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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.79 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

Ouvir com os olhos: gestos, expressões, ritmos1

 

"To hear with eyes": gestures, expressions, rhythms

 

 

Jô Gondar

Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro. Doutora e pós-doutora em psicologia clínica. Professora titular da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Comitê Executivo da International Sándor Ferenczi Network e da International Federation of Psychoanalytic Societies. Autora, entre outros livros, de Com Ferenczi e Clínica, subjetivação, política (em coautoria com Eliana Schueler Reis). Rio de Janeiro: 7Letras, 2017

Correspondência

 

 


RESUMO

"To hear with eyes" é uma expressão de Shakespeare usada por Masud Khan como título de um artigo seu escrito em 1971. Khan narra o caso clínico de uma jovem modelo que lhe dizia certas coisas, mas em cujo corpo, deitado no divã, ele via outras coisas. O artigo de Khan tem quase 50 anos, e pode-se dizer que hoje o manejo clínico das questões corporais e das dissociações subjetivas tornou-se mais premente. Se Khan privilegiou o olhar do analista sobre o corpo do paciente, podemos hoje alargar este horizonte, matizando a relação entre as expressões corporais, os gestos e os ritmos no encontro clínico.

Palavras-chave: Clínica contemporânea, Pacientes dissociados, Gestos e ritmos.


ABSTRACT

"To hear with eyes" is a Shakespearean expression used by Masud Khan as the title of an article written in 1971. Khan narrates the clinical case of a young model who told him certain things, but in whose body, lying on the couch, he I saw other things. Khan's article is almost 50 years old and yet it can be said that today the clinical management of body issues and subjective dissociations has become more pressing. If Khan privileged the analyst's gaze on the patient's body, today we can broaden this horizon, tinting the relationship between body expressions, gestures and rhythms in the clinical encounter.

Keywords: Contemporary clinic, Dissociated patients, Gestures and rhythms.


 

 

O título deste artigo tem uma dupla inspiração. "Ouvir com os olhos" é uma expressão de Shakespeare, no Soneto 23:

Mais do que a língua que mais se expressa Ouvir com os olhos faz parte das sutilezas do amor.

Essa expressão também foi usada como título de um artigo de Masud Khan (1971), cujo subtítulo é Notas clínicas sobre o corpo como sujeito e objeto. É um texto conhecido, em que ele narra o caso clínico de uma jovem modelo que lhe dizia certas coisas, mas em cujo corpo, deitado no divã, ele via outras coisas. A partir dessa defasagem entre o que era ouvido como discurso e o que era ouvido como expressão do corpo, Khan apresenta um estudo interessante sobre o conceito de dissociação desde Freud.

Sua tese, já naquela época, era a de que a experiência clínica emprega e se comunica por outros meios além da linguagem; nela se daria uma troca importante sem que precise haver fala. Isso se torna mais relevante, para Khan, no caso de pacientes dissociados. Eles encenam com seu corpo determinados aspectos de sua subjetividade e de sua vida que não mantêm nenhuma relação com aquilo que dizem.

O que quero trazer aqui não se reduz ao trabalho de Masud Khan. Ele privilegiou o olhar do analista sobre o corpo do paciente. Isso é importante, mas eu gostaria de ir além, matizando a relação entre as expressões corporais, os gestos e os ritmos, e estendendo o olhar ao encontro clínico, sem reduzi-lo a uma capacidade do analista.

A questão é que o artigo de Khan tem quase 50 anos, e, de lá para cá, pode-se dizer que o manejo clínico das questões corporais e das dissociações subjetivas tornou-se mais premente. Temos cada vez mais pacientes que não usam o divã, que pedem o nosso olhar, e não apenas para controlar o ambiente.

Em primeiro lugar, é importante marcar uma diferença entre olhar e ver. Ver é um ato que se emparelha com os demais sentidos: audição, olfato, tato, paladar. O que chamamos de "sentidos" são órgãos que recebem estímulos do ambiente. Os olhos, porém, enquanto órgãos dos sentidos, apresentam um funcionamento mais complexo do que os demais. O ouvido e o nariz, por exemplo, recebem estímulos, mas os olhos não só recebem como refletem e emitem estímulos (Gil, 1996).

Explicando melhor: quando alguém me olha, eu vejo nesse olhar o meu reflexo. Isso faz com que o olhar do outro não seja apenas uma coisa, e sim algo além do enquadre da minha visão objetiva. Olhar um olhar implica uma profundidade, uma terceira dimensão, porque posso me ver nele ao mesmo tempo em que o vejo. Quando meu olhar encontra o olhar do outro, ele me permite ver também o que não vejo de mim. Permite ver o que para mim é visível e o que para mim é invisível, ao mesmo tempo. Em consequência, nunca vejo no outro o reflexo exato do meu olhar. Quando alguém me olha, eu vejo nesse olhar o meu reflexo e - mais - o modo como esse outro recebe o meu olhar (Gil, 1996). Esse outro olhar emite estímulos, fazendo intervir um modo subjetivo na imagem vista.

É nesse sentido que Masud Khan afirma, no artigo mencionado inicialmente (1971), que na situação clínica o olhar pode ser afetivo ou empático, hostil e rejeitador, mas não pode ser neutro, como a escuta é capaz de ser. A proposta de ouvir - também - com os olhos amplia tanto os sentidos envolvidos na atenção flutuante do analista quanto as possibilidades de expressão envolvidas na associação livre do paciente. A psicanálise não é apenas uma "cura pela palavra", mas uma cura pelo encontro expressivo e afetivo entre paciente e analista. Encontro expressivo que inclui a fala, mas não só.

 

Expressão e gesto

Quando se fala em expressão, a entrada em cena do corpo é mais radical. O corpo que os olhos ouvem não é simplesmente um corpo simbólico ou um resto de operações simbólicas. É um corpo que tem potência e se expressa de múltiplas maneiras, como nos ensinou Ferenczi: para ele a clínica não se reduziria à linguagem verbal, mas envolveria muitas formas de expressão, tais como gestos, tons de voz, odores e atmosferas de modo geral.

O corpo que os olhos ouvem é um corpo em sua capacidade de expressão e de impressão (Câmara, Herzog, Canavêz, 2018), ou, em outros termos, em suas possibilidades de afetar e de ser afetado pelo outro e pelo mundo. A linguagem verbal é apenas uma dessas possibilidades - mas não a única. E nem a central.

O que significa dizer que a linguagem é apenas parte de uma grande capacidade expressiva e impressiva? Significa não separar corpo e psiquismo, separação que ocorre quando se acredita que a linguagem, proveniente da psiquê, é capaz de produzir efeitos no corpo. Quando pensamos que o psíquico causa algo no corpo, já estamos separando os dois. Boa parte da psicanálise faz isso, do mesmo modo que a psiquiatria organicista faz o contrário: pensa que substâncias produzidas pelo meu corpo - a serotonina, por exemplo - causam o que acontece na minha mente.

Porém se não os separo, penso que tanto o corpo quanto o psiquismo expressam e sofrem impressões nos encontros que realizam. Um não causa algo no outro, embora possa sofrer reverberações a partir do outro. É o que Freud chamava de paralelismo psicofísico, ideia que provém de Leibniz. Ferenczi radicaliza essa ideia quando propõe que existem forças psíquicas no corpo - por isso o corpo é capaz de pensar (Ferenczi, 10 jan. 1932) - assim como existe corporeidade ou sensorialidade nas palavras.

Ele trata disso num pequeno texto, intitulado Palavras obscenas ([1911] 1991). Um palavrão é algo que nos toca visceralmente, para além de seu significado verbal. Porém, aquilo que se dá com os palavrões teria ocorrido, originalmente, com todas as palavras. Todas elas, de início, possuiriam um caráter tangível e sensorial, estando carregadas de "riqueza afetiva e potência motora" (Ferenczi, [1911] 1991, p. 119).

Barthes (1984, p. 64) diz a mesma coisa sobre a linguagem dos apaixonados: no estado amoroso, ele escreve,

[...] a linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras.

Isso pode acontecer porque todas as formas de expressão possuem uma origem comum (Câmara, Herzog, Canavêz, 2018), isto é, tanto as palavras quanto os gestos corporais proviriam de uma mesma capacidade impressiva e expressiva. Por esse motivo, ouvir seria uma experiência sensória, assim como, ao falar, se poderia afetar o outro, do mesmo modo que os dedos tocam a pele.

Que consequências essa ideia tem para a clínica? Isso implica pensar que o encontro clínico é feito não só com palavras, mas com tudo aquilo que permite que alguém se expresse diante de um outro com objetivos muito diversos, como fazer-se compreender ou pedir compreensão, transmitir, ordenar, tocar ou, simplesmente, estar com o outro. Todas essas possibilidades expressivas podem ser entendidas como gestos, o que permite pensar que os gestos, em seu movimento expressivo, são mais amplos e até anteriores às palavras.

Afirmar que os gestos são anteriores às palavras não significa dizer que eles são pré-linguísticos. Significa dizer que as palavras, segundo a forma como são usadas, são antes de tudo gestos: elas servem para afastar, aproximar, ferir, ordenar, afagar, cortar. Os pacientes não neuróticos são muito sensíveis a isso; nas intervenções do analista, o que eles percebem é o gesto, mais do que o conteúdo do que é dito. Pode-se entender então que, para esses indivíduos, uma interpretação ou corte súbito de sessão sejam percebidos literalmente como corte - não como corte simbólico, capaz de convocar a elaboração, mas como corte real, no qual aquele que foi cortado sofre na carne o gesto do afastamento e da exclusão.

O silêncio também pode ser pensado na esfera do gesto. Evidentemente, existem vários tipos de silêncio e vários gestos possíveis implicados no silêncio. Existem silêncios que desanuviam a atmosfera; em contrapartida, há outros que nos dão a impressão de que o ar poderia ser cortado a faca. Creio, porém, que determinado tipo de silêncio tem uma importância especial no encontro analítico. Refiro-me ao silêncio originário que Winnicott ([1958] 1998) ligou à solidão essencial e, no plano dialógico, à capacidade de estar só na presença do outro. Sem essa possibilidade de silêncio, todo encontro se torna um confronto. Só há liberdade em qualquer encontro - e, particularmente, no encontro analítico - quando se pode também não dizer, não comunicar, não endereçar, não confrontar e nem buscar. Esse é o momento em que, sustentado pelo analista, alguém pode descansar de ser si mesmo enquanto forma dada, abrindo entrada para o informe e o inédito.

 

Sobre o ritmo

Existe uma noção de tempo muito curiosa e pouco explorada em Freud. É a noção de período. Freud ([1895] 1977) apresenta essa noção no Projeto para uma psicologia científica, quando trata da passagem da quantidade à qualidade. A questão é que o mundo não nos dá qualidades, só quantidades. O mundo não nos dá vermelho; o que ele nos dá são ondas luminosas, ou seja, quantidades de excitação. Como transformamos isso em vermelho? Freud diz que com os nossos órgãos dos sentidos não podemos perceber quantidades de excitação, porém podemos ser afetados pelo período da excitação, ou seja, pelo aumento ou pela diminuição da excitação num determinado período de tempo. Aumento ou diminuição da excitação num determinado período de tempo; vamos dar um nome a isso: ritmo. É o nome que lhe dá Freud.

Em O problema econômico do masoquismo, ele retoma a questão, afirmando que o período se refere

[...] ao ritmo, à sequência temporal das mudanças, elevações e quedas nas quantidades de estímulo (Freud, [1924] 1977, p. 200).

Ou seja, o que percebemos como vermelho é um certo ritmo da excitação; o que percebemos como amarelo é outro ritmo da excitação. É o ritmo que faz a quantidade ser transformada em qualidade. Ritmo: um estilo de variação das intensidades. Freud está nos mostrando como constituímos os nossos objetos, com as qualidades que lhes atribuímos: os objetos são ritmos e diferenças entre ritmos.

Podemos, porém, ser mais rigorosos neste ponto: os ritmos não estão encravados nas próprias coisas; eles se constituem na relação que estabelecemos com elas. O ritmo do vermelho, ou do amarelo, ou do acolhedor, ou do inóspito, dependem do meu ato de olhar ou de sentir. Nesse caso, a operação de constituição de objetos seria, ao mesmo tempo, uma operação de constituição de nós mesmos, enquanto sujeitos. Sujeito e objeto são produtos de uma relação, e não termos previamente dados a partir dos quais uma relação iria se constituir. Em outras palavras: o mundo e nós próprios seríamos criados conjuntamente. Ao criarmos um mundo como ritmo, criamos também o nosso próprio ritmo.

Jacques Derrida (1967) afirma que a noção de período corresponde à introdução, por parte de Freud, da noção de diferença pura. Mas é possível dar à noção de diferença pura um nome psicanalítico: singularidade. Podemos, então, dizer que a singularidade mais básica, a partir da qual todo um estilo de ser se erige, é o ritmo - o nosso e o do outro, o nosso construído na percepção do outro. Uma singularidade é antes de tudo um ritmo. O que isso quer dizer, em termos mais encarnados?

As pesquisas mais recentes no campo do autismo têm levado muitos psicanalistas a admitir uma sensibilidade prévia do bebê para captar a variação de ritmos na voz e no corpo da mãe. Alguns desses psicanalistas, como Geneviève Haag e Suzanne Maiello, defendem a ideia de que essa sensibilidade é muito precoce, surgindo já durante a vida intrauterina. O autismo teria origem num problema ligado à experiência rítmica.

Segundo Maiello (1998), essa experiência rítmica começaria a acontecer por volta do quarto mês da vida intrauterina. Nesse período, o feto já começaria a perceber um proto-objeto sonoro, a partir dos sons e ritmos do corpo e da voz da mãe.

Geneviève Haag (2005, p. 120) escreve:

Parece que um certo nascimento do sentimento de existência se produziria a partir do quarto mês da vida pré-natal na percepção diferencial entre os ritmos regulares dos ruídos do coração e o surgimento do aleatório da voz materna. As crianças autistas têm nos mostrado que estabeleceram uma analogia entre a voz humana e os ruídos da passagem de água nos canos, analogia que provavelmente pode remeter aos borborigmos intestinais, outro ruído aleatório percebido ainda no útero.

O que Haag nos diz é que o sentimento de existência, isto é, a sensação de existir - algo que se dá muito antes de um eu - decorre da percepção da variação de ritmos no corpo da mãe, o que implica dizer que há um prenúncio de si mesmo que se cria enquanto ritmo ele próprio. Falando mais claramente: o feto experimenta os ritmos da mãe e nessa experiência cria seu próprio ritmo, primórdio de um si mesmo.

No início não era o verbo nem o ato. No início era o ritmo. Nós somos, e cada um de nós ao seu modo, um ritmo: um tempo anterior à própria temporalidade. Uma espécie de tempo potencial, a partir do qual uma temporalidade subjetiva se poderia fazer. Esse ritmo diria respeito às sensações primordiais, aos sentimentos vitais. Antes mesmo de existir um sujeito ou um ser no mundo, há um sentir, e nesse sentir tocamos algo que ainda não é um objeto, através de uma sensorialidade muito primitiva. É nesse nível, porém, que o primeiro surgimento de uma forma é possível, e a primeira forma - que não é ainda uma forma, uma Gestalt, sendo mais uma Gestaltung, um se fazendo da forma -, essa Gestaltung é o ritmo. Entre o caos e o mundo, entre o caos e o sujeito, entre o informe e a forma, está o ritmo. Vamos agora sair do campo do autismo e passar para outros autores que se dedicam a pensar as trocas emocionais entre um recém-nascido e sua mãe.

Como é que um bebê percebe sua mãe? René Roussillon (2004) afirma que o bebê percebe, desde o início uma forma de mãe, assim como é capaz de diferenciar objetos animados e inanimados, baseado no tipo de ritmo do movimento dos objetos. A mãe é primeiro um ritmo, e Roussillon escreve que o bebê é capaz de reconhecê-la muito cedo, desde as primeiras horas de vida. O psicanalista francês vê as trocas emocionais como emanações rítmicas, um processo de sintonia afetiva. Fala de um verdadeiro ballet de ajustamento de gestos, mímicas e posturas entre a mãe e o bebê.

Trata-se não de uma simetria, e sim de uma sintonia rítmica: cada um tenta se sintonizar com o outro, criando uma coreografia corporal, criando a respiração de um movimento. O bebê tem uma sensibilidade precoce para captar a variação dos ritmos na voz, nos gestos e nos movimentos maternos, e se mostra apto para responder a esses movimentos, criando com a mãe uma verdadeira coreografia.

Mas para que esse ballet do encontro aconteça, diz Roussillon (2004), é preciso que cada um, e mais particularmente o bebê, seja capaz de antecipar os movimentos ou as variações do outro, como fazem dois parceiros de dança ou dois músicos que tocam juntos.

Como o bebê é capaz de um procedimento tão complexo? É verdade que, se a mãe for muito brusca, caótica ou errática, ela vai extrapolar a capacidade de antecipação do bebê. Porém, se não for, o bebê é capaz de se apropriar dos esboços de ritmo que se desprendem do movimento da mãe.

Roussillon escreve:

É o ritmo, primeiro nível de organização de uma forma de temporalidade, que torna possível uma certa previsibilidade da mãe e de seus movimentos (Roussillon, 2004, p. 430).

E explica:

O ritmo define uma sequência, permite antecipar um seguimento, observar uma regularidade e prever, de algum modo, a sequência seguinte (Roussillon, 2004, p. 430).

Além disso, o bebê teria uma capacidade para transpor os ritmos percebidos num plano para outro - aquilo que Daniel Stern (2003) chamou de apreensão intermodal: o bebê pode transpor ritmos escutados para ritmos vistos, pode transpor, através do ritmo, melodias de gestos para melodias visuais.

Roussillon (2004, p. 439) acrescenta:

Para ser mais preciso, as pesquisas mais recentes acabam de colocar que, mais ainda que nos ritmos, é nas variações de ritmo que os bebês são mais experts. Pode-se comparar e colocar em paralelo as improvisações rítmicas dos duetistas de jazz e as que se pode observar na coreografia do encontro primitivo entre mãe e bebê. Para poder improvisar, é necessário ter aprendido a regra rítmica implícita, a improvisação supõe uma arte na qual o respeito da regra do jogo e a liberdade se combinam e se harmonizam.

Não é preciso dizer que nessa improvisação o bebê é não apenas um receptor de ritmos, mas também um emissor: a partir dessa dança ou desse duo ele vai criando um ritmo próprio.

O que é possível pensar, a partir das pesquisas de Geneviève Haag, Suzanne Maiello e Roussillon? Podemos dizer que o ritmo se encontra na base da relação primária entre mãe e bebê, na base da constituição do primeiro objeto e na base da constituição subjetiva. Isso implica conceber o sofrimento psíquico como uma perturbação no ritmo, uma disritmia. Percebe-se igualmente a importância, durante uma sessão de análise, do ritmo de cada sujeito.

Quanto mais traumático for o processo subjetivo, mais importante é a percepção e o respeito ao ritmo do paciente, tanto quanto a possibilidade de podermos compor com esse ritmo, colocando-nos no diapasão desse sujeito, para que esse ritmo, que é o dele, possa ser sustentado. Isso é importante porque muitas vezes um sujeito não conhece, não respeita ou não sustenta, ele próprio, seu próprio ritmo -principalmente diante de um outro.

Para finalizar, gostaria de fazer uma observação de cunho político que pode ser importante neste momento para nós, especialmente no Brasil: cabe lembrar que até mesmo o autoritarismo começa com a imposição de um ritmo - a marcha militar cadenciada. φ

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Jô Gondar
E-mail: jogondar@uol.com.br

Recebido em: 28/02/2020
Aprovado em: 03/04/2020

 

 

1 Trabalho apresentado no XXI International Forum of Psychoanalysis, em Lisboa, em 07 fev. 2020.

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