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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.77 Belo Horizonte Jan./June 2019

 

CLÍNICA E FORMAÇÃO DO ANALISTA

 

A histeria, o desejo e o enigma do feminino

 

Hysteria, desire and the enigma of the feminine

 

 

Ana Paula Paes de Paula

I Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do artigo é evidenciar as relações entre o masoquismo originário e a histeria, argumentando que os sintomas histéricos são uma reencenação do sexual incompreendido, a partir da experiência primária do masoquismo, que remetem ao enigma do feminino. Para isso, serão retomados escritos freudianos sobre a histeria, o problema econômico do masoquismo e as elaborações lacanianas sobre o objeto a e o gozo, empreendendo um diálogo com Emilse Naves, que sustenta uma relação entre histeria e pulsão de morte, de modo a resgatar a primazia do sexual e de Eros.

Palavras-chave: Feminino, Histeria, Desejo.


ABSTRACT

The aim of the article is to highlight the relationships between original masochism and hysteria, arguing that the hysterical symptoms are a reenactment of the misunderstood sexual from the primary experience of masochism, which refer to the enigma of the feminine. For this, Freudian writings on hysteria, the economic problem of masochism and Lacanian elaborations on "object a" and enjoyment will be resumed, undertaking a dialogue with Emilse Naves, which sustains a relation between hysteria and the death drive in order to rescue the primacy of sexual and Eros.

Keywords: Female, Hysteria, Desire.


 

Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado

(VINÍCIUS DE MORAES)

 

Neste texto, busco evidenciar as relações entre o masoquismo originário e a histeria, argumentando que os sintomas histéricos são uma reencenação do sexual incompreendido, inscrito no corpo a partir da experiência primária do masoquismo, que remetem ao enigma do feminino. Para isso, retomarei os estudos de Freud sobre a histeria, seu texto O problema econômico do masoquismo (1924) e as elaborações lacanianas sobre o objeto a e o gozo, bem como farei uma interlocução com Naves (2007), que sustenta haver uma relação entre a histeria e a pulsão de morte, de modo a resgatar a primazia do sexual e de Eros.

Freud descreve três tipos de masoquismo – o erógeno, o feminino e o moral. Nas suas palavras:

O masoquismo apresenta-se à nossa observação sob três formas: como condição imposta à excitação sexual, como expressão da natureza feminina e como uma norma de comportamento (behavior). Podemos, por conseguinte, distinguir um masoquismo erógeno, um masoquismo feminino e um masoquismo moral. O primeiro masoquismo, o erógeno – prazer no sofrimento – jaz ao fundo das outras duas formas. Sua base deve ser buscada ao longo das linhas biológicas e constitucionais e ele permanece incompreensível a menos que se decida efetuar certas suposições sobre assuntos que são extremamente obscuros. A terceira, e sob certos aspectos a forma mais importante assumida pelo masoquismo, apenas recentemente foi identificada pela psicanálise, como um sentimento de culpa que, na maior parte, é inconsciente; ela porém, já pode ser completamente explicada e ajustada ao restante de nosso conhecimento. O masoquismo feminino, por outro lado, é o mais acessível às nossas observações e o menos problemático, e pode ser examinado em todas as suas relações (FREUD, [1924] 1996, p. 179).

Vale a pena frisar que Freud aponta o masoquismo erógeno como a referência primordial para os masoquismos moral e feminino. Além disso, ele considera o fenômeno problemático e do domínio do incompreensível, referindo-se às bases biológicas e constitucionais do sujeito, situando-o no campo do pulsional e do autoerotismo, pré-genital e pré-simbólico, podendo ser categorizado como um registro do real lacaniano.

Freud ([1924] 1996, p. 180) aponta que as fantasias masoquistas colocam o sujeito em uma posição feminina, que para ele implica passividade, como nas situações “ser castrado, ou ser copulado, ou dar à luz a um bebê”. Isso porque o masoquismo erógeno acompanha todas as fases de desenvolvimento da libido, derivando seus revestimentos psíquicos cambiantes:

O medo de ser devorado pelo animal totêmico (o pai) origina-se da organização oral primitiva; o desejo de ser espancado pelo pai provém da fase anal-sádica que a segue; a castração, embora seja posteriormente rejeitada, ingressa no conteúdo das fantasias masoquistas como um precipitado do estádio de organização fálica e da organização genital final surgem, naturalmente, as situações de ser copulado e dar nascimento, que são características da feminilidade (FREUD, [1924] 1996, p. 182).

Logo, o masoquismo faz referência ao sexual e estaria, assim, ligado à construção da vida pulsional e aos processos de excitação mais primitivos, cuja tensão causada no organismo é percebida originariamente como desprazer. Na tentativa de reduzir essa tensão, uma parte dessa energia é colocada para fora a serviço de uma função sexual ativa, que é o sadismo, mas a outra parte permanece libidinalmente presa no organismo, caracterizando o masoquismo erógeno, também conhecido como originário. Pode-se especular que essa compensação regula o equilíbrio entre prazer-desprazer: a elevação da tensão, causadora do desprazer, é compensada com um rebaixamento dela.

No entanto, Freud ([1924] 1996) sustenta que uma parte dessa tensão fica retida na forma de masoquismo erógeno, para preservar a pulsão de vida, uma vez que um rebaixamento total dela levaria ao princípio do Nirvana, que está a serviço da pulsão de morte. De acordo com Fortes (2007), o masoquismo originário seria, assim, um remanescente do momento desse encontro originário entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.

Esse remanescente é correlato do objeto a lacaniano, pois no registro do real é um resto que expressa uma ausência – a perda de um gozo absoluto (LACAN, [1962-1963] 2005), que seria a extinção da tensão causada pela excitação e a rendição à pulsão de morte, ou, em outras palavras, um gozo inassimilável que não pode ser simbolizado e que inaugura uma falta produtora de sentidos.

O masoquismo feminino baseia-se inteiramente no masoquismo erógeno, mas o segundo está no campo do pulsional e do autoerotismo, e o primeiro, assim como o masoquismo moral, no campo do laço social, uma vez que é figura da submissão e da culpabilidade. No entanto, enquanto o masoquismo moral é “[...] uma espécie de obediência irrestrita às injunções do outro social”, o masoquismo feminino “[...] se materializa no relacionamento com o outro, ao qual o sujeito se oferece com o objetivo de ser aviltado e humilhado”. Em outras palavras, o masoquismo moral aparece sob forma de injunções da cultura, e o masoquismo feminino ocorre diante do objeto amoroso, “[...] pois aqui se faz necessária a encenação masoquista com o outro” (FORTES, 2007, p. 39).

O que busco evidenciar é uma identidade entre o processo que funda o masoquismo originário e o mecanismo da histeria. No Rascunho K, Freud ([1896] 1996) sustenta que a histeria ocorre a partir de uma experiência primária de desprazer, que decorre de excesso de tensão, levando a uma descarga obrigatória que precede a formação do sintoma.

Tal experiência se origina de um trauma (FREUD, [1893-1895] 1996), que resulta de um encontro com o sexual que não é compreendido nem assimilado pelo sujeito, que ignora o que é o sexual e está despreparado para ele, de modo que a experiência vivida foge à representação, gerando um vazio inominável que cria uma lacuna na psique. Como não se trata de uma ideia ou símbolo, essa experiência sequer pode ser recalcada: trata-se de um afeto em estado puro, que não pode ser psiquicamente elaborado, porque sobra um “resto”, um quantum de energia, que fica obstruído e não pode ser descarregado.

Sustento que essa experiência traumática é análoga ao que ocorre no masoquismo originário, que é um primeiro encontro com a excitação sexual vivida pelo corpo como desprazer e passividade. É essa reminiscência do masoquismo originário que o histérico passa a carregar no corpo. Ela é revivida na cena originária de trauma, que o coloca em posição de assujeitamento, ou seja, deixa-o sem possibilidade de reação ou resposta. Esse “resto” que não é simbolizável nem recalcado, retorna para ser descarregado e origina seus sintomas.

No Caso Dora, Freud ([1905] 1996, p. 37-38) é muito claro quanto à percepção da excitação sexual como desprazerosa como elemento para caracterizar o comportamento histérico, o que reforça essa ligação entre masoquismo originário e os sintomas histéricos, que procuro demarcar:

Nessa cena – a segunda da sequência, mas a primeira na ordem temporal – o comportamento dessa menina de quatorze anos já era total e completamente histérico. Eu tomaria por histérica, sem hesitação, qualquer pessoa em que uma oportunidade de excitação sexual despertasse sentimentos preponderante ou exclusivamente desprazerosos, fosse ela ou não capaz de produzir sintomas somáticos. [...] O caso da nossa paciente Dora ainda não fica suficientemente caracterizado acentuando-se apenas a inversão do afeto; é preciso dizer, além disso, que houve aqui um deslocamento da sensação. Ao invés da sensação genital que uma jovem sadia não teria deixado de sentir em tais circunstâncias, Dora foi tomada por uma sensação de desprazer própria do tubo digestivo – isto é, pela repugnância. A estimulação de seus lábios pelo beijo foi sem dúvida importante para localizar a sensação nesse ponto específico [...]

Masson (1986, p. 169), referindo-se ao Rascunho K, de Freud ([1896] 1996), também afirma que “[...] a histeria pressupõe, necessariamente, uma experiência primária de desprazer – isso é de natureza passiva”. Nesse rascunho, Freud faz uma associação entre histeria, feminilidade, desprazer e passividade, que reforça minha argumentação, criando uma correlação entre o masoquismo originário e a formação dos sintomas histéricos.

A descoberta sexual da criança se fundamenta em uma experiência primária de passividade que se liga à fantasia da sedução, mas esse primeiro encontro com o sexual, na realidade, ocorre antes, na constituição do masoquismo originário, estabelecendo um primeiro trauma psíquico, que é marcado no corpo mas sem simbolização, que vai ser relembrado pelo histérico.

Esse trauma ocorre devido a uma primeira experiência passiva que não pode ser significada, cuja tensão causada não foi descarregada, uma intrusão realizada pelo ataque pulsional, que mais tarde se traduz para o histérico, na cena originária, em susto e repulsa, rememorando a sua impotência e a ausência de elaboração psíquica.

Inaugura-se a angústia do histérico, que, segundo Naves (2007), é primeiramente uma angústia sinalizada pelo perigo de proximidade com a pulsão de morte, uma vez que a descarga total no momento do masoquismo originário significaria o encontro com o princípio do Nirvana.

No registro lacaniano (LACAN, [1962-1963] 2005), essa angústia se situa em uma posição mediana, entre o gozo e o desejo. Esse gozo é justamente o resto que resiste à significação e ao mesmo tempo possibilita a constituição de um sujeito desejante, porque o confronta com a falta. Em outras palavras, a condição de superação de angústia ocorre pela instauração do desejo, que constitui outra dificuldade para o histérico, que prefere sustentar a posição de gozo e a negação da falta.

Ocorre que, para alguns autores, como Naves (2007) e Pereira e Scapin (2015), por exemplo, o histérico não pode nomear seu desejo e sabe que este não pode nunca ser satisfeito, pois seria um desejo puro e simples de morte, ou seja, do encontro com princípio do Nirvana ou o gozo mortífero.

Naves (2007) discute em sua tese de doutorado a relação entre histeria e masoquismo, enfatizando que a histeria é não uma sexualidade repudiada, mas uma perversão repudiada. A autora considera que o masoquismo é uma perversão por excelência, pois consiste na “[...] busca de uma satisfação no sofrimento físico ou psíquico, em uma posição de passividade diante do objeto” (NAVES, 2007, p. 181).

Essa perversão consiste em uma regressão a um autoerotismo, caracterizado por um gozo instalado no corpo. Recusando as tendências pervertidas originadas do pai e diante de um sentimento de culpa que é inconsciente, assim como a representação, que no caso do masoquismo originário nem chega a se formar, a histeria demanda a punição, e isso consiste na oferta do corpo ao ataque pulsional; então, o sofrimento derivado se converte em gozo.

Para Naves (2007), assim como na dinâmica sadomasoquista, a histeria representa a passagem da voz ativa à voz passiva: a reação sádica é recusada e converte o corpo, alvo ativo, em alvo passivo. A fantasia busca a significação desse gozo masoquista que excede a linguagem, fantasia essa ligada à satisfação autoerótica, masturbatória, que escapa à satisfação genital e é a base dos sintomas histéricos que emergem no corpo, em busca do que Lacan nomeia como “gozo que não seja não-todo”, ou seja, que não seja um “gozo mortífero” e que é “gozo do corpo”.

Segundo Naves (2007, p. 191), o que está em questão é o sujeito se colocando como objeto, pois “[...] o masoquismo feminino diz respeito a um modo de gozo presente na fantasia masculina, que reduz a mulher a um estado de objeto”, sendo que para Lacan [...] o homem tem acesso à mulher quando é possível reduzi-la a um objeto, que ele denomina de objeto a, através da fantasia.

A mulher por sua vez excede esse gozo, que é fálico e a lógica da castração (SILVA; SANTOS, 2017), uma vez que seu objeto a se refere a um gozo enigmático, não nomeado, o gozo total que flerta com a pulsão morte. No entanto, na esperança de ser a “mulher” e decifrar esse enigma, se sujeita a ser o “naco de carne” da fantasia masculina e se oferece ao gozo fálico.

De acordo com Lacan ([1975] 2008), ser homem remete a um significante que é o falo, mas ser mulher remete a significante algum, se colocando como enigma. O gozo feminino independe do falo, motivo pelo qual no registro lacaniano a relação sexual não existe, pois tanto para o homem quanto para a mulher, o gozo é do corpo, e para o primeiro esse gozo é fálico: logo, o desencontro na relação sexual está selado de saída.

A mulher, quando alcança a genitalidade, não se sustenta no lugar de objeto de gozo do Outro, pois não se exime de desejar. No caso da histeria, o sujeito se coloca como objeto causa de desejo, uma vez que não é capaz de nomear seu próprio desejo: goza dos próprios sintomas, pois o desejo real seria o do gozo enigmático, “gozo que não seja não-todo”, que não consegue alcançar.

O gozo fálico equivale à libido narcísica, mas na histeria há uma falha identificatória (FREUD, [1921] 1996): na identificação com o pai, busca-se como referencial o falo ao qual nunca vai se ter acesso, de modo que [...] na impossibilidade de se sustentar nesse referencial simbólico, abre-se espaço para emergência de um gozo puramente pulsional que retorna sobre o próprio corpo (NAVES, 2007, p. 196). Devido a essa falha identificatória, o corpo narcísico não é totalmente constituído, abrindo espaço para regressão ao corpo autoerótico, que está no domínio das pulsões parciais.

Desse modo, qualquer experiência de perda e de incompletude para os histéricos remete a essa ferida narcísica, o que leva o histérico a buscar tanto a perfeição do corpo (daí as histerias pós-modernas envolverem cirurgias plásticas e tratamentos estéticos, adição em exercícios físicos e compras, distúrbios alimentares), quanto a reparação dessa falha identificatória.

Assim, a falta no Outro causa no histérico uma tentativa desesperada de suprir essa lacuna, porque embora o referencial paterno na histeria seja insuficiente enquanto sinal de identificação simbólica, ele se posiciona como o seu eu ideal, não castrado, possuidor do falo.

Esse ferimento narcísico na histeria faz o sujeito se colocar na posição de objeto, e a dor histérica é análoga à dor provocada pelo masoquismo originário:

[...] a dor é a expressão de um ferimento narcísico que faz do corpo uma tentativa de resgatar um resto de gozo ao qual o sujeito não pode renunciar, justamente por ter sido incapaz de representá-lo (NAVES, 2007, p. 200).

Assim, as dores físicas na histeria são a representação de um intolerável psíquico e na minha argumentação isso remete ao masoquismo originário, que é algo que a história do corpo foi incapaz de formular e converteu em sintoma.

Para Emilse Naves (2007), a histeria não remete a uma defesa contra um gozo sexual intolerável, mas à impossibilidade de se defender da pulsão de morte, de modo que a autora procura deslocar um pouco a explicação da histeria do sexual para o pulsional, cedendo à ideia de que Freud sustenta a ubiquidade da pulsão de morte.

Nas palavras da autora:

Ao considerarmos na histeria, a primazia do conflito e defesa de representações sexuais, não estaremos deixando de observar que o desejo sexual na histeria opera uma outra modalidade, que é modo de atualizar a insistente emergência da pulsão de morte nas suas mais variadas formas? (NAVES, 2007, p. 46).

Diferentemente de Naves (2007) e baseando-me em Lacan ([1975] 2008), retomo a primazia freudiana do sexual nas neuroses, sustentando que a histeria é uma reação ao gozo sexual enigmático, “o gozo que não seja não-todo”, sem representação, que aponta para o próprio enigma do feminino, para o problema da identidade sexual.

Os fundamentos do funcionamento histérico como a insatisfação, a insaciabilidade e a frustração de fato traduzem a busca por uma não resposta, mas contrariamente a Naves (2007), defendo que isso remete não necessariamente ao gozo mortífero, mas ao enigma do feminino: o histérico, paradoxalmente, tem horror à passividade implicada no feminino, mas se oferece como objeto de desejo, renunciando ao próprio desejo, para ter acesso ao falo, realizando a fantasia masculina.

Assim, possivelmente o desejo que o histérico não quer assumir é o desejo de ter falo, que o colocaria na posição simbólica de homem, mas ao mesmo tempo ele abre mão de ter acesso ao que é ser mulher, que resiste ao significante fálico e assume seu desejo sem se oferecer como objeto. Esse é o enigma, o impossível que o histérico não consegue solucionar: assumir a inexistência de um significante equivalente para o feminino, como o falo é para o masculino, de modo a nomear seu desejo sem se posicionar como objeto. Certamente na histeria, que provoca o desejo do Outro, castra-o por colocar a falta do lado dele, mas o fato é que o Outro no caso tem simbolicamente o falo e é nessa armadilha que o sujeito histérico se coloca, oferecendo-se como objeto.

Em síntese, retomando a ideia de que os “histéricos sofrem principalmente de reminiscências”, colocada por Freud e Breuer ([1893-1895] 1996), a origem é o trauma. Os histéricos são sujeitos prematuramente excitáveis e o que constitui esse trauma é uma experiência sexual precoce vivida passivamente, que aponta para uma configuração sintomática que expressa a economia pulsional, a emergência do simbólico e da linguagem e a excitação pulsional indizível. Esses elementos remetem ao masoquismo originário, evidenciando que na histeria essa experiência é vivida com extrema suscetibilidade e marca o corpo no sentido do real lacaniano.

Esse trauma é caracterizado por Freud ([1893-1895] 1996) como algo pré-sexual, que, na cena originária ocorrida após a marca do masoquismo originário, remete à teoria da sedução e à teoria da fantasia: inicia-se aí o sacrifício do corpo, que se apresenta como alvo assujeitado a um gozo masoquista. Diante das considerações trazidas anteriormente, concluo que a histeria significa suportar a violência da história de vida do corpo, que, engendrado pela fantasia, reencena o que foi vivido. A satisfação autoerótica na histeria resgata o restabelecimento da satisfação sexual primária original, experiência ambígua, pois remonta ao masoquismo originário, que mistura dor e prazer.

Assim, as reminiscências histéricas são uma repetição no corpo do próprio trauma, uma rememoração do irrepresentável do masoquismo originário, de modo que há sempre uma conotação sexual, mesmo quando o sexual não se apresenta claramente: o corpo fala e exibe as lembranças do que não pode ser representado, presentificando esse primeiro gozo ambíguo do masoquismo originário em uma reencenação da emergência do corpo pulsional, resgatando não exatamente um conflito sexual, mas uma incompreensão do sexual e do próprio feminino.

Por outro lado, é importante enfatizar, como aponta Naves (2007), que o histérico tem uma relação ambivalente com aquele que seria o seu objeto de amor, em um duplo movimento de destituição dele (ao se colocar como objeto, atribui a falta ao Outro) e de devoção a ele (que tem o falo), que não pode falhar como referencial identificatório. Dessa forma, percebemos que, dialeticamente, o histérico “quer ser o falo e quer ter o falo” (SOUZA, 2011), mas em qualquer dessas posições não resolve o enigma do feminino.

Nesse processo, ele coloca seu corpo à disposição do ataque pulsional e se oferece ao sacrifício enquanto objeto de amor, encenando os sintomas histéricos ao se objetificar oferecendo o próprio corpo e se apassivando nas suas relações afetivas. Logo, o horror gerado pelo masoquismo originário se mostra sem solução, e o resultado é ceder ao esquema de gozar da dor da passividade, sem nunca alcançar o que é ser uma mulher.

O histérico quer ser amado, mas está impossibilitado de amar porque teme se fundir ao objeto, uma vez que busca ser o objeto: ele se oferece como objeto do Outro e quer ser o Outro, possuidor do falo. A aproximação do objeto se afigura, então, como angustiante, pois ele sabe que ceder a isso seria se perder de si mesmo: o objeto é, assim, ao mesmo tempo amado e odiado (SOUZA, 2011).

Esta citação de Naves (2007, p. 125) ilustra bem isto – a busca do histérico:

[...] por um objeto idealizado se refere a uma esperança de completude imaginária que só leva a uma hiância ainda maior de seu eu, trazendo uma ameaça constante de entrar em um estado melancólico.

Certamente, isso mostra a aproximação que Naves (2007) sustenta entre a histeria e a pulsão de morte. No entanto, também evidencia a primazia do sexual e de Eros, porque realizar esse desejo de ser o Outro e ter o falo, seria assumir a posição masculina que não decifra o que é ser mulher. Daí o impossível da nomeação do desejo pelo histérico e de sua satisfação, cuja chave seria o feminino, que implica na admissão da falta, no rompimento da lógica fálica e na assunção do desejo pelo objeto de amor.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
E-mail: appp.ufmg@gmail.com

Recebido em: 15/06/2018
Aprovado em: 15/04/2019

 

Sobre a autora

Ana Paula Paes de Paula
Professora titular da FACE-CEPEAD-UFMG.

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