelo trauma da invasão do simbólico no real.

• É causa do desejo que habita o falasser que sempre quer aquele que não tem.

• É elemento componente da organização dos discursos possibilitadores da compreensão entre os homens.

O objeto a, associado ao gozo a mais da mulher, parece representar a única possibilidade de amor entre os homens livrados da condição narcísica e propostos à sublimação criativa.

“[...] O amor é a sublimação do desejo” (LACAN, 2005, p. 198).

Há um cio vegetal na voz do artista.
Ele vai ter que envesgar seu idioma ao ponto
de alcançar o murmúrio das águas
nas folhas das árvores.
BARROS, 2002, p. 17)

Finalizando:

O amor do advir...

Será?

 

Referências

BARROS, M. Retrato do artista quando coisa. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002.         [ Links ]

FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 12-75. (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, 18).         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
E-mail: pompeiapires@hotmal.com

Recebido em: 21/02/2019
Aprovado em: 15/04/2019

 

Sobre a autora

Maria Pompéia Gomes Pires
Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG).

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