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Reverso vol.41 no.78 Belo Horizonte jul./dez. 2019

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

Entre o intransmissível e o transmissível: a questão do traumatismo fundador e do significante siderante para a formação do psicanalista

 

Between transmissible and intransmissible: the question of founder trauma and siderant significant to the psychoanalyst’s formation

 

 

Laéria FonteneleI; Rebeca de Souza EscudeiroII; Ruth Arielle NascimentoII; Allan Ratts de SousaI

I Universidade Federal do Ceará
II Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise de Fortaleza

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Examinamos a dimensão do transmissível e do intransmissível inerentes ao domínio da formação em psicanálise. Elegemos como recurso metodológico e chave de abertura à questão a articulação entre as noções de traumatismo fundador e de significante siderante, desenvolvidas, respectivamente, por Gérard Pommier e Alain Didier-Weill. Disso resultou a reflexão acerca das dificuldades inerentes à relação entre o desejo do analista e seus laços institucionais. Defendemos a importância da manutenção de um lugar de insistência tanto na prática clínica quanto institucional.

Palavras-chave: Psicanálise, Formação, Transmissão, Instituição.


ABSTRACT

We will examine the dimension of transmissible and intransmissible inherent in psychoanalysis formation’s domain. We elect as methodological resource and opening key to this question the articulation between the notions of founder trauma and siderant significant, they were developed respectively by Gérard Pommier and Alain Didier-Weill. From this resulted the reflexion about inherent dificulties to the relation between the analyst’s desire and its institutional ties. We defend the importance of keeping a place of insistence in practice both clinical and institutional.

Keywords: Psychoanalysis, Formation, Transmission, Institution.


 

A história da psicanálise tem sido marcada por conflitos e dissidências. Conforme Safouan (2013), a psicanálise é a única teoria no campo dos saberes científicos existentes que foi levada a criar um movimento para se proteger de distorções e buscar manter a radicalidade de uma prática clínica centrada no conceito de inconsciente.

A sua transmissão e a formação do psicanalista compreendem uma dimensão política, cujo lastro seria a ética decorrente do desejo de analista, que trabalharia no sentido contrário aos obstáculos decorrentes das resistências à psicanálise.

A dimensão do intransmissível, que vigora no cerne da dita experiência, é outro importante problema a ser enfrentado pelas instituições psicanalíticas e exige delas uma nova posição quanto às relações entre o saber e a verdade.

A antinomia entre a psicanálise, sua própria necessidade de institucionalização e os conflitos que incidem no laço institucional continuam a colocar questões e empecilhos à sua formalização. Por isso, não é vã a reabertura da discussão sobre alguns desses pontos, pois a herança deixada por Freud e Lacan à comunidade analítica parece ainda causar embaraços que impendem o avanço do saber psicanalítico.

A originalidade das noções de traumatismo fundador e de significante siderante, desenvolvidas respectivamente por Gérard Pommier e Allan Didier-Weill, são de grande valor para tanto, pois servem de advertência aos perigos da dimensão paranoica do eu e da dimensão paralisante do supereu para o laço institucional do analista e para a renovação da psicanálise.

Tais noções foram desenvolvidas por esses analistas num momento marcado pelo luto decorrente da morte de Lacan, em 1981, e pelas divergências então instauradas na comunidade analítica.

Trata-se de um dado significativo por representar um período em que alguns problemas se colocaram em relação à continuidade da aposta inovadora que representou a Escola de Lacan, que se achava abalada pelo fracasso da experiência do passe e convocava os analistas a uma reflexão sobre tal infortúnio de modo a tirar-lhe lições edificantes.

Parece, entretanto, não ter sido essa a tendência de muitos dos que vivenciavam esse luto. A proliferação de instituições de orientação lacaniana ocorreu sem que os efeitos de tal dissenso fossem esclarecidos, dando lugar a desavenças, rivalidades e paralisia no seio de muitas delas.

Considerando a massa como formação do inconsciente, Pommier (1992) destaca o paralelismo que há entre o trauma individual e o que funciona como trauma fundador para um grupo social. Levanta, a partir disso, a suposição da existência de uma “neurose infantil da psicanálise”, em cujo exame considera o lugar do acontecimento psíquico, que possibilita a simbolização do luto decorrente do declínio do complexo de Édipo.

Uma pergunta, então, parece oportuna:

Qual é o traumatismo que interessa ao psicanalista, senão o do amor? (POMMIER, 1992, p. 9).

Retoma, com isso, as posições conflituosas da menina e do menino quanto ao pai no drama edípico e suas consequências traumáticas. A posição da primeira consistiria em encontrar no pai uma saída para se livrar das pesadas exigências que lhe são feitas por sua mãe e pela angústia da castração materna. Esta, por não ser enfrentada por ela, convocaria a fabricação da ficção de um pai violador.

Tentando se livrar de um mal, ela encontra outro. O mesmo ocorreria com o menino: seria feminizado, castrado por seu próprio apelo ao pai. Em ambos os casos, o primeiro amor seria

[...] tanto mais traumatizante quanto engendra, ele mesmo, o desconhecimento do trauma (POMMIER, 1992, p. 9).

Assim, o amor recobre o traumatismo ignorado. O acontecimento traumático cristalizará uma dor silenciada no a posteriori do conflito neurótico do amor. A consistência traumática desse acontecimento advém porque ele concentra a carga de um luto impossível.

O acontecimento psíquico compreende um elemento de saber suplementar que, segundo o autor, faz do drama edipiano um trauma e não apenas uma repetição. A lembrança do conflito resta escondida pelo amor. O não estabelecimento de uma medida comum entre um acontecimento atual e o drama esquecido torna o evento traumático.

A temporalidade aí concernida faz do traumatismo fundador uma noção essencial tanto para a técnica analítica quanto para a história da psicanálise e indagamos: não teriam sido a morte de Freud e a de Lacan dois eventos traumáticos na história do movimento psicanalítico que, ainda hoje, se observam em nossas instituições?

Pommier (1992, p. 15), no desdobrar de sua formulação, ao partir da variabilidade do evento que faz do conflito neurótico um trauma, questiona:

[...] por que um acontecimento, possível aliás de ser considerado ‘histórico’, no sentido em que a memória coletiva o retém, não poderia desempenhar a mesma função?

O “acontecimento histórico” também incide no cotidiano da vida social e, em situações de confronto, pode dar em trauma, pois cada um, ao defrontar com uma figura perseguidora, pode conjurar o conflito neurótico. Dada a condição fundadora do trauma sobre o inconsciente, o luto insistiria.

Exemplos disso são as situações extremas de fixação do trauma próprias ao campo de concentração e à tortura, que podem ser traumatizantes por encenar e cristalizar o interminável do luto paterno.

Resta ressaltar que

[...] um mesmo acontecimento pode ser traumatizante para diversas pessoas ao mesmo tempo e, por permanecer efetivamente particular, nem por isso deixará de afetar um conjunto de indivíduos (POMMIER, 1992, p. 17).

Aqui se trata de escutar o efeito individual que podem ter certos fatos históricos, inclusive, no que se refere à história do movimento psicanalítico.

Para o autor, os acontecimentos fundadores da psicanálise podem ser problematizáveis quanto ao conjunto daqueles que a praticam. Alguns deles adquiriram, um valor traumático que, revelados só depois, evocam essa relação com o trauma e com a questão paterna, gerando consequências para o estatuto científico da psicanálise e para as modalidades de sua transmissão.

Por isso, a formação dos psicanalistas carregaria desde seus primórdios “um ponto cego e uma ocasião de discórdia” (POMMIER, 1992, p. 20), que nos impelem a buscar entender, considerado esse paradoxo, a possibilidade de sua transmissão e do que podemos extrair de seu núcleo intransmissível para a formação do psicanalista.

Sedimentada por outros elementos, a reflexão de Alain Didier-Weill (1988) apresenta em comum com a de Pommier (1992) a análise dos impasses decorrentes dos fracassos experimentados pelos Mestres, enfrentados pelas instituições de psicanálise e a defesa da formalização científica da experiência.

Mesmo considerando que “[...] a verdade, nunca se pode dizê-la a não ser pela metade” (LACAN, [1969/1970] 1992, p. 34), ambos atualizam a dimensão do que resta de inassimilável no trauma, mas apostam na dimensão de um semidizer.

Algo deve ser dito sobre a verdade do inconsciente, para que o (semi)saber construído acerca da experiência não recaia no “inefável” e para que o intransmissível ou o fracasso não resultem em mística ou dogmatismo (DIDIER-WEILL, 2006; LACAN, [1967] 2003).

Lacan encarou as dificuldades da transmissão da psicanálise e inventou outros caminhos para minimizá-las, o que não o impediu de deparar fracassos. Diante disso, Didier-Weill (2006) ventila que, na comunidade analítica, existe a presença de uma contínua lembrança da marca de um “fracasso” no caminho desse Mestre em meio às diferentes tentativas institucionais produzidas num contexto de retorno e avanço – temporalidade para trás e para frente – à causa freudiana. (SAFOUAN, 1985).

Essa temporalidade da transmissão possui o formato desse retorno (a Freud) para avançar. Não é isso o que acontece aos sujeitos quando, ao falarem, aparece na nova palavra enunciada também um retorno do recalcado?

A rebeldia da psicanálise à institucionalização é uma face da história da psicanálise que tem sido, de certa forma, historiada por essa via do fracasso.

E o próprio Lacan reconheceu

[...] a contradição estrutural em que todo analista se vê aprisionado, porquanto dividido entre seu desejo singular e o do grupo a que pertence (DIDIER-WEILL, 2003, p. 107).

A sua proposição de substituir a hierarquia pelo gradus, mediante a instauração de um modo de funcionamento institucional circular firmado na experiência, subsidiou uma nova forma de nominação e o enfrentamento de tal antinomia.

Por outro lado, serviu ao fomento da continuidade entre o individual e o coletivo, entre a psicanálise em intenção e em extensão e, ainda, ao posicionamento do saber como objeto inatingível que clama por incessante trabalho, cujo lugar é a instituição e que torna possível o laço entre analistas (JORGE, 2006; LACAN, [1967] 2003).

Lacan elucidou que o fracasso pode ser capaz de agenciar a continuidade da psicanálise sempre que o analista puder se deixar confrontar com o que resiste ao grupo sem que seja precipitado a eliminar o que nele há de paradoxal.

Percebemos, com Pommier (1992) e Didier-Weill (1988; 2006), duas dimensões do fracasso da psicanálise à institucionalização: a primeira, a do sintoma produtor desse primeiro momento de falha, que incidiu no movimento psicanalítico, após a morte de Freud, sob a forma de “deformação pós-freudiana” e que foi, no entanto, necessária para que ocorresse o retorno a Freud.

A segunda dimensão do fracasso, melhor indicada por Didier-Weill (2006), é a impossibilidade de se pensar a experiência por ela mesma, o que serve à sondagem da questão: Como avançar, então, diante desse nó que é próprio da consideração da experiência pelo seu perseguidor ávido, a saber, o pensamento?

Em diálogo com esse autor, Mielli (2013, p. 138) reconhece nisso algo da ordem de um

[...] sofrimento próprio ao encontro com o incognoscível, ao confronto com os limites do que pode ser simbolizado em face do real.

Assim, aquele que é responsável pela formalização teórica é ele próprio afetado por sua divisão, que o faz enfrentar o impossível.

Para Safouan (1985), o fato de Freud e Lacan terem sido tomados pela comunidade analítica como significantes mestres foi um importante motivo do fracasso dos analistas em recriar a psicanálise.

Didier-Weill (1988) afirma que esse tipo de saída representa uma forma de elaboração egoica da doutrina que, entre outros aspectos, consiste na tentativa de extirpar as lacunas do pensamento dos Mestres, o que tende a incitar conflitos dramáticos entre os discípulos e adverte para o que lhes ocorre quando se veem reduzidos a repetir o significante do mestre sem ser deslocados por ele:

[...] a falta retornará no real, mostrando-se aí como pode mostrar-se o maldito: seja pela fascinação, seja pelo feitiço (DIDIER-WEILL, 1988, p. 50).

Esse problema é examinado pelo autor mediante sua concepção de significante siderante, o qual consiste numa representação altamente investida, cujo alto valor psíquico manifesta-se no real como um enigma que tem o poder de atordoar e emudecer o sujeito.

Tal fenômeno admite três tempos: a irrupção do real, a queda do sujeito de um lugar simbólico e a paralisia que opera sobre o corpo, impedindo-lhe o deslocamento, e sobre a palavra, gerando mudez. O significante siderante tem o poder de evocar o mais além e o mais aquém do simbólico e, por isso, atiça o equívoco.

Assim, o sujeito esbarra num ponto de dúvida radical e é tomado pelo efeito da sideração. Depois, depara o estranhamento ante a concomitante aparição do possível e do impossível, sendo arrebatado “pelo terror ou pelo desejo” (DIDIER-WEILL, 1988, p. 40). Por último, impõe-se, para ele, a questão de saber se ele é ou não um equívoco, já que dirige ao significante siderante um suposto saber.

Como resposta, o trilhamento de um semidizer se conforma como o caminho de uma palavra que substitui o “nó siderante por um nó que libera um gozo” (DIDIER-WEILL, 1988, p. 41).

Quando essa palavra não é encontrada, o fascínio surge como resposta ao não saber, como figura do saber absoluto que

[...] corresponde à situação do fascínio, na medida em que o sujeito fascinado [...] é um sujeito que, por perder para o Outro não barrado sua estrutura equivocante, perde para este Outro seu próprio mistério de sujeito do inconsciente (DIDIER-WEILL, 1988, p. 41).

A fuga como saída à emergência do significante siderante por parte de alguns discípulos de Freud e de Lacan retrataria, ainda segundo Didier-Weill (1988), a impossibilidade de simbolização inconsciente dos significantes da teoria devido ao fato de subsumirem o tempo lógico de passagem prévio à sideração, cujo efeito seria o retorno posterior desses significantes no real, criando não o perfilhar de um semidizer, mas o fascínio que os impede de recriar a teoria, porque conduz apenas à sua elaboração por meio da submissão ao Ideal, uma sorte de delírio.

No instante da sideração, o inconsciente está sob a condição de que, aquilo que fundava a possibilidade da existência do sujeito seja transposto, permitindo que se abra à descoberta de um enigma, que o confronta com sua própria desaparição, a qual só ocorre pelo surgimento de um saber do real.

Nesse ensejo, argumenta o autor, seria enunciável que o saber do sujeito está sob a ascendência do significante do Outro barrado, a qual seria verificável apenas em circunstâncias particulares, em que podem fazer emergir, para ele, a

[...] dimensão do mistério da existência, na medida em que esta existência é ameaçada enquanto tal (DIDIER-WEILL, 1988, p. 40).

O semidizer seria, nessa continuidade, um bom uso do significante por sua qualidade de impedir o real de ser despertado. O impossível de dizer, por meio do semidizer, se faria semiescutar,

[...] presença invisível e silenciosa da qual o simbólico conserva, no entanto, um traço (DIDIER-WEILL, 1988, p. 45).

Considerando esse enigma estrutural, Didier-Weill encontra em Lacan a indicação de um caminho: a partir da dimensão mesma do intransmissível, e, logo, da instituição, os analistas deveriam se “responsabilizar” pelo avançar da psicanálise.

Pommier (1992), por sua vez, certifica-se de existir um corpo de enunciados da psicanálise que é transmissível, mas que não permite que se compreenda a singularidade da experiência analítica. Portanto, nos lembra Jorge (2006) que Lacan teria responsabilizado cada analista pela reinvenção da psicanálise.

Assim, a transmissão deve ser entendida como o que articula o saber ao não saber concernente à experiência e não pode ser reduzida a mero ensino, uma vez que

[...] ela remete o analista ora à análise pessoal, ora ao ensino teórico, e, em ambos os casos, introduz na disciplina da psicanálise, na condição de saber, algo que é da ordem do singular (JORGE, 2006, p. 99).

Não teriam sido, outrora, as próprias falhas no trabalho institucional para com esse enigma que gira em torno do impossível, que puderam levar a progressos que puderam ser transmitidos? É nesse sentido que indicamos como questão um intransmissível, um não saber a ser conquistado na articulação da experiência analítica de cada um.

Porém, essa conquista, ou “insistência”, consoante Didier-Weill, não poderia ocorrer de qualquer modo. Por isso, acreditamos existir uma questão a ser sempre renovada no âmbito da formação dos analistas que se dirige à possibilidade da construção da experiência institucional.

Trata-se da transferência de trabalho, desde que se considere o desejo de saber, conforme defende Jorge (2003), como o verdadeiro laço entre os analistas.

Os espaços analíticos deveriam comportar, assim, a dimensão de que

[...] o próprio de um criador, e de um psicanalista, é o de não ser só ensinável por um ensino articulado, mas ter a aptidão de se deixar ensinar e siderar pelos significantes inarticulados que povoam esse maldito Real, sobre o qual Freud e Lacan nos ensinaram que não era impossível olhá-lo de frente sem ficar por ele fascinado! (DIDIER-WEILL, 1988, p. 52).

O desconhecimento dessa questão e a consequente “escolarização” excessiva dos analistas pode engendrar um movimento contrário ao da transmissão. A teoria dos conjuntos, tão cara a Lacan, parece útil para demonstrar esse problema.

Conforme Corrêa (2011), não se deve confundir um primeiro conjunto (A) com um segundo conjunto (B), composto pelas partes do conjunto (A). Mesmo que os analistas em formação pertençam todos ao mesmo conjunto (A), ao decompormos as partes de (A) em um conjunto das partes de (B), descobriremos novos elementos. Não importa quantos elementos estejam presentes nesse suposto conjunto (A).

Há um elemento que, mesmo não exposto, sempre deverá ser considerado quando se decompõe um conjunto. Trata-se do vazio. A fórmula: P(a) = {Ø, a} indica que, se temos um elemento a e fazemos conjuntos partes de a, iremos “encontrar primeiro o conjunto vazio, depois a” (CORRÊA, 2011, p. 9).

E demonstra que o novo aparece conforme uma sequência estabelecida por uma temporalidade sempre suturada pela inscrição do zero, que ordenadamente se apresenta em todos os números: todo número somado a zero é igual a ele mesmo. A insistência da inscrição do vazio possibilita criação, avanço.

O real em jogo na experiência analítica aponta para o paradoxo nodal, que seria a resistência do próprio sujeito (analista) a fazer parte do conjunto de sujeitos (analistas).

Se é imprescindível que a psicanálise assim opere, poderia a falha grupal ser uma oportunidade para o avanço?

Não poderíamos afirmar que “errar é preciso” (CORRÊA, 2011, p. 130) para a renovação da psicanálise?

Não seria assim que se daria o fim de análise, por exemplo? Atualização – de outro modo! – do trauma que funda o sujeito?

Em síntese, o que nos fica das questões examinadas, é que o aspecto de intransmissível precede, cede e prossegue temporalmente à transmissão e, por isso, retomamos, com Pommier (1992), a pergunta sobre a imprescindibilidade do assassinato do pai e posterior luto para ascender à própria simbolização, bem como a necessidade estrutural do esquecimento – do trauma fundador, por excelência – como motor da ação futura que será marcada pelo desconhecimento disso que foi esquecido.

Isso que cada analista testemunha na fala de seus pacientes não poderia ser, exatamente, o que ele não testemunharia ocorrer consigo mesmo?

Um acontecimento da História pode assim alimentar indefinidamente a impossibilidade de luto (POMMIER, 1992, p. 15).

Há uma temporalidade aí, necessária e presente no instante da simbolização diante do impossível de ser simbolizado.

Sendo assim, não é o impossível do pai que é transmitido ao filho, que claudicará durante sua vida tentando dar destino a uma questão que ele desconhece?

Todavia, vimos outra faceta dessa mesma questão, se reconsideramos a temporalidade constitutiva do conflito neurótico em sua relação com o trauma, pois não seria o mesmo traumatismo fundador que poderia paralisar a psicanálise – em uma produção de grupo fechado ou em uma formalização excessiva – e, igualmente, o que poderia fazê-la avançar, retroativamente? Paradoxo produzido pela posição de estranheza da psicanálise! (QUINET, 2009)

Didier-Weill (1988) também nos forneceu uma reflexão fecunda em torno dessa dimensão traumática que opera no âmbito da transmissão da psicanálise ao elucidar a diferença entre ficar “fascinado” e “siderado”. Mostrou-nos que os significantes marcas do próprio sujeito – trauma anterior e posterior – causam, de forma singular, seu ato de enunciar palavras.

Destacamos o ensinamento que daí extraímos: diante dessa primeira impossibilidade traumática, a posição do analista não pode ser nem fugir, nem matar esse suposto monstro dos seus significantes míticos, mas se deixar levar a saber fazer algo a partir do seu enfrentamento.

Encontramos por esse caminho não o aprisionamento dos analistas aos significantes de Freud e de Lacan, mas a articulação, com seus próprios significantes, de seu desejo inconsciente com o significante do Outro, de tal forma que, não sendo possível a transmissão integral da enunciação dos mestres, dado que algo de inalienável se perde nessa transmissão, sua teoria precisa ser reinventada por cada um, a cada análise, uma vez que

[...] a transmissão da psicanálise se faz, radicalmente falando, de um a um: em cada análise de um sujeito com um analista, a transmissão se dá e produz um psicanalista, que, por sua vez, poderá repetir essa experiência com seus analisandos [...] (JORGE, 2006, p. 92, grifos do autor).

Por último, sublinhamos que os autores, aqui tomados como fiadores do tratamento de nossas próprias perplexidades frente à dimensão da formação do analista e de sua pertença institucional, se nos apresentam munidos de formas diferentes de apresentar o impossível de transmitir e nos permitem perguntar:

Não é nesse próprio modo de testemunhar o estilo de cada um, que se vê o caminho do avanço da psicanálise?

A atualização e o depurar do próprio estilo de cada analista seriam uma espécie de caminho que os fez ficar frente à frente com a questão do intransmissível?

 

Referências

CORRÊA, I. A psicanálise e seus paradoxos: seminários clínicos. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2011.         [ Links ]

DIDIER-WEILL, A. Inconsciente freudiano e a transmissão da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. p. 189. (Transmissão da Psicanálise, 6).         [ Links ]

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SAFOUAN, M. La Psychanalyse: science, thérapie – et cause. Paris: Editions Thierry Marchaisse, 2013.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Laéria Fontenele
E-mail: laeria@terra.com.br

Rebeca de Souza Escudeiro
E-mail: rebecaescudeiro@gmail.com

Ruth Arielle Nascimento Viana
E-mail: rutharielle@hotmail.com

Allan Ratts de Sousa
E-mail: allanratts@gmail.com

Recebido em: 11/03/2019
Aprovado em: 13/09/2019

 

Sobre os autores

Laéria Fontenele
Professora Titular da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Diretora do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise, Fortaleza (CE).

Rebeca de Souza Escudeiro
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC.
Membro do Corpo Freudiano - Escola de Psicanálise, Fortaleza (CE).

Ruth Arielle Nascimento
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC.
Membro do Corpo Freudiano Escola de Psicanálise, Fortaleza (CE).

Allan Ratts de Sousa
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC.

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