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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.41 no.78 Belo Horizonte July/Dec. 2019

 

PSICANÁLISE E LITERATURA

 

A literatura de Stefan Zweig e a revelação de intervenientes da clínica psicanalítica

 

Stefan zweig’s literature and the disclosure of components of the psychoanalytic clinic

 

 

Mariana Kehl

I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A importância da articulação entre psicanálise e literatura pode ser recuperada desde o exórdio da proposição freudiana. Tal relação é considerada componente fundamental na formação do analista e no material de investigação e revelação, configurando-se como campo possível de ilustração teórico-conceitual e material correlato à clínica. O presente artigo demonstra como a novela 24 horas na vida de uma mulher, de Stefan Zweig, autor austríaco reconhecido por Freud por suas produções literárias notáveis, revela e desvela elementos de grande valia para a psicanálise. Para tanto, será abordada a relação entre os dois campos de saber apontando no texto literário zweigiano a possibilidade da presença de alguns intervenientes precípuos – operadores e fenômenos como a transferência, a projeção, a identificação, e especialmente, a devastação feminina – que se evidenciam na clínica psicanalítica.

Palavras-chave: Stefan Zweig, Literatura, Psicanálise, Clínica.


ABSTRACT

The importance of the relationship between Psychoanalysis and Literature can be recovered from the exordium of the Freudian proposition. This connection is considered a fundamental component in the development of the analyst and a constructive material of research and revelation, configuring itself as a possible field of theoretical-conceptual illustration and a material correlated to the clinic. This article demonstrates how the novel “24 Hours in a Woman’s Life", from Stefan Zelig, an Austrian author recognized by Freud for his remarkable literary productions, reveals elements of great value to psychoanalysis. In order to do so, one will be discussed the relationship between the two fields of knowledge, pointing out in the Zweigian literary text the possibility of the presence of some key actors - operators and phenomena such as transference, projection, identification, and especially female devastation - of the psychoanalytic clinic.

Keywords: Stefan Zweig, Literature, Psychoanalysis, Clinic.


 

A psicanálise em seu liame com a literatura

Sigmund Freud, ao conceber os alicerces teóricos da psicanálise, dispõe-se do saber produzido por múltiplas áreas do conhecimento. Tal possibilidade de suporte metodológico é designada por Birman (1993) como “tradição mito-poética freudiana” e esta indica que o material clínico-teórico promovido por Freud sempre se deu acompanhado por mitos, estudos oriundos da antropologia e, especial e nomeadamente, de obras literárias como modo de comparação, ilustração e/ou exemplificação.

As interseções entre os dois campos podem ser verificadas desde o princípio da obra de Freud através das conformidades existentes entre a redação de casos clínicos e as narrativas de caráter literário.

A literatura é, assim, admitida pelo autor como elemento imprescindível na formação do analista e considerada fonte de conhecimento fundamental mais próximo à psicanálise.

Aos poetas, portanto, é atribuída a função de

[... aliados valiosos ?...? bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente ?...? se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência (FREUD, [1907 2006, p. 18).

Freud recorreu de modo substancial a diversas produções de escritores criativos ao decorrer de seu trabalho. É possível observar referências a autores cronologicamente anteriores a ele, como Sófocles, Shakespeare, Goethe, Hoffman e Dostoievski, e também autores contemporâneos com os quais pôde estabelecer algum diálogo e uma relação mais próxima e pessoal, como Arthur Schnitzler, Thomas Mann e Stefan Zweig.

Como descreve Kehl (2019, no prelo), o autor

[... valeu-se da psicanálise como método interpretativo tanto em função do literato (propondo-se a realizar uma espécie de psicobiografia ou “patografia”, de reconstituição fantasmática do criador) quanto da obra (compreendendo-a como produção/formação do inconsciente) na tentativa de desvendá-los, admitindo, posteriormente, os limites de tais aplicações.

Segundo Sousa (2012), Freud pôde encontrar na arte um instrumento para interrogar o mundo. A ficção literária se configura como uma espécie de sintoma que não contempla nem pode se sujeitar à interpretação, mas à interrogação, revelando

[... os avessos e sombras do espírito humano, os obscuros das paixões e, sobretudo, o compromisso com a verdade (SOUSA, 2012, p. 62).

Desse modo, a partir da constatação freudiana da predição do poeta sobre aquilo que faz parte da vida psíquica, de sua possibilidade de prenúncio a respeito do material sobre o qual a psicanálise teoriza, que a interlocução se mostrou mais profícua. Embora Jacques Lacan também tenha recorrido ao dispositivo interpretativo é o viés da interrogação e da verdade da ficção literária que também será sustentado por ele.

Lacan qualifica a via da interpretação como uma aplicação da ordem da pretensão e atribui à arte a condição de um saber que sempre antecipa a psicanálise e retoma Freud, circunscritamente, na reiteração de que o analista aprende e é precedido pelo artista (LACAN, [1959-1960 1988, p. 125).

Assim, é possível entrever na literatura os aspectos já estabelecidos pela teoria psicanalítica, isto é, aludindo-se a tais fontes como ilustrações e/ou verificações teóricas. Além disso, ao se examinar em direção oposta, pode-se verificar na literatura suas possíveis contribuições a algum avanço ou nova chave de leitura para a psicanálise.

Sendo assim, a literatura pode operar como ferramenta de acesso a um saber que ainda não se dá de forma bem estabelecida na teoria e tornar mais inteligível a transmissão da psicanálise, reforçando seus argumentos.

Chaves (2015), ao resgatar o remanescente pensamento freudiano acerca das possibilidades de vínculo entre psicanálise e literatura, reitera a importância de se considerar o processo criativo artístico como “modelo de constituição da neurose” (CHAVES, 2015, p. 11) através de uma Umwandlung de seu conteúdo, isto é, de sua metamorfose, de seu retrabalho, e não a “neurose de seu criador”.

Freud ressalta a habilidade daquele que cria em se furtar da exprobração psíquica e estabelecer verdades pelo ato de reescrita, cabendo ao leitor a responsabilidade e a apropriação do que é dito por seus vestígios na escrita.

Desse modo, pode-se dizer que a interlocução do leitor com os textos pressupõe uma espécie de “abrir dos olhos” num ato de responsabilidade (que se correlaciona à retirada do material excedente na escultura, per via di levare, como na metáfora freudiana) para se deparar com aquilo que ali está, ainda que na forma de vestígio. Logo, o que o poeta pode desvelar para além do que a psicanálise já pôde estabelecer ou aquilo sobre o que a psicanálise teoriza, já está em seu texto. Só é preciso ler, traduzir.

 

Freud com Zweig: o elo discursivo

Zweig é um dos autores citados por Freud, com quem o fundador da psicanálise manteve um vínculo de amizade e de quem se suspeita até mesmo de uma breve relação analítica. Sabe-se que Zweig foi influenciado pela leitura da obra de Freud e pelo vínculo pessoal de admiração mútua mantido entre os dois, assim como é público e manifesto que Freud se estabeleceu-se como leitor fiel dos textos do autor e

[... eram seus julgamentos que o escritor esperava com mais impaciência após cada publicação (PRATER, 1991, p. 190).

Em sua autobiografia, Zweig revela que a amizade nascida entre ele e Freud se tornou

[... uma das mais férteis e, em alguns momentos, até a mais decisiva para a [sua vida (1942, p. 141).

Dines (2014, p. 233) relata que Freud, em 1926, ao receber uma coletânea de novelas de Zweig, refere-se a duas delas como “obras-primas”. O fascínio exercido em Freud se dá, especialmente, à medida que apresentam uma “[... rigorosa avaliação psicanalítica dentro de um relato literário impecável”.

Nas criações literárias de Zweig predominam textos marcados pela presença de mulheres como protagonistas – com seus dramas, suas tragédias, sua dor e sua morte, que resultam de seu encontro com um mundo masculino. É através dessas personagens femininas que Zweig melhor delineia as dinâmicas psíquicas e o faz de forma sutil, com extrema qualidade estética e sensibilidade, evitando esquematismos pseudodidáticos ou apenas o exercício bajulador de ilustrar as teses formuladas pelo amigo e pai da psicanálise. Sua visão de tais dinâmicas, como veremos adiante, antecipa as próprias formulações de teóricas de Freud e da psicanálise.

 

24 horas na vida de uma mulher

Novela publicada em 1927, 24 horas na vida de uma mulher, conforma-se como um dos principais trabalhos de Zweig e se configura como uma das narrativas literárias favoritas de Freud. Ambientada na Riviera Francesa, a narrativa tem seu início marcado por uma discussão acalorada entre um grupo de pensionistas após se tornar público o caso de uma mulher, Mme. Henriette, que abandonara a família para fugir com um jovem.

Uma distinta senhora inglesa viúva, Mrs. C., é particularmente afetada pelo evento ao se surpreender com a opinião do narrador-personagem que, inusitadamente, defende a postura da mulher adúltera e fugitiva diante de todo o grupo. Mrs. C., instigada pela postura de seu interlocutor, acaba, então, confessando de modo particular um evento de seu passado e relata ao narrador os fatos acontecidos nas 24 horas mais significativas de sua vida.

A narrativa se compõe de elementos de grande valia, pois, segundo Freud ([1927/1928] 2006, p. 200) além de representar “[...] algo universalmente humano”, dispõe-se de modo ostensivo da condição feminina e da mulher, e demonstra “[...] a que excessos, surpreendentes inclusive para ela, uma experiência inesperada pode impulsioná-la”.

Além disso, traz uma diversidade de elementos que se articulam intrinsecamente à psicanálise e desvelam a presença de alguns operadores e fenômenos precípuos que se evidenciam na clínica e na teoria psicanalítica.

A situação vivenciada entre Mme. Henriette, o jovem francês e sua fuga compartilhada reproduz com espantosa similitude um evento experienciado por Mrs. C. em outros tempos.

Ao verificar “[...] a fidelidade com que a simpatia [do narrador] permanecia ao lado daquela mulher” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 242) mesmo em sua condição de fugitiva junto a um desconhecido, a clara ausência de julgamentos por parte do narrador e a aproximação de sua data de partida da pensão (o que dificilmente possibilitaria um futuro reencontro), a dama inglesa decide falar sobre seu passado (certamente motivada pela suposição de algum saber especial a esse homem), numa conversa particular com o narrador-personagem em seu quarto, onde oferece a ele uma poltrona, e ambos se sentam.

A descrição realizada é muito significativa porque retrata com bastante precisão alguns pressupostos que promovem o setting analítico: a resistência – “Mrs. C. [...] lutava energicamente contra uma forte resistência” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 244); a necessidade quase emergencial de falar numa “tentativa de absolvição própria” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 245) considerando o saber1 que atribui ao narrador (que assume, arriscamos dizer, a figura do analista) e numa alusão muito clara aos primórdios da psicanálise com Bertha Pappenheim e sua “limpeza de chaminé” e a “talking cure”; o falar desembaraçado da associação livre; a necessidade do silêncio do outro – “peço-lhe, por favor, não fale...” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 294) – e a ausência de formulações que implicassem emissões de juízos de valor pelo “ouvinte/analista”, além de qualquer vínculo pessoal (intersubjetivo) e íntimo, elemento fundamental que permitiu que Mrs. C. falasse, condição determinada por Lacan anos após a escrita da novela (aqui vemos, como indicado por Freud, a literatura antecipando a teoria psicanalítica).

Mrs. C. relata que naquele momento do passado havia se tornado viúva de um marido a quem amava. Seus dois filhos já estavam relativamente crescidos e não necessitavam mais de seus cuidados, de modo que vivia isolada, sendo “um tormento terrível” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 246). Com o intuito de recuperar-se “[...] dessa fuga disfarçada diante da existência” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 246), Mrs. C. decide ir a Monte Carlo, o cassino, localizado em Mônaco, para fugir do tédio e distrair-se.

Seu marido tinha o hábito de frequentar salas de jogos, e a personagem reconhece em sua “devoção inconsciente” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 247) uma maneira de ainda se vincular ao objeto perdido, reproduzindo os hábitos ensinados por seu esposo “nunca olhar para os rostos [...] apenas para as mãos dos jogadores” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 248).

Quando inicia a descrição do jovem rapaz que observava no cassino, concede a ele aspectos infantis, “[...] quanto às mãos, nada tinha de viril, parecendo pertencer mais a uma criança que jogasse apaixonadamente” ZWEIG, [1927] 1981, p. 248).

Freud ([1927] 1928, p. 201), em sua breve análise da novela, chama atenção para o fato de que o

[...] o autor, como que sem intenção, dá-lhe a mesma idade que a do filho mais velho da narradora.

Aí encontramos os primeiros indícios de que o jovem rapaz inicialmente representaria inconscientemente a figura do filho de Mrs. C., sua projeção, indicativo comprovado a partir de suas recorrentes aproximações entre o jovem e a figura de uma criança.

Após perder tudo no jogo, Mrs. C. outorga ao jovem a intenção de dar fim a sua existência e, compelida por um imperscrutável sentimento de afeição e “entorpecimento completo” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 254), segue o jovem na tentativa de salvá-lo de seu trágico destino. Ao observar o rapaz, sentia-se como se fosse ela vivendo seu desespero:

Eu tremia toda, sacudida de horror, como se participasse, malgrado meu, de todos aqueles sentimentos (ZWEIG, [1927] 1981, p. 255).

Tal declaração apresenta evidências de um processo de identificação e da construção de uma relação de especularidade da narradora que via no jovem a imperatividade de socorrê-lo (porque também queria ser socorrida), de livrá-lo de seu suposto aniquilamento, cuja descrição é muito semelhante às características de seu estado de luto anterior à viagem. Nesse momento de seu relato, Mrs. C. frisa que não havia apaixonamento algum ou vislumbre de envolvimento amoroso, como escreve Freud em sua análise, a personagem:

Fiel à lembrança do marido morto, armara-se contra todas as atrações semelhantes, mas – e aqui a fantasia do filho se mostra correta – não escapou, como mãe, de sua transferência inteiramente inconsciente do amor para com seu filho (FREUD, [1927/1928] 2006, p. 202).

Aqui Freud caracteriza que a aproximação da mulher ao jovem é motivada pela transferência com a figura do filho, uma vez que a admissibilidade à consciência acerca da possibilidade de relações pessoais com outro homem que não fosse seu marido a impedia de alcançar qualquer outra posição.

Em seu processo de intervenção, Mrs. C. insiste em ofertar ajuda apesar da recusa do rapaz desconhecido de receber qualquer auxílio. A personagem, então, sugere levá-lo a um pequeno hotel para que passe a noite, se acalme e possa ir para a casa de sua família no dia seguinte.

Ao chegar ao hotel com o rapaz parecendo um “afogado que acaba de ser pescado” (ZWEIG, [1927] 1981, p. 263), exemplo entre inúmeras metáforas que qualificam o jovem como alguém absolutamente impotente e sem recursos e a si mesma como aquela que “pesca/resgata”, oferece-lhe algum dinheiro e tem sua confissão de seu vício no jogo.

Mrs. C. permanece no hotel e acaba por partilhar o leito com o jovem desconhecido. Após narrar sem grandes minúcias sua noite de amor ao narrador-analista, Mrs. C., então, justifica seu ato como artifício para salvar não mais a criança, mas o homem.

Ao estabelecer para si e aparentemente ter cumprido com sucesso sua missão de “salvadora”, produziu-se um deslumbramento, um

[...] renascimento repentino de [sua] vontade de viver, uma sensação nova de utilidade da [sua] existência (ZWEIG, [1927] 1981, p. 271).

Era necessário que a Mrs. C. voltasse a crer que era indispensável. A gratidão demonstrada pelo jovem opera como signo de amor na interpretação fantasiosa de Mrs. C. “Estar grato” era uma correspondência amorosa possível, revestida de ternura (como a de um filho para com sua mãe).

Mrs. C., em contrapartida, exige um juramento de abstenção integral ao jogo do desconhecido. Numa igreja, então, tal promessa é feita, localização muito propícia considerando-se que a personagem em seu delírio, inicialmente, contenta-se com a posição de santidade que atribui a si mesmo, visto que realizou um milagre e, portanto, qualquer atitude duvidosa perde sentido frente à sua beatitude. Afinal, ela

[...] tinha tornado a dar vida, com muito mais sofrimento do que quando os [seus] próprios filhos tinham vindo ao mundo (ZWEIG, [1927] 1981, p. 269).

Efetivamente, Mrs. C. se crê uma santa, ou até mesmo Deus, já que teria dado a vida novamente ao jovem, arrebatando-se numa espécie de êxtase do gozo místico, como define Lacan. A construção da figura de santidade é reiterada continuamente, e o próprio jovem a toma como santa, ajoelhando-se e demonstrando toda a reverência e respeito que se deve a uma figura religiosa.

Considerando que seu “milagre” estava concluído, Mrs. C. fornece subsídios financeiros para que o rapaz retorne à sua casa e se compromete a encontrá-lo na estação de trem antes de sua partida.

Nesse momento, com a partida de seu ‘protegido’, tem início um curto-circuito emocional. E o respeito e a deferência se converteram em itens de repulsa. A personagem, então, descreve sua decepção ao não ter sido tomada como mulher pelo rapaz.

E prossegue:

[...] se aquele homem tivesse me agarrado então, se tivesse me pedido que o acompanhasse, eu teria ido com ele até o fim do mundo, teria desonrado meu nome e o de meus filhos... Indiferentemente aos comentários dos outros e à razão interior, teria fugido com ele, como aquela Mme. Henriette fugiu com o jovem francês, que na véspera ela não conhecia [...] Teria sacrificado àquele homem o meu dinheiro, meu nome, minha sorte, minha honra... Teria ido mendigar e provavelmente não haveria baixeza no mundo a que ele não me levasse a consentir. Teria abandonado tudo... (ZWEIG, [1927] 1981, p. 281-282).

Esta passagem retrata um momento de epifania, quando Mrs. C. reconhece a essência de seu vínculo com o jovem que, embora se inicie com a projeção da figura do filho, encerra-se com a figura do homem e um desejo de constituição de parceria amorosa – ambas as figuras referenciadas ao falo enquanto significante da falta. Notoriamente há um deslizamento na cadeia significante que faz equivaler “ser necessária = ser amada = ser desejada”.

Toda essa dinâmica surge como desdobramento da falta – de objeto, de um significante que represente a mulher, do reconhecimento da não existência de complementaridade, do amor enquanto privação – e de um saber-fazer com essa falta de substância que apenas enganosamente um filho e/ou uma parceria amorosa poderiam obnubilar.

Além disso, a fala de Mrs. C. descortina a facilidade estruturalmente franqueada a uma mulher de oscilar entre o êxtase e a devastação na procura por algum suporte identificatório e o ilimitado de concessões que uma mulher é capaz de admitir para assim obtê-lo.

Diante da possibilidade da perda de seu objeto de amor, Mrs. C. toma a decisão de partir com ele. Uma série de adversidades a impede de chegar a tempo à estação e, assim, perde o trem, não podendo nem ao menos se despedir. Despedaçada e envolta em dor, retorna aos locais onde estiveram juntos. Ao regressar devastada ao cassino, pensa estar louca e delirando, ao ver as mãos do jovem novamente jogando.

Para seu infortúnio e horror, de fato não se tratava de um delírio: o jovem havia retornado aos salões, violando sua promessa. Mortificada, Mrs. C. tenta mais uma vez resgatá-lo e é ignorada, rechaçada, humilhada publicamente e vai embora às pressas. Atormentada, toma o primeiro trem disponível em direção à casa do filho numa viagem extensa e cansativa. E só pensava em uma palavra: “partir”.

Partindo partida, ela se foi. Aqui o significante em questão é extremamente importante: com o coração ‘partido’, Mrs. C. chega a Monte Carlo, conhece o jovem numa ‘partida’ de um jogo de apostas, ‘parte’ com ele numa tentativa de salvá-lo de modo partido (dividida – mãe ou mulher?), tem seu coração ‘partido’ e ‘parte’ (vai embora) querendo partir (morrer), devastada. A perda também marca essa mulher: perda de seu marido, de sua posição subjetiva, de seus ideais, o jovem “perdido” que perde tudo, e a perda de si mesma quando decidi conceder tudo.

Para finalizar, destacamos a data de publicação da novela e da análise de Freud. Em 1927, Freud ainda não havia escrito seu texto sobre a sexualidade feminina, tampouco havia ministrado sua conferência sobre a feminilidade.

Desse modo, podemos afirmar que Zweig antecipa e precede aspectos imprescindíveis da psicanálise ao nos oferecer uma narrativa que constrói com maestria elementos essenciais da clínica e da teoria (entendendo que, para a psicanálise, práxis e episteme são coincidentes), posteriormente consubstanciados e sistematizados por Freud e Lacan.

 

Referências

BIRMAN, J. Ensaios de teoria psicanalítica, 1ª Parte: metapsicologia, pulsão, linguagem, inconsciente e sexualidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.         [ Links ]

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Endereço para correspondência:
E-mail: marianakehl@gmail.com

Recebido em: 04/06/2019
Aprovado em: 13/09/2019

 

Sobre a autora

Mariana Kehl
Psicanalista.
Psicóloga (Faculdade de Ciências Médicas/UERJ).
Graduada em Psicologia (UERJ/Eberhard Karls Universität Tübingen).
Mestre em Psicologia Clínica (PUC Rio/Universidad Autónoma de Madrid).
Doutoranda em Psicologia Clínica (PUC Rio; Bolsista CNPq)

 

 

1 Aqui há uma clara referência ao Sujeito Suposto Saber lacaniano. Lacan considera a emergência do SsS resultado da própria estrutura da situação analítica: o analista enquanto ouvinte de um sujeito que associa livremente. Segundo Miller (1987, p. 70), proferir tudo que vem à cabeça suscita no sujeito “a garantia de que não se fala à toa”, e aquilo que é dito pode trazer uma verdade sobre si mesmo, verdade emanada dos significantes cujo sentido o paciente supõe que o analista saiba.

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