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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.78 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

A dinâmica psíquica do suicídio sob a perspectiva do desnudamento do Eu na melancolia

 

The psychic dynamic of suicide under the perspective of the unveiling of the Self in melancholy

 

 

Alexandre Dutra Gomes da CruzI; Dordania de Souza ResendeII; Joanna Brown Wetter de Oliveira Reis

I Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais
II Universidade de Buenos Aires

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto propõe uma investigação da dinâmica psíquica do suicídio a partir do desnudamento do Eu na melancolia. O suicídio foi considerado sob a perspectiva da identificação melancólica com o objeto perdido, investigando também o estatuto do objeto em questão. A partir da psicanálise, buscou-se desvendar alguns pontos da problemática que envolvemo o ato suicida e destacar o insuportável que afeta o sujeito nessa experiência, tendo como resultado o apagamento da subjetividade e a passagem ao ato como último recurso.

Palavras-chave: Identificação, Melancolia, Objeto, Psicanálise, Suicídio.


ABSTRACT

This text proposes an investigation of the psychic dynamic of suicide from the unveiling of the Self in melancholy. Suicide was considered from the perspective of the melancholic identification with the lost object, also investigating the statute of the object in question. From psychoanalysis, it was sought to uncover some points of the issue involving the suicidal act, highlighting the unbearable that affects the subject in this experience, resulting in the erasure of subjectivity and the passage to the act as a last resource.

Keywords: Identification, Melancholy, Object, Psychoanalysis, Suicide.


 

Introdução

O suicídio é um fenômeno complexo, que envolve diferentes fatores e pode ser abordado a partir de diferentes perspectivas. Na atualidade, a problemática do suicídio é de extrema relevância para a nossa coletividade, haja vista que ela é crescente e preocupante, denunciando a presença de um mal-estar inerente ao sofrimento psíquico, que nos possibilita interrogar sobre o modo como os sujeitos lidam com ele.

A Organização Mundial da Saúde (OMS), agência da ONU, destacou que anualmente mais de 800 mil pessoas no mundo morrem por suicídio, e a segunda causa principal de morte entre jovens com idade entre 15 e 29 anos. Vale ressaltar que 75% dos suicídios ocorrem em países de baixa e média renda (OMS, 2016).

Segundo a Associação Brasileira de Estudos e Prevenção ao Suicídio (ABEPS), por meio de estudos e pesquisas, é preciso repensar a maneira como se aborda o tema do suicídio. Há demasiada resistência do sujeito em buscar ajuda e, por vezes, é possível identificar a falta de conhecimento e de atenção sobre o assunto por parte dos profissionais de saúde.

Nesse contexto, torna-se essencial reconhecer os fatores de risco e os fatores preventivos, tidos como condutas auxiliares do profissional de saúde, a fim analisar clinicamente o risco e, a partir dessa premissa, alinhar as estratégias para intervir junto a essa população.

Contudo, não nos deteremos a pesquisar esse caráter preventivo, com alcance às práticas preventivas, mas pretendemos articular neste trabalho o enfoque psicanalítico acerca do ato suicida, privilegiando os seus aspectos subjetivos, que implicam diretamente o sujeito em questão.

É sabido que o tema do suicídio sempre esteve presente como uma questão a ser investigada. E em virtude do seu impacto social, Durkheim (2000) discorreu sobre esse fenômeno, destacando que cada sociedade está predisposta a fornecer um contingente determinado de mortos voluntários pelas proposições que decorrem da vida em sociedade. Durkheim assinalava também que o bem-estar ou a felicidade do indivíduo somente é possível se houver equilíbrio entre suas expectativas, suas exigências e os meios socialmente acordados.

Em Luto e melancolia, Freud ([1917/1915] 2010) buscou desvelar, através da investigação psicanalítica, os possíveis desfechos do conflito psíquico que conduzem ao sofrimento e suas implicações no processo de subjetivação, introduzindo a discussão do suicídio como um ato, uma possível válvula de escape para o mal-estar na civilização.

Busca-se no tipo clínico melancólico uma ampliação do entendimento do fracasso no trabalho psíquico empreendido frente à tarefa de lidar com as perdas da vida, o que resulta em autoacusações dirigidas ao próprio Eu, objetalizado contra si próprio. Paradoxalmente, em uma tentativa de destruir o objeto odiado de sua identificação inconsciente encontra na própria morte a solução para o conflito psíquico.

A psicanálise compreende o suicídio como um enigma. O desencadeamento do ato é enigmático. No entanto,

[...] ele traz consigo a questão da vida e da morte para o sujeito, tendo em vista que, no ato suicida, o sujeito encena o seu próprio desaparecimento (ANSERMET 2003, p. 180).

Desvendá-lo, exige investigar os processos de constituição psíquica intricados nessa dinâmica, priorizando os pressupostos dos conteúdos inconscientes e procurando desvendar, no campo da dinâmica psíquica, a expressão das tensões pulsionais que levam o sujeito ao ato suicida.

De acordo com Freud ([1921] 2011, p. 136):

Talvez ninguém encontre a energia psíquica para se matar, se, primeiro, não estiver matando também um objeto com o qual se identificou, e, em segundo lugar, se não estiver dirigindo contra si mesmo um desejo de morte que era voltado para outra pessoa. A descoberta regular de tais desejos inconscientes de morte no suicida não deve surpreender, nem impressionar como uma confirmação as nossas deduções, pois o inconsciente de todos os vivos está pleno de tais desejos de morte, inclusive em relação a pessoas amadas.

Para entender o suicídio através do olhar instigante da psicanálise, é necessário esquadrinhar a dinâmica própria do ato suicida. Cassorla (1984), em seu livro O que é suicídio, afirma que as ideias suicidas, apesar de ainda constituírem um tabu no imaginário popular, já emergiram em algum momento na vida da maioria das pessoas, visto que a pulsão de morte está sempre presente em todos os seres humanos.

Suicídio é a morte de si mesmo, e há que discuti-la em sua ampla significação, permitindo compreender o ato em suas manifestações de autoagressividade e heteroagressividade. Assim, o objetivo deste trabalho1 foi investigar a dinâmica psíquica do suicídio, tal como é elucidada por Freud ([1917/1915] 2010), a partir do desnudamento do Eu na melancolia. Nesse sentido, o suicídio pôde ser considerado na perspectiva da identificação melancólica com o objeto perdido, cabendo investigar também qual é o estatuto do objeto em questão.

Sabe-se que esse é um problema que parece não ter solução satisfatória. No entanto, as contribuições da psicanálise privilegiam a ideia do conflito psíquico como base da constituição subjetiva e de seus destinos pulsionais. Acreditamos, assim, contribuir para o campo de estudos concernentes ao enigma do suicídio. Ponderamos a sua relevância ao abordar a dinâmica psíquica, que conduz o Eu a ser tomado como objeto, dirigindo contra si próprio as mais severas autoacusações como elementos que inviabilizam os processos de subjetivação, levando o sujeito ao autoextermínio. Para a psicanálise, tais aspectos são de extrema relevância, pois exprimem uma forma de mal-estar contemporânea.

Não se pretende esgotar o tema aqui explorado, mas transmitir conhecimento e apresentar possibilidades de reflexão, permitindo a ampla discussão sobre ele.

 

A problemática do suicídio em Freud e as contribuições de Luto e melancolia

Em Luto e melancolia, Freud ([1917/1915] 2010) salientou a dimensão da dinâmica psíquica ao descrever o que sucede nos processos do luto e da melancolia, comparando o afeto manifesto nesses dois estados. As correlações abordadas por Freud entre esses dois processos se justificam pela aparente semelhança entre eles.

No processo do luto, a perda não se refere apenas à morte de uma pessoa querida ou à perda de um ideal investido libidinalmente. Essa dinâmica também se refere à perda do lugar que o sujeito ocupava junto ao objeto que se perdeu. No luto, o sujeito enfrenta dificuldades em abandonar algumas posições já estabelecidas em sua economia psíquica. O trabalho psíquico empreendido pelo enlutado, apesar de empobrecer o Eu e fazer com que o sujeito se desinvista libidinalmente de seus objetos, é considerado fundamental para a saúde psíquica do sujeito.

Freud entende isso como um trabalho de desligamento progressivo da libido em relação aos seus objetos de prazer ou aos ideais que veiculam satisfação narcísica, perdidos subitamente em virtude de morte ou abandono. Quando levado a termo, esse processo confronta o sujeito com a ausência do objeto amado, permitindo que, aos poucos, ocorra um desligamento psíquico desse objeto, abrindo caminho para que os investimentos amorosos em outros objetos possam ser restabelecidos.

Sendo assim, na perspectiva freudiana, o luto se constitui como uma reação típica à perda do objeto ou de alguma abstração no campo dos ideais. Sua relação está sob a influência consciente, na medida em que essas experiências são vivenciadas e subjetivadas pelo sujeito com o passar do tempo.

Apesar de inicialmente apontar algumas semelhanças entre o luto e a melancolia, Freud demarca claramente que, diferentemente do que ocorre no luto, na melancolia ocorrem autodepreciações e ofensas dirigidas contra o próprio Eu, assinalando o seu empobrecimento psíquico. O lamento amargo do melancólico se refere a uma perda em âmbito pulsional, portanto a uma perda de libido.

Sendo assim, há uma abolição do desejo na melancolia, marcada por um traço que merece destaque no contexto da leitura que aqui se propõe:

No melancólico há uma insistente comunicabilidade no desnudamento de si próprio (FREUD, 1917 [1915] 2010, p. 177).

Na ausência do investimento objetal, a libido retorna para o Eu, estabelecendo uma identificação com o objeto perdido. Essa perda objetal se traduz, na metapsicologia freudiana, como uma perda narcísica. Sendo assim, diante da impossibilidade de o sujeito renunciar ao amor que o vinculava ao objeto perdido, há o retorno desse afeto contra o Eu, fazendo-o sofrer, extraindo uma satisfação sádica de seu sofrimento.

As análises de Freud apontam para um fator enigmático ao investigar as tendências suicidas na melancolia. Quando se percebe tomado por essa perda, tratando a si mesmo como objeto, o Eu encaminha-lhe toda a hostilidade originalmente endereçada ao mundo exterior.

É exclusivamente esse sadismo que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a melancolia tão interessante e tão perigosa. Tão imenso é o amor de si mesmo do ego (self-love), que chegamos a reconhecer como sendo o estado primevo do qual provém a vida instintual, e tão vasta é a quantidade de libido narcisista que vemos liberada no medo surgido de uma ameaça à vida, que não podemos conceber como esse ego consente em sua própria destruição (FREUD, [1917/1915] 2010, p. 185).

A análise da melancolia abre caminho para pensar o enigma do suicídio a partir da psicanálise, ajudando a esclarecer o percurso martirizante do Eu. O Eu só pode matar a si próprio se puder fazer com que o investimento de objeto retorne sobre si, ou seja, tratando-se sadicamente como objeto, dirigindo contra si a hostilidade que seria originalmente voltada para o objeto perdido. Na melancolia, as autorrecriminações expressam essa hostilidade de forma clara, trazendo uma preciosa lição clínica acerca do suicídio:

[...] a retirada dessas acusações do objeto amado e direcionadas para o Eu é pilar na reflexão psicanalítica acerca da melancolia e na construção de considerações sobre o suicídio (CREMASCO; BRUNHARI, 2009).

 

Da constituição do Eu à identificação melancólica com o objeto perdido

O processo descrito por Freud ([1921] 2010) como identificação foi por ele considerado como a forma mais antiga de constituição de um laço afetivo com o Outro. A primeira forma de identificação destacada por Freud foi a identificação canibalesca com o objeto, incorporado pela ingestão e subsequentemente tomado como algo próprio do sujeito; na verdade, tomado como aquilo que lhe é o mais próprio, e paradoxalmente, o mais estranho.

Desse modo, os primeiros processos de identificação descritos por Freud se articulam durante a vigência do complexo de Édipo, a partir do qual o garoto toma a mãe como objeto de desejo e o pai como seu ideal identificatório. Duas configurações psíquicas são assim descritas: com a mãe vigora um investimento objetal primário direto; com o pai uma identificação, na qual ele é tomado como modelo. Durante o declínio do complexo de Édipo, essas configurações convergem estabelecendo, assim, uma identificação ambivalente com o pai, ou seja, mesclada com componentes de amor e ódio.

Em síntese, Freud esclarece que, em sua primeira emergência, a identificação constitui a mais primordial forma de ligação afetiva a um objeto, através da introjeção do objeto no Eu. Essa introjeção, como é possível inferir a partir do que já se disse, é própria da melancolia, que está na base de fenômenos como a autodepreciação do Eu e a autocrítica, além das amargas recriminações dirigidas contra si próprio.

Vê-se, assim, que o ressentimento alimentado contra o pai pode eventualmente eclodir sob a forma de uma vingança contra ele. No entanto, a identificação conduz esses investimentos psíquicos ao retorno sobre a sua própria raiz, ou seja, o Eu.

Dessa forma, a melancolia revela um Eu dividido em duas partes, e uma se enfurece com a outra. Uma parte de si, transformada pela introjeção, detém o objeto perdido; a outra parte se torna depositária da consciência moral, uma instância crítica2 erigida no Eu.

Na metapsicologia elaborada por Freud, o objeto aparece sempre ligado à pulsão, portanto é correlato dela. Freud destaca também a possibilidade de componentes pulsionais se fundirem ou se separarem uns dos outros mediante o confronto de forças de atração e repulsão, que podem se expressar de forma ambivalente na vida emocional do sujeito, como é o caso do amor/ódio mantidos no vínculo com um mesmo objeto.

Além disso, cabe esclarecer que, na perspectiva metapsicológica adotada por Freud, os objetos são elevados ao estatuto de determinantes originários na constituição subjetiva (JÚNIOR, 2001). Isso pode ser atestado no texto Luto e melancolia ([1917/1915] 2010), no qual a concepção de “objetos de identificação” se torna fundamental na constituição do sujeito, em particular através da noção de identificação primária.

A constituição identificatória do Eu na matriz narcísica, explicitada por Freud no texto Uma introdução ao narcisismo ([1914] 2010), assinala que o narcisismo está na base da atitude da pessoa com relação ao seu próprio corpo, que o trata assim como um objeto sexual é comumente tratado. Ao introduzir o conceito de narcisismo a partir de investimentos libidinais, Freud destacou que o Eu deve ser considerado como o reservatório inicial da libido, que posteriormente será enviada aos objetos. Sendo assim, quanto mais uma se absorve, mais a outra se empobrece.

No narcisismo o Eu em sua totalidade é tomado como objeto de amor. O narcisismo é a absorção amorosa do sujeito por meio da sua imagem. A partir das contribuições de Lacan no texto O estádio do espelho como formador da função do eu ([1949] 1998), a constituição do eu é o momento originário de reconhecimento da própria imagem a partir do olhar do Outro, que a sanciona. Trata-se de uma matriz imaginária, que atravessa o percurso de constituição do sujeito, representando a relação libidinal essencial com a sua imagem corporal.

De acordo com Lacan, o estádio do espelho explica a estruturação do Eu e o seu campo de relações:

Basta compreender o estádio do espelho como uma identificação, no sentido pleno que a análise atribui a esse termo, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem – cuja predestinação para esse efeito de fase é suficientemente indicada pelo uso, na teoria, do antigo termo imago (LACAN, [1949] 1998, p. 97).

Ao assumir a sua imagem, o sujeito estabelece uma identificação com ela. Esse campo demarcado pelo estádio do espelho é responsável pelas relações que constituem o Eu. É o momento de demarcação das bordas do corpo, dos limites em relação ao corpo do outro, dos objetos e da realidade em que se situa. É a sensação de identidade, o reconhecimento de si.

Partindo do pressuposto freudiano de que o Eu não é um ponto de partida, mas há que ser constituído, as argumentações de Lacan assinalam que o Eu não se constitui a partir de uma suposta maturação biológica, mas se estabelece por intermédio de uma identificação com a imagem reconhecida antecipadamente pelo olhar do outro:

O ponto importante é que essa forma situa a instância do Eu, desde antes de sua determinação social (LACAN, [1949] 1998, p. 98).

O estádio do espelho encarna a primeira relação do sujeito com o outro, a partir do registro imaginário, definidor do Eu ideal como condição de estrutura, determinante para a vida psíquica subsequente, conforme explicitado por Lacan ([1949] 1998, p. 100):

A função do estádio do espelho revela-se para nós, por conseguinte, como um caso particular da função da imago, que é estabelecer uma relação do organismo com sua realidade.

O estádio do espelho é, portanto, uma etapa fundamental na estruturação do Eu, dado em momentos sucessivos. Após a percepção da imagem no espelho, um segundo momento será experimentado pela criança. Ela visualiza um corpo diante de si, um outro corpo, que de certo modo, está inserido diante da sua percepção refletida nas imagens que compõem esse campo, tanto quanto os objetos que ali se fizerem presentes.

Daí provém a matriz do fenômeno de reconhecimento, assinalado pela

[...] jubilação triunfante e o ludismo de discernimento que caracterizam o encontro com sua imagem no espelho (LACAN, [1949] 1998, p. 115).

 

Desnudamento do Eu na melancolia e passagem ao ato

Localizada no âmbito da foraclusão do Nome-do-Pai, a melancolia se situa no campo das psicoses. Lacan resgata na teoria freudiana do complexo de Édipo a articulação para a metáfora paterna, o Nome-do-Pai. O autor articula com esse conceito a finalidade de estabelecer as funções do pai no processo de simbolização. A função paterna se inscreve na ordenação da representação do pai que impõe os limites, que impõe a lei, portanto um pai simbólico.

O Nome-do-Pai, no que ele funda como tal o fato de existir a lei, ou seja, a articulação numa certa ordem do significante – complexo de Édipo, ou lei do Édipo, ou lei da proibição da mãe (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 153).

Desse modo, a dissolução das associações psíquicas, que é sempre dolorosa, corresponde a um empobrecimento das reservas livres de libido em função do “furo no psiquismo”, por onde se esvai a libido, como uma espécie de hemorragia de libido. Eis a razão para o Eu se tornar empobrecido e arruinado. Tudo se esvai nessa hemorragia, conforme aparece no delírio de ruína. Esse furo no psiquismo é equivalente ao furo no simbólico, à foraclusão do Nome-do-Pai.

Segundo Quinet (1997), o registro que deveria se inserir a partir do Nome-do-Pai é tomado por um furo, com efeito de um “ralo aberto” por onde toda libido escoa. Essa perda é a hemorragia narcísica referente ao que é foracluído do simbólico, a qual é desvelada na melancolia através da dor que corresponde à abolição do desejo, isto é, a dor de existir.

Segundo Quinet (2002, p. 91):

A quebra da cadeia de significantes é concomitante a uma “hemorragia” de libido. Além disso, “a dor corresponde a um fracasso do aparelho psíquico” quando este deixa de ser eficiente e grandes quantidades de energia irrompem. Dito de outro modo, a dor é uma manifestação do fracasso do aparelho psíquico.

A foraclusão psicótica é um rechaço radical da Lei do Nome-do-Pai, de modo a não permitir a simbolização da castração, sob a forma de um furo no campo simbólico. O retorno da castração no real evidencia-se precisamente nesse furo, que se revela diretamente na psicose. A função do Nome-do-Pai é tecer um enlace entre os registros Simbólico, Imaginário e Real, estabelecendo uma articulação entre eles.

O melancólico está identificado com o pai enquanto objeto não incorporado simbolicamente, ou seja, com a própria ferida narcísica deixada pela sua ausência. Como consequência dessa identificação mortífera, o sujeito se desnuda em função da perda do revestimento narcísico, se autodegradando, se autoacusando e se autotorturando. A incorporação canibalesca do objeto perdido é a raiz da condição trágica do melancólico.

Ao massacrar o seu Eu,

[...] o melancólico despe-se ao extremo em seu discurso, referindo-se a si mesmo com a violência de quem odeia, rejeita ou deseja vingança (PINHEIRO, 2010).

Suas declarações indicam uma perda no próprio Eu, e a ascensão do objeto sobre ele, sob forma de uma identificação narcísica.

Em consequência dessa identificação, o sujeito se desnuda em função da perda do revestimento narcísico, se auto-odiando, se autotorturando, se autoacusando, se autoinjuriando. A inibição de toda a atividade e o rebaixamento do sentimento de autoestima, que posteriormente se expressa como autorrecriminações e insultos alcançam dimensões de expectativa delirante de punição por parte do próprio Eu. Essa parte dissociada do Eu se contrapõe à outra, tomando-a por objeto e buscando destruí-la.

Paradoxalmente, a tentativa de destruir o objeto odiado de sua identificação acarreta uma tendência a buscar o seu próprio aniquilamento. O fracasso do trabalho psíquico relativo à perda do objeto é assinalado pelas autoacusações dirigidas ao Eu objetalizado contra si próprio, evidenciando a violência pela qual ele se vê tomado. Nesse processo, há o risco iminente de passagem ao ato e autoaniquilamento.

Segundo Freud ([1917/1915] 2010, p. 185), a análise da melancolia confirma essa premissa:

O – Eu – não pode se matar a não ser quando ele pode, por um retorno de investimento de objeto, tratar a si mesmo como um objeto e dirigir contra si mesmo, a hostilidade que visa um objeto e que representa a reação originária do Eu contra os objetos do mundo exterior.

Laplanche e Pontalis (1987), ao traduzirem a expressão “passage à l’acte” [passagem ao ato], designaram-na como equivalente aos atos impulsivos violentos, agressivos, delituosos (assassinato, suicídio, atentado sexual, etc.). O sujeito passa da dimensão psíquica ao ato propriamente dito.

Nesse sentido, a passagem ao ato pode ser entendida como uma saída de cena ou um salto no vazio, em que o sujeito se reduz a um objeto excluído ou rejeitado: “[...] a passagem ao ato desvela a estrutura fundamental do ato” (MILLER, 2014, p. 2). O ato é o corte, o ponto crucial de uma decisão do ser, uma via de escape para o suicida.

De acordo com Ansermet (2003), o desencadeamento de um ato suicida permanece enigmático. A psicanálise trabalha com o singular do sujeito, o que foge e se esconde ao olhar da plateia. Ao encenar o seu próprio desaparecimento, o sujeito encontra uma saída para o suicídio. Sendo assim, o ato é uma passagem, a ultrapassagem de uma barreira. O suicídio se dá exatamente nessa passagem: o ato determinado pela influência da pulsão de morte.

[...] a clínica da passagem ao ato nos lembra a inscrição temporal inevitável do ato, especialmente sob forma de urgência (MILLER, 2014).

Para Miller (2014), todo ato verdadeiro é um “suicídio do sujeito”. Trata-se de uma transgressão da censura psíquica. O desnudamento do Eu se dá na falha do simbólico, na foraclusão do Nome-do-Pai e na falta narcísica que, na melancolia, resultam em um delírio de ruína. A melancolia desvela que, na verdade, o Eu é um objeto. Essa estrutura do Eu, tal como desvelada na melancolia, evidencia a constituição do Eu a partir da imagem do objeto, assim como é demonstrado no matema lacaniano (QUINET, 2002) para se referir ao Eu: i(a) = imagem de a.

O Eu se encontra entre os objetos do mundo, conforme evidenciado no Estádio do espelho:

O Eu é o objeto das pulsões, ou seja, é para o Eu que as pulsões irão se dirigir. O objeto desvelado na melancolia é diferente desse objeto de amor que o Eu é para o ideal. Se guardamos a orientação que Freud nos dá quando diz que o psicótico desvela aquilo que o neurótico guarda em segredo, será na psicose que encontraremos a estrutura desvelada (QUINET, 2002, p. 144).

Para Brunhari e Darriba (2014), a tendência à autodestruição pode ser compreendida como o sadismo que retorna ao Eu pela pulsão de morte. Essa pulsão de morte está na base das tentativas ou execuções suicidas; nela persiste a tendência à autodestruição, que se efetiva no suicídio.

Essas considerações sobre o suicídio confirmam a sua ligação direta com a identificação narcísica ao objeto e a dinâmica psíquica presente no processo melancólico. Sendo assim, o suicídio passa a ser visto como uma possível resposta do sujeito para fazer anteparo ao real insuportável com o qual é confrontado. Diante dele, se torna inviável o trabalho do luto, recurso psíquico indispensável para a elaboração da perda no campo narcísico.

Quando o investimento se desliga do objeto e retorna ao Eu, ocorre na melancolia a identificação ao objeto, ocasionando o retorno do investimento objetal ao Eu. O Eu se trata como se fosse o próprio objeto perdido.

O triunfo do objeto se apresenta como a via para o suicídio:

[...] a questão do suicídio passa a incluir a dimensão do objeto; ou seja, o Eu apenas atenta contra si na medida em que ataca um objeto em si (BRUNHARI; DARRIBA, 2014).

Considerações finais

Freud procede em sua investigação sobre a melancolia buscando esclarecer a tendência à autodestruição, tão comum nesses casos. Nesse sentido, ele avança assinalando o suicídio como uma resposta para a problemática colocada em jogo pela melancolia. E destaca na identificação narcísica os elementos cruciais que permitem afirmar que a sombra do objeto se sobrepõe violentamente ao Eu do sujeito.

No entanto, a dimensão do ato implicada no suicídio não foi totalmente explorada por Freud na problemática melancólica. Assim, deixa aberto o campo para outras investigações. Posteriormente, o conceito de passagem ao ato foi introduzido por Lacan, que traz como questão a problemática do “deixar-se cair” do sujeito melancólico (caracterizada como uma queda a partir da identificação com o objeto). Nesse sentido, o ato suicida tem como ponto central essa relação do sujeito com o objeto ao qual se identifica.

A psicanálise ensina que o assujeitamento do Eu com o objeto da identificação traduz o mecanismo psíquico típico da melancolia, no qual o aniquilamento do incômodo do sofrimento só sobrevém com o fim da própria vida. Desse modo, o Eu é reduzido à sombra do objeto, fazendo-se castigar e até mesmo se matar matando também o objeto com o qual se identificou.

O estudo metapsicológico da melancolia revela que as recriminações e as injúrias são, na verdade, dirigidas a um objeto que habita o Eu. Esse mecanismo se fundamenta na identificação narcísica e retorna para o Eu em um curto circuito de autodestruição. É possível, então, supormos que esse mecanismo é prevalente em alguns casos de suicídio, nos quais o Eu é cúmplice do sadismo direcionado a si próprio.

Essas elaborações permitem destacar a importância de considerar os desfechos trágicos para os conflitos psíquicos, pouco explorados nos manuais de classificações diagnósticas estatísticas, incorporadas ao mal-estar contemporâneo. A melancolia constitui o campo próprio do sofrimento psíquico que surge de uma perda narcísica. Assim, na identificação do Eu com um objeto, está a via pela qual o melancólico passa ao ato.

Dessa forma, a passagem ao ato revela que o objeto triunfa sobre o Eu melancólico, retirante de amor e desempregado do coração. Silenciado em seu amor próprio, ele encontra no suicídio a solução para quando a vida já não lhe faz mais falta.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Alexandre Dutra Gomes da Cruz
E-mail: alexandregomescruz@gmail.com

Dordania de Souza Resende
E-mail: dordania@gmail.com

Joanna Brown Wetter de Oliveira Reis
E-mail: joannabrown928@gmail.com

Recebido em: 11/03/2019
Aprovado em: 13/09/2019

 

Sobre os autores

Alexandre Dutra Gomes da Cruz
Psicólogo.
Doutor em psicologia clínica (PUC Minas).
Professor do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (CMMG).

Dordania de Souza Resende
Psicóloga.
Analista de saúde e articuladora de rede em atenção psicossocial.
Atendimento emocional e intervenção psicológica em emergências e desastres.
Mestranda em psicologia e ciências da saúde pela Universidade de Buenos Aires (AR).

Joanna Brown Wetter de Oliveira Reis
Psicóloga clínica em prevenção de emergências e desastres.
Consultora em recrutamento e seleção.

 

 

1 Este texto faz parte da pesquisa para trabalho científico de conclusão de curso de graduação em psicologia, de caráter qualitativo e descritivo, realizado a partir de revisão bibliográfica integrativa do tema de estudo.
2 Os desdobramentos acerca do conceito dado a essa “instância crítica” postulada por Freud em questão, a posteriori, foi destacada em sua obra O Eu e o Id ([1925/1923] 2011). O agente foi nomeado de supereu.

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