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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.78 Belo Horizonte July/Dec. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

O estranho dentro de nós, a intolerância à diferença

 

The uncanny inside us, the intolerance to difference

 

 

Eliana Rodrigues Pereira Mendes

I Círculo Psicanalítico de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora faz uma revisão do texto Das Unheimliche, apontando para o fato de que, com a noção freudiana de inconsciente, o aparecimento do estranho, do infamiliar no psiquismo perde seu aspecto patológico e é parte integrante do mesmo. Como somos seres divididos, o estranho está dentro de nós. Aborda a questão atual dos estrangeiros e migrantes, principalmente daqueles que voltam para as matrizes colonizadoras. Tal fato, a seu ver, se constitui num retorno do recalcado, pois as pulsões primitivas de ódio, vividas de parte a parte, se reatualizam nas ações de agora. Finaliza dizendo que a psicanálise é subversiva e libertária, e pode trazer uma luz para essa intolerância à diferença. Quanto mais somos conscientes de nossas estranhezas, mais podemos tolerar sua presença no outro.

Palavras-chave: Umheimliche, Inconsciente freudiano, Recalcamento/retorno do recalcado, Estrangeiros/migrantes, Tolerância/intolerância.


ABSTRACT

The author makes a review of the text “Das Unheimliche”, pointing to the fact that with the Freudian notion of unconscious, the appearance of the uncanny in the psyche loses its pathological aspect and is an integrant part of it. As we are divided beings, the uncanny is unside us. She adresses the current issue of foreigners and migrants especially those who return to colonizing matrices. This fact, in her opinion, constitutes a return of repressed, because the primitive hatred drives, lived from part to part, are reupdated in such situation. She concludes by saying that Psychoanalysis is subversive and libertarian, so can bring a light to this intolerance to difference. The more we are conscious of our uncanny aspects, the more we can tolerate their presence in the other.

Keywords: Unheimliche, Freudian inconscious, Repression/return of repressed, Foreigners/migrants, Tolerance/intolerance.


 

O corte epistemológico que a psicanálise provocou, certamente mudou o mundo. Os três descentramentos mais importantes que incidiram no narcisismo do ser humano até aqui são:

• o geográfico (Copérnico) – a Terra não é mais o centro do universo, mas um planeta que gira em torno do Sol, ele mesmo uma estrela de quinta grandeza;

• o biológico (Darwin) – somos não a espécie central do universo, mas um segmento de uma longa cadeia que começa com os seres unicelulares até chegar ao humano que hoje conhecemos;

• o psicológico (Freud) – não somos donos de nós mesmos, mas há uma polifonia de vozes que ressoam em nós e uma outra cena entrincheirada nos vãos escuros da memória, que caiu no esquecimento e que só aparecerá se houver um foco de luz que a faça se manifestar.

A psicanálise veio trazer, como herança para a humanidade, o acesso a essa outra cena, que nos revela a riqueza da constituição psíquica única de cada um de nós e já nos marca como profundamente diferentes uns dos outros.

Na busca de explorar esse dado humano – as diferenças e as semelhanças, o espanto e a rejeição frente ao estranho – encontrei um instigante artigo de Júlia Kristeva, filósofa, escritora, crítica literária, psicanalista e feminista búlgaro-francesa.

No capítulo A universalidade não seria a nossa própria estranheza? do livro Estrangeiros para nós mesmos, Kristeva nos diz:

Com Freud o estranho, o aflitivo, insinua-se na quietude da própria razão, e sem se limitar à loucura, à beleza ou à fé, nem à etnia ou à raça irriga o nosso próprio ser-de-palavra, estrangeirado por outras lógicas, incluindo a heterogeneidade da biologia. A partir de agora sabemos que somos estrangeiros de nós mesmos e a partir desse único apoio é que podemos tentar viver com os outros (KRISTEVA, 1994, p. 177-178).

Com a noção freudiana do inconsciente, a aparição do estranho no psiquismo perde o seu aspecto patológico e integra na unidade presumida dos homens uma alteridade ao mesmo tempo biológica e simbólica, que se torna parte do próprio psiquismo.

Inquietante, o estranho está em nós: somos nós próprios estrangeiros – somos divididos (KRISTEVA, 1994, p. 190).

A história pessoal de Freud mostra o judeu errante que veio da Galícia, onde nasceu em Pribor, hoje Freiberg (atual República Tcheca), passando com sua família por Leipsig, na Alemanha, até chegar a Viena, onde se fixaram. Mas até terminar seus dias como exilado em Londres, refugiado da guerra que os nazistas deflagraram, morou em Paris, no seu estágio com Charcot, passeou em Roma, a cidade que o fascinava pela exposição simultânea de cenários da Antiguidade ao lado dos cenários atuais, fato que ele mesmo afirmava que só acontecia no inconsciente.

[...] na vida mental, nada do que uma vez se formou pode perecer – e o de que tudo é, de alguma maneira, preservado e que, em circunstâncias apropriadas (quando por exemplo, a regressão volta suficientemente atrás), pode ser trazido de novo à luz. [...] Só na mente é possível a preservação de todas as etapas anteriores, lado a lado com a forma final (FREUD, [1930] 1974, p. 87, 89).

Na sua ida a Nova York, em 1914, declara que vai “levar a peste”. Com essa afirmação, Freud condiciona a preocupação de fazer face à inquietação do outro, enquanto mal-estar, a partir da permanência da outra cena em nós mesmos.

Em seu livro Freud, o pensador da cultura, Renato Mezan (1989) comenta que Freud mantinha com Viena uma relação francamente paradoxal. Ali se estabeleceu e ali viveu quase toda a sua vida. Mas ao mesmo tempo Viena lhe apresenta uma hostilidade muito profunda.

Frente ao gosto exacerbado de Viena pelo decorativo e pelo musical (as valsas e operetas, de sonoridade fácil e popular eram a marca registrada da capital austríaca, onde se venerava o vinho, as mulheres e a música), Freud se mantém numa atitude muito diversa. Não é um artista, mas um cientista. Não circula no glamoroso ambiente social de Viena, a cidade cortesã, mas se vê frente a uma continuada penúria econômica. Não é vienense, mas um judeu que vive relações extremamente ambíguas com a cultura alemã.

Mezan credita a essa tripla diferença – a ciência, a pobreza e o judaísmo – os motivos capazes de elucidar, mesmo que parcialmente, o paradoxo existente entre a psicanálise e a cultura na qual ela pode emergir. Lembra-se, então, de Gustav Mahler, brilhante compositor erudito contemporâneo de Freud, que teve de renegar a fé judaica para poder ser o diretor da Ópera de Viena.

Fala Mezan (1989, p. 61-62):

Mahler disse certa vez que era três vezes apátrida: como tcheco entre os austríacos, como austríaco no mundo germânico, e como judeu por toda parte. Não é curioso que, palavra por palavra, esta frase se aplique também a Freud? Podemos interpretá-la, contudo, de uma maneira metafórica: Freud, como cientista, é apátrida numa cidade cujo deleite é a arte; como pobre, apátrida numa sociedade semiburguesa, semiaristocrática; e sobretudo apátrida sendo judeu em meio a um Império multinacional em que cada etnia reivindica sua autonomia territorial, colocando o judeu na delicada alternativa de se assimilar por completo ou de não encontrar lugar algum em que pisar. Alternativa, na verdade, ilusória, pois a assimilação é impossibilitada pelo antissemitismo difuso e insidioso da sociedade austríaca, e a continuidade do judaísmo preemancipatório, rural e fechado sobre si mesmo, é igualmente impossível nas condições históricas do final do século XIX. [...] Tal é o paradoxo da Psicanálise, cuja ambição de pensar o fenômeno humano em sua mais ampla universalidade está vinculada à singularidade mais extrema, pois foi no espírito de Freud e em nenhum outro que ela tomou forma pela primeira vez.

Penso eu que esse sentimento de estranheza e certa solidão foram exatamente o combustível que acionou o interesse de Freud pela própria criação da psicanálise, pois foram sentimentos que ele experimentou com muita intensidade. Foi também um dos motivos que ele alegou para que a psicanálise fosse criada por um judeu: ele já era estrangeiro em toda parte e como tal suportaria todas as críticas e ofensas pelas quais passou. Uma das razões do êxito da psicanálise e do fato de ela sempre invocar seu criador foi o fato de Freud ter tido a coragem de partir de si mesmo como objeto de estudo, enfrentando sua própria estranheza interna.

No entanto, em mais um paradoxo em seu texto O infamiliar, Freud ([1919] 2019) não fala dos estrangeiros. Poder-se-ia levantar a hipótese de que esse assunto, que ele vivenciou com tanto sofrimento, estaria subjacente a tudo que ele escreveu nesse artigo?

Voltando a Kristeva, o mal-estar em viver com o outro – a minha estranheza, a estranheza dele – se instala numa lógica perturbada que regula esse feixe infamiliar de pulsão e de linguagem, de natureza e de símbolo que é o inconsciente, sempre já formado pela voz do outro.

A Psicanálise é sentida como uma viagem na estraneidade do outro e de si mesmo, em direção a uma ética do respeito pelo inconciliável (KRISTEVA, 1994, p. 191).

Como poderíamos suportar um estrangeiro se não nos soubermos estrangeiros para nós mesmos?

Contra a própria noção de uniformismo que a religião apregoa, a psicanálise se instala numa pequena verdade transversal, que poderia esclarecer homens e mulheres do nosso tempo.

Pergunta Kristeva (1994, p. 191):

Poderá a psicanálise lhes permitir se suportarem irredutíveis, porque desejosos, desejáveis, mortais e mortíferos?

O grande legado da psicanálise, a meu ver, é este: nossa estranheza reconhecida deveria nos fazer menos ameaçados pelo outro. Afinal, todos temos nossas próprias idiossincrasias. Assim sendo, a intolerância à diferença não deveria se manter.

No seu artigo O infamiliar, Freud ([1919] 2019) vai tratar de várias questões importantes sobre a inquietante estranheza dentro de nós.

O Outro como o meu próprio inconsciente (a questão dos duplos).

Nosso ego primitivo e narcísico, ainda não separado do mundo externo, projeta para fora o que sente em si mesmo como perigoso ou inquietante, para fazer dele um duplo sobrenatural e demoníaco. O sobrenatural aparece aí como uma defesa do ego desamparado. O ego se protege substituindo a imagem do duplo benevolente, que antes era capaz de protegê-lo, por outra imagem malévola pela qual expulsa a parte destrutiva que não pode levar em si mesmo.

A repetição, que muitas vezes acompanha a sensação de sobrenatural, o associa à ‘compulsão de repetição’, própria do inconsciente, e que

[...] sem dúvida depende da natureza mais íntima das próprias pulsões, que é suficientemente forte para se impor ao princípio do prazer (FREUD, [1919], 2019, p. 79).

Pode-se, então, perceber que

[...] aquela coisa angustiante é algo do recalcado que está de volta (FREUD, [1919] 2019, p. 85).

Como são poucas as situações psíquicas que têm um recalcamento absoluto, o retorno do material recalcado sob a forma de angústia e de sobrenatural se constitui numa metáfora do funcionamento psíquico em si mesmo. O recalcamento e sua necessária travessia constituem o funcionamento mental, de tal modo que é esse mesmo recalcamento e sua permeabilidade que constroem o outro e o sobrenatural.

Entendemos por que o uso da língua permitiu que o familiar deslizasse para seu oposto, o infamiliar, uma vez que esse infamiliar nada tem realmente de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento (FREUD, [1919] 2019, p. 85).

O aparelho psíquico recalca os conteúdos ideativos e os processos que não são mais necessários ao prazer e à autopreservação do sujeito pensante. No entanto, em certas condições, o material recalcado, que deveria permanecer ‘escondido’ ressurge e provoca a sensação de sobrenatural.

Freud vai falar disso quando faz a relação do confronto com a morte, pois o homem de hoje, tanto quanto os primitivos, não tem representação para a própria mortalidade. Embora seja uma certeza inexorável, os pensamentos sobre a morte e a certeza dela própria são sempre negados. Embora as religiões nos prometam a imortalidade, o medo da morte nos traz uma atitude ambígua frente a ela, que sempre espreita o sobrevivente.

Espectros e fantasmas representam essa ambiguidade e nos trazem as sensações sobrenaturais em nosso enfrentamento com a imagem da morte e da castração.

Lembro aqui que, em tempos passados, essa tentativa de lidar com o sobrenatural era comum nas artes em geral, especialmente na literatura e na dramaturgia. Testemunhamos isso em Dante, nas grandes peças de Shakespeare como Hamlet (que convive com o espectro do pai, que lhe mostra um caminho em sua aflição) e Macbeth (para quem o destino é previsto pelas três bruxas que o interpelam), entre outras.

Além disso, existe toda uma escola literária de contos e romances que lidam com os fenômenos sobrenaturais, da qual Edgard Allan Poe, Arthur Schnitzler (contemporâneo de Freud, a quem ele considerava quase como um duplo) e Hoffmann são grandes referências.

Nos dias atuais, o cinema, os quadrinhos e os jogos eletrônicos se encarregam de trazer à cena todos os tipos de mortos vivos, jogos que driblam a morte e em que os ganhadores têm uma segunda ou outras mais chances de vida, sempre na tentativa de driblar esse confronto com a morte e o aniquilamento total.

Freud vai falar que o fantasma de ser enterrado vivo provoca a sensação do sobrenatural, sempre acompanhado de “[...] uma certa lascívia; a fantasia de viver no ventre materno” (FREUD, [1919] 2019, p. 93).

A esse assunto também se dedica no artigo O tema dos três escrínios (FREUD, [1913] 1974, p. 365, 382) quando conclui que as três formas que a Mulher assume no curso da vida de um homem são: a mãe, a esposa e a Mãe Terra, que o recebe depois de morto.

Outro tema de angústia, especialmente para certos neuróticos, é o estranhamento aflitivo frente ao órgão sexual feminino. Pessoalmente pude comprovar isso, através da minha prática da aplicação e interpretação do teste Psicodiagnóstico de Rorscharch, em que tive uma longa experiência na verificação de traços de estrutura e dinâmica psíquicas.

O teste consta de dez lâminas projetivas, onde não eram raras as respostas de vaginas dentadas, abismo perigoso, fosso escuro, junto com cenas de sangue jorrando e falta de respostas por choque de silêncio, exatamente nas lâminas que mais comumente traziam representações da genitália feminina.

Freud acrescenta à morte e ao feminino o horror aos seres de más intenções, que se realizam com o aporte de forças malignas particulares. E termina dizendo que essas forças malévolas são um entrelaçamento do simbólico com o orgânico, ou seja, talvez a própria pulsão, na articulação do psiquismo com a biologia, que excede a frenagem imposta pela homeostase orgânica.

Podemos ver essa conjunção de forças não só nas produções artísticas, como nas artes plásticas, no teatro, na literatura, no cinema, mas também na epilepsia e na loucura, nos atos de violência, nas guerras. E isso nos toca muito, pois pressentimos essa desmesura obscuramente em nós mesmos.

Efeito sobrenatural

Freud fala que a magia, o animismo, a ‘incerteza intelectual’ e a lógica ‘desafinada’ são propícios ao efeito sobrenatural. A prova fugaz – ou mais, ou menos – ameaçadora do sobrenatural seria o indício de nossas latências psicóticas, da fragilidade de nosso recalcamento e ao mesmo tempo da inconsistência da linguagem, enquanto barreira simbólica, estruturando o recalcado.

Kristeva aborda o encontro com o outro como estranho e sobrenatural, pois não o ‘enquadramos’ pela consciência.

Ele pode nos dar o sentimento de não ter contato com as nossas próprias sensações ou recusá-las, ou pelo contrário, de recusar nosso julgamento sobre elas, sentimentos de sermos ‘estúpidos’, ‘fraudados’. Estranha também é a experiência do abismo entre eu e o outro, que me choca – nem mesmo o percebo, ele me anula porque o nego. Diante do estrangeiro que recuso e ao qual me identifico, ao mesmo tempo perco meus limites, não tenho mais continente, as lembranças das experiências em que me havia deixado cair me submergem, descontrolo-me. Sinto-me ‘perdida’, ‘vaga’, ‘enevoada’ (KRISTEVA, 1994, p. 196, grifos da autora).

Neste ponto lembrei-me de Guimarães Rosa, no Grande Sertão: Veredas, quando Riobaldo, sentindo-se perturbado pela estranheza de Diadorim e de seu amor por ele revela:

Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim penso também – mas Diadorim é a minha neblina (GUIMARÃES ROSA, [1956] 1984, p. 16).

No seu amor inquietante se mesclavam todos os contornos e as certezas conhecidas e aceitas

Freud, no entanto, faz uma separação entre os efeitos do sobrenatural suscitado pela experiência estética e a experiência real. Nos contos de fadas, por exemplo, o universo é todo fictício.

O artifício neutraliza a sensação de sobrenatural e torna verossímeis, aceitáveis e agradáveis todos os retornos do recalcado. Ao fazer isso, é como se a magia absoluta, a sublimação absoluta, bem como o oposto, a racionalidade absoluta, o recalcamento absoluto, fossem os únicos amparos contra a sensação do sobrenatural, do infamiliar, do estranho.

Lembro aqui do gosto das crianças pela repetição absolutamente fiel de todos os detalhes das histórias já ouvidas. A necessidade de que seja tudo repetido exatamente como foi contado antes lhes assegura um controle da angústia frente ao desconhecido, ao infamiliar.

Se a angústia recai sempre sobre um objeto, o sobrenatural é uma desestruturação do ego, que pode ou perdurar como um sintoma psicótico, ou se inscrever como uma abertura em direção ao novo, numa tentativa de adaptação ao que é incongruente.

A estranheza necessita de um encontro novo, com um exterior inesperado: despertando as imagens de morte, de autômatos, de duplo ou de sexo feminino, [...] o efeito do sobrenatural se produz quando se apagam os limites entre imaginação e realidade. A Umheimliche é o desmoronamento das defesas conscientes, a partir dos conflitos que o ego sente frente a frente com um outro – o estranho, o secretamente familiar – com o qual ele mantém esse laço conflitante, ao mesmo tempo uma necessidade de identificação e o medo desta (KRISTEVA, 1994, p. 197).

O sobrenatural também pode ser expulso: ‘não, isso não me perturba’; rio ou ajo, vou-me embora, fecho os olhos, bato, ordeno.

Mas uma liquidação assim do estranho pode conduzir à liquidação do psíquico, deixando, ao preço de um empobrecimento mental, o caminho livre para a atuação até a paranoia ou o assassinato. [...]. Inquietar-se ou sorrir, essa é a escolha quando o estranho nos assalta; isso depende de nossa familiaridade com os nossos próprios fantasmas (KRISTEVA, 1994. p. 199-200).

Hoje presenciamos uma multidão de migrantes, como só aconteceu em nossa era no século XX. As duas guerras mundiais, principalmente a segunda, demonstraram a intolerância como a lei da hora.

Etnias mais nômades e desenraizadas como os ciganos, os judeus, além de grupos de comportamentos dissidentes como os homossexuais, os psiquicamente perturbados e os intelectualmente prejudicados sofreram todo tipo de discriminação e tortura, chegando até a solução final da morte e a eliminação não questionada e arbitrária dos chamados ‘diferentes’. Muito já se escreveu sobre isso, mas volta e meia assistimos horrorizados ao retorno dessa barbárie.

Xenofobia e racismo são temas altamente recorrentes em nossos dias. Países do novo mundo, que foram formados por imigrantes e colonizadores, quase sempre com o desalojamento e a matança dos povos nativos, como nos Estados Unidos da América do Norte e no Brasil, em escala menor, se recusam a receber os novos migrantes, vítimas de guerras fratricidas e de governos brutais, que levam à penúria os seus governados. Os estrangeiros são considerados intrusos e competidores na consecução de vantagens econômicas de cada país.

Isso se torna mais complexo quando os ex-colonizados de um país querem agora voltar para as sedes colonizadoras. Apesar de tudo, muitos colonizados preservam laços com as antigas metrópoles. O pai primevo é identificado com a matriz colonizadora. Assim sendo, terá que prover seus filhos que retornam.

No século XVIII e no princípio do XIX, a manutenção de um ou mais países colonizados na África, na Ásia ou no Novo Mundo era quase obrigatória aos países europeus, num desejo de poder e expansionismo. A Europa dessa época mostrava sua supremacia científica, tecnológica e seu poder militar submetendo outros países de forma total.1

Assim aconteceu com a Inglaterra, que chegou a ser um Império durante o reinado vitoriano, onde o sol nunca se punha, pois em cada parte do mundo havia uma possessão sua (Índia, Paquistão, para citar os maiores grupamentos demográficos).

A França também manteve suas possessões, rivalizando com o Reino Unido (Argélia, Marrocos). A Espanha, com todos os países da América latina, exceto o Brasil. E até mesmo estados pequenos territorialmente como a Bélgica (o ex-Congo Belga); a Holanda (Indonésia); a Itália (Somália), Portugal (Brasil e depois Angola e Moçambique), a Rússia depois da Segunda Guerra, tendo formado a ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (com todos os estados do Leste Europeu e da Europa Central que dominaram no pós-guerra). E por aí vai.

A colonização foi quase sempre feroz, mas preservava o território dos países colonizadores. Agora, a partir do final do século XX e no princípio do século XXI, os colonizados se voltam para a sede de seus colonizadores, incluindo aí também os povos da América espanhola, num retorno à Espanha e dos brasileiros a Portugal.

Todos querem tomar posse do seu devido quinhão. E se antes a bagunça e as lambanças, eram perpetradas nas colônias, inclusive com guerras brutais em que os colonizados buscavam a independência e a autodeterminação, hoje são os filhos e os netos desses mesmos colonizados que voltam para as matrizes colonizadoras. Querem assegurar seus direitos nas sociedades em que vivem, apelando para a violência e a rebeldia pública (como temos visto ocorrer na França ultimamente).

A meu ver, esses fatos se configuram como um verdadeiro retorno do recalcado, pois as pulsões primitivas que foram a tônica das colonizações se reatualizam nas ações de agora. O que deveria permanecer escondido, como os sentimentos de ódio vividos de parte a parte pelo dominador e pelo dominado vêm à tona e causam o profundo mal-estar social que se vive hoje.

O confinamento dos palestinos na faixa de Gaza, o muro do México, o antigo muro de Berlim, todos eles falam das fronteiras fechadas e segregacionistas. Mas, mesmo assim, as filas de migrantes e refugiados não diminuem. Esses migrantes e refugiados viveram antecedentes tão penosos em seu país, que enfrentam com coragem o fato de serem indesejáveis para os países a que se dirigem e não desistem de achar um lugar melhor no mundo. Sua pulsão de vida predomina apesar de todos os entraves.

O mesmo acontece com os que vêm em barcos precários e encontram a morte. A imagem de uma criança afogada nessa passagem maldita nos mostrou a face terrível da intolerância e do medo ao estrangeiro.

Mais recentemente, a imagem de um náufrago latino da América Central, abraçado à pequena filha, os dois presos pela mesma camisa do pai que tentava, com certeza, assim proteger e resguardar a menina de se perder no mar, mais uma vez comoveu o mundo.

Minha atenção também foi despertada por uma repórter na fronteira da Áustria, que chutou alguns refugiados sem nenhuma razão. Não lhe tinham feito nada, mas a pulsão de morte do retorno do recalcado agiu sem que ela pudesse se controlar.

O mesmo se dá com os grupos dos chamados ‘diferentes’, os grandes grupos que sempre foram discriminados, como negros, indígenas e asiáticos (dos quais os dominadores diziam não ter alma); os grupos de comportamento heterodoxo como os divergentes sexuais de todas as tendências e categorizações, que lutam abertamente por seus direitos, mas que continuam sendo vítimas usuais do preconceito, da violência e do assassinato.

Assistimos até mesmo aos movimentos de autistas, antes considerados à margem da sociedade, meros casos patológicos, que hoje escrevem livros autobiográficos e querem ser protagonistas de sua própria vida.

 

O estranho dentro de nós mesmos

Desde que Freud elaborou a teoria do inconsciente, o cerne desse ‘nós mesmos’, seguro de si e compacto, não mais existe. O nosso inconsciente é um país estranho, de fronteiras e alteridades incessantemente construídas e destruídas. O sobrenatural seria, assim, a via régia pela qual a psicanálise introduz a noção de rejeição fascinada pelo outro.

Não se fala, estranhamente, de estrangeiros na unheimiliche. Para Freud, ele próprio um estrangeiro em sua trajetória de vida, o estrangeiro não é tão assustador quanto a morte, o sexo feminino ou as pulsões sem freios. No entanto, os sentimentos da xenofobia comportam em geral, inconscientemente, a “rejeição fascinada” (KRISTEVA, 1994, p. 201) pelo “diferente”.

Na “rejeição fascinada” que o estrangeiro nos evoca, existe uma parte de sobrenatural no sentido da despersonalização que Freud flagrou ali e que entrelaça os nossos desejos com os nossos medos infantis do outro: o outro da morte, o outro da mulher e o outro da pulsão não dominável. O ‘estrangeiro’ está dentro de nós. E quando fugimos ou lutamos com o estrangeiro, combatemos nosso próprio inconsciente, este “impróprio” do nosso “próprio” impossível.

Aqui cabe também o narcisismo das pequenas diferenças, que Freud ([1930] 1976, p. 136) trabalha em O mal-estar na civilização.

A vantagem que um grupo cultural, comparativamente pequeno, oferece, concedendo à agressão um escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos, não é nada desprezível. É sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade [...] são precisamente comunidades como territórios adjacentes, e mutuamente relacionadas também em outros aspectos, que se empenham em rixas constantes.

Vale lembrar aqui que a psicanálise não se sustenta em regimes totalitários, em que não pode haver diferença, e todos estão massificados por um poder ditatorial. Sendo ela uma conquista em relação ao respeito às subjetividades, seria incongruente sua presença onde o livre pensar e agir não pode aparecer.

Quando Freud nos fala do estrangeiro, delicadamente, analiticamente, ele nos ensina a detectar a estranheza que há em nós. Por isso, podemos dizer que o analista, no seu trabalho especifico, vai contra o nosso inconsciente naquilo que ele manifesta de estranho e inquietante para nós.

Ao cosmopolitismo estoico, à integração universalmente religiosa,

[...] em Freud sucede a coragem de nos dizermos desintegrados para não integrar os estrangeiros e muito menos persegui-los, mas para acolhê-los nessa aflitiva estranheza que é igualmente a deles e a nossa. Essa descrição freudiana em relação ao problema dos estrangeiros poderia ser interpretada como um convite (utópico e muito atualizado) para não coisificar o estrangeiro, para não fixá-lo como tal e para não nos fixarmos como tal. Mas para analisá-lo, analisando-nos (KRISTEVA, 1994, p. 201).

Isso se aplica a todo tipo de preconceito e inquietação frente aos “diferentes”, que nos retiram de nosso próprio eixo.

Temos de lembrar que a nossa perturbadora alteridade aparece frente à ameaça, à aflição que engendra o aparecimento projetivo do Outro, que teimamos em manter como um nós próprio e sólido.

Se o estranho está em mim, se sou estrangeiro, então somos todos estrangeiros.

A ética da Psicanálise implica uma política: tratar-se-ia de um cosmopolitismo de tipo novo que, transversal aos governos, às economias e aos mercados, trabalha para uma humanidade cuja solidariedade está fundada na consciência do seu inconsciente – desejante, destruidor, medroso, vazio, impossível. [...] Desde o inconsciente erótico e mortífero, a aflitiva estranheza, o sobrenatural, projeção ao mesmo tempo que é elaboração primeira da pulsão de morte, [...] instala a diferença em nós sob sua forma mais desamparadora e a dá como condição última de nosso ser com os outros. (KRISTEVA, 1994, p. 202).

Desde a sua origem na Europa Central iluminista do século XIX até sua evolução do século XX aos dias de hoje, tecnicistas e iconoclastas, enfrentaram barreiras e dificuldades.

A criação freudiana sempre foi subversiva. O ser humano não é mais o senhor absoluto de sua própria casa, mas é atravessado por uma outra cena que não lhe é imediatamente reconhecível, mas que se projeta no seu modo de ser e conviver com o outro. A sexualidade não é algo que aparece timidamente na puberdade, mas segue um continuum que vem desde as primeiras relações do bebê com o mundo e que o acompanham ao longo de sua vida.

A própria biologia não predestina a alguém ser homem ou mulher, mas a assunção do papel sexual depende das vicissitudes do desenvolvimento de cada um. Somos, ainda e principalmente, seres incompletos e portadores de uma pulsão de morte. Todos esses novos conhecimentos subverteram a ordem vigente antes da psicanálise.

Além disso, a psicanálise é libertária porque acolhe e respeita a subjetividade de cada um e não subsiste em regimes de força. A importância do desejo do ser humano, que é particular e opera como o motor vital de cada um, tem na psicanálise um ponto de ancoragem.

Por tudo isso, por flagrar o estranho, o infamiliar dentro de nós mesmos, a psicanálise vem dar lugar ao respeito e à tolerância ao diferente.

As grandes conquistas sociais da criança, da mulher, dos sexualmente divergentes, dos portadores de sofrimento mental, a que hoje assistimos, são todas tributárias, de alguma forma, da psicanálise.

Na verdade, quanto mais me torno consciente das minhas estranhezas e das minhas diferenças, mais posso tolerar sua presença no outro.

 

Referências

FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930 [1929]). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 75-171. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).         [ Links ]

FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche] seguido de O homem da Areia / E.T.A. Hoffmann (1856-1930). Tradução de Ernani Chaves, Pedro Heliodoro Tavares (O homem da areia, tradução de Romero Freitas). Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 173-198. (Obras incompletas de Sigmund Freud, 8).         [ Links ]

FREUD, S. O tema dos três escrínios (1913). In: ______. O caso Schreber, artigos sobre técnica e outros trabalhos (1911-1913). Direção geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1974. p. 365-369. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 12).         [ Links ]

GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas (1956). São Paulo: Círculo do Livro, 1984.         [ Links ]

KRISTEVA, J. A universalidade não seria a nossa própria estranheza? (1994). In: ______. estrangeiros para nós mesmos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 177-202.         [ Links ]

MEZAN, R. Três vezes apátrida. In: ______. Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 21-134.         [ Links ]

https://300writers.com/essays/definition/european-colonialism-in-the-19th-century-html. Acesso em: 24 jun. 2019.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

Recebido em: 05/08/2019
Aprovado em: 13/09/2019

 

Sobre a autora

Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Psicóloga.
Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.
Vice-presidente do CPMG no triênio 2017-2020.

 

 

1 Disponível em: <https://300writers.com/essays/definition/european-colonialism-in-the-19th-century-html>. Acesso em 24/06/2019.

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