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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.79 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

A prática psicanalítica1

 

The psychoanalytic practice

 

 

Maria Angela Assis Dayrell

Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Além do trabalho clínico e de supervisão, dedica-se à transmissão da psicanálise no seu consultório e no CPMG, onde coordena Seminários de Introdução à Formação (Tempo do saber), e da Prática Psicanalítica (Tempo do Fazer)

Correspondência

 

 


RESUMO

A partir de um caso clínico, é trabalhada a questão da posição do psicanalista na escuta analítica e na direção do tratamento.

Palavras-chave: Ser psicanalista, Desejo de analista, Sintomas, Ética do bem dizer.


ABSTRACT

Based on a clinical case, the question of the psychoanalyst's position in analytical listening and in the direction of treatment is addressed.

Keywords: Being a psychoanalyst, Analyst's desire, Symptoms, Ethics of good saying.


 

 

Atendendo a um amável convite, esta intervenção foi proferida após a escuta de um caso clínico apresentado na Reunião Clínica de 07 ago 2019, no Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

O caso clínico suscita um momento de elaboração de saber. E essa elaboração pode ser constatada, não só na supervisão, como também nesse dispositivo do CPMG, de apresentação de caso à comunidade analítica,

[...] em que duas dimensões diversas - analítica e teórica - encontram um lugar para serem articuladas (Jorge, 2017, p. 142).

A forma como o colega encerrou sua apresentação fazendo alusão à psicanálise como uma obra de escultura remete ao que Marco Antonio Coutinho Jorge (2017, p. 134) comenta:

[...] vem à lembrança, imediatamente, a comparação que Freud fez entre a psicanálise e a escultura, definida por Da Vinci como operando per via de levare e se opondo à sugestão que opera como pintura, per via de porre.

No texto Psicoterapia, Freud ([1905] 2016, p. 337) enfatiza:

A terapia analítica não deseja acrescentar ou introduzir algo novo, mas sim, retirar, extrair, por isso cuida da gênese dos sintomas doentios e do contexto psíquico da ideia patogênica, cuja remoção é seu objetivo.

Segundo Benoît Le Bouteiller (2019), vários aspectos, entre outros, são significativos para que alguém possa se dizer analista:

• Ser analista com seu estilo e se inscrever na comunidade analítica implica compartilhar a dívida. Sabemos que a vida nos oferece oportunidades, e cada um de nós, diante do que recebemos da mãe, do pai, de um professor ou de alguém que um dia cuidou da gente, reconhecemos essa dívida e, então, vamos oferecer algo à comunidade pelo que recebemos, compartilhar com outros, mesmo sabendo que a dívida é impagável!

• Postular a travessia da fantasia: a janela do sujeito, através da qual se vê o mundo! Quinet (2009, p. 164), em A estranheza da psicanálise, diz:

[...] no final de uma análise, o sujeito pode deslocar o quadro da fantasia que recobria sua janela para poder se confrontar com o furo do Outro que o torna inconsistente [S (A)] e deixar cair o objeto α.

• Estabelecer a função desse 'ser analista', que implica se assenhorar, tomar posse, ocupar o nó borromeano, considerando os três registros (RSI) independentes mas articulados entre si e, no ponto central, o objeto α.

• Constatar que o sujeito-analista deve mudar radicalmente sua modalidade de gozo, isto é, não pode gozar do lado fálico e nem do lado do gozo do sentido. Tanto no gozo fálico quanto no gozo do sentido não se pode ser analista. Impossível! É o gozo Outro: é outro gozo, diferente, indizível, que tem a ver com a impossibilidade (está lá, entre o R e o I, no nó borromeano). Portanto, repetindo: não é gozar do sentido. E nem gozar falicamente!

Nessa dimensão, o que é ser analista?

Não faz sentido dizer "sou analista". Tenho, sim, que sustentar um espaço que possa ocorrer o 'ser analista'. Ser analista, diz respeito a uma posição, se tornando psicanalista num processo contínuo, num movimento, que é o movimento do desejo: desejo de analista.

Referindo-se ao texto de Freud (1937) A questão da análise leiga, diz Jorge (2017, p. 115):

[...] o que importa para a psicanálise não é a formação anterior do psicanalista, mas sim sua formação propriamente psicanalítica. O analista leigo não é para Freud o analista não médico, mas sim o analista que não possui uma formação psicanalítica sólida.

Cumpre destacar que é inerente à formação do analista seu compromisso com a própria análise, e a responsabilidade da análise é levá-la ao seu término, que implica o advento do desejo do analista como contingência, isto é, possível de acontecer. Nesse final, decide-se a eficácia tanto do fazer analítico quanto da passagem de um analisante à posição de analista, uma passagem ao autorizar-se analista.

Então, precisamos destacar duas coisas, ensina Bouteiller (2019):

• Qual é o motor do desejo de analista?

A resposta implica os quatro aspectos já indicados.

• Qual é a bússola do analista? Como vai conseguir progredir em sua prática?

São questões éticas e técnicas, por exemplo, manejo da transferência, atenção à modalidade de gozo do analisante e o que ele está fazendo com o próprio corpo, questão diagnóstica, interpretação e ato analítico, entre outras. Motor e bússola têm ligação e concorrem para se ver como analista.

A questão diagnóstica sempre aparece ao se dirigir um tratamento. Nesse aspecto, o analista precisa pensar de uma forma singular, o oposto da clínica médica. Para um médico, sintoma é um signo (sinal) de uma doença. Para um psicanalista, o sintoma é expressão do inconsciente, do desejo recalcado. Portanto, "o sintoma é sinal do sujeito", bem acentua Quinet, em O sinal (2011).

O sintoma, segundo Quinet (2011),

[...] é uma forma de dizer - por meio da dor, da tendinite, da insônia, da impotência, do pânico, da depressão - que ainda não encontrou a sua fala apropriada. Por trás de todo sintoma há um sujeito em sofrimento, uma história, um temor, a dor maior.

[...] O sintoma é um compromisso entre um desejo que não quer calar e a censura que o cala. Em suma, reflete a luta entre aquilo que não cessa de se escrever e o apagador que não apaga dor alguma.

Portanto, no tratamento psicanalítico, a partir de uma hipótese diagnóstica, podemos perceber não apenas a função que o analista tem para esse sujeito na relação transferenciai, mas também a função do sintoma para o analisante.

E mais, continua Quinet (2011):

[...] o significado de um sintoma, para a psicanálise, não é a patologia, e sim o pathos, a paixão de um desejo que não ousa dizer seu nome. Ame seu sintoma como a si mesmo! Ele aponta sua verdade. Mas se ele faz sofrer é porque realiza um desejo conflituoso de que você nem quer saber. Não adianta, ele insiste!

Se o sujeito calar seu desejo, será ao custo da angústia, e só faz surgir inibição. "É por isso que se deve acolher o sintoma - seu e do outro - e não fazê-lo calar", conclui Quinet (2011).

O sintoma, a volta do recalcado, pode dar prazer, o que não pode ser sentido como tal. Existe um gozo relativo a esse aparente desprazer, portanto um gozo que não coincide com o registro do prazer (por exemplo, um gozo relativo a uma autopunição).

No caso apresentado, nosso colega coloca em relevo a questão da psicanálise com o idoso, o que é muito importante, pois com a idade, ocorrem modificações físicas e cognitivas, além de outras. Mas a estrutura psíquica não tem idade! O sujeito do inconsciente não envelhece, é bem lembrado, segundo Angela Mucida. Mas constituir-se analista só para idosos, estaria falando mais do próprio analista, da sua questão subjetiva e, obviamente, poderia ser objeto de sua própria análise.

Portanto, nosso trabalho na condução do tratamento é produzir uma experiência singular, o que é diretamente oposto à fascinação pelo saber, colocando sentido em tudo, pois corre-se o risco da 'manutenção', isto é, de manter tudo igualzinho! (expressão usada pelo clínico para dizer que a paciente, após concluir seu tratamento, mantinha sessões esporádicas, de 'manutenção' com ele).

Que o analisante possa suportar sua diferença e a não adaptação, isto é, implica sua inclusão como sujeito que requer uma invenção, uma forma singular de estar no mundo!

Falar tem um efeito não só no jogo das significações, como também e principalmente, tem efeito no simples fato de dizer!

Christian Dunker (2017, p. 13), em Reinvenção da intimidade acentua:

Cada experiência de sofrimento é uma história que se transforma à medida que é contada.

O bem dizer é a virtude: bem dizer o sintoma e o mal-estar na civilização. Dizer é um ato! E o psicanalista vai 'ler o dizer' do analisante: ler o desejo que está em movimento e não entender! O analista precisa ver como ele está nesse lugar: como ouvir esse Real que está no 'dizer' e não no 'dito'. O dizer pode ter a função de permitir a ligação, a articulação entre os três registros - RSI.

Benoît Le Bouteiller (2019/2020), ao tratar da teoria dos nós, questionou: como aproveitar dessa teoria clinicamente, na sua dimensão poética?

O trabalho do psicanalista, nos lembra Bouteiller, é um trabalho de um leitor, leitor de um nó que está acontecendo atrás do dito. Ter uma leitura orientada a partir da teoria dos nós, não se reduz apenas a duas dimensões, Imaginário e Simbólico, numa tentativa de ter sentido, mas, sim, se a ver com o Real, a terceira dimensão que está, especificamente, atrás do dito.

Como conseguir ver a dimensão do Real, além da aparência do Imaginário e do Simbólico?

Ensina Bouteiller: primeiro, aprender a ler para alcançar a escrita do sujeito; segundo, fazer um corte, uma incisão na espessura do que está presente, isto é, cortar no lugar certo, quando o sujeito está falando.

O corte, na interpretação do analista, tem um efeito não sobre o sentido, mas sobre a estrutura. Estrutura entendida aqui não como estrutura nosográfica, mas como estrutura lógica e topológica do sujeito.

A interpretação, portanto, não é cronológica, mas num tempo lógico da fala do sujeito, para colocar sua fala em outro lugar.

A interpretação do lado do sentido não faz a torção que permite sair de um lado para outro, como na banda de Moebius, mas mantém o sujeito girando no mesmo lugar. Portanto, enfatiza Bouteiller, ser psicanalista é poder ler de uma forma nova!

O ser falante está habitando as três dimensões RSI, e essa escrita vem através de seus ditos, que exige uma leitura no um a um. A teoria dos nós vai nos oferecer ferramentas para lermos o que se está dizendo atrás daquela fala, afirma Bouteiller.

O percurso analítico não é a busca de uma coisa recalcada, mas produzir 'iné-ditos' que não estavam presentes. É criação, produção! O desafio para o analista, salienta Bouteiller, é permitir uma invenção, uma escrita nova. O analista vai ver como isso se constrói e como funciona essa modalidade de fazer nó!

O sujeito está construindo um sentido, e o analista usa suas ferramentas - ato e interpretação - para ir atrás da fala do sujeito e atentar para a lógica subjetiva do que se está escrevendo! É um trabalho de criação em que o sujeito faz uma construção de si mesmo.

Portanto, o ato analítico, como ato de criação, tem a ver com o ato poético, conclui Bouteiller.

O discurso do analista é o que sustenta seu ato e o leva ao dever da interpretação. O ato e a interpretação, diz Quinet (2018), são as armas do analista, um dizer que funda um fato e fura a consistência do Outro (o avesso do discurso do mestre). Portanto, vale sublinhar a diferença entre o dizer e o dito: a interpretação engloba os ditos, e o dizer sustenta que a relação sexual não existe.

Em Economia de gozo e final de análise, Nilza Ericson (2015, p. 150) afirma:

Nunca se vai poder apreender o ser pelo dito, apesar do dito pretender isso. Há sempre algo atrás do que foi dito. Alguma coisa que ex-siste ao dito, que não está toda no dito. Então o dito não traz o dizer todo.

Parabéns a todos os presentes que tanto contribuíram para nossa conversação nos proporcionando ocasião de aprendizado, reflexão e debate! φ

 

Referências

BOUTEILLER, B. Caso clínico em psicanálise. Anotações de aula. Belo Horizonte, CPMG, jul. 2019.         [ Links ]

BOUTEILLER, B. Seminário Topologia e poesia: os efeitos clínicos da última parte da obra de Lacan. Anotações de aulas. Belo Horizonte, CPMG. Em andamento, com início em 23/09/2019 e com reuniões em 2020.         [ Links ]

DUNKER, C. I. L. Reinvenção da intimidade -políticas do sofrimento cotidiano. São Paulo: Ubu, 2017.         [ Links ]

ERICSON, N. Economia de gozo e final de análise. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.         [ Links ]

FREUD, S. Psicoterapia (1905). In:. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Análise fragmentária de uma histeria (O caso Dora) e outros textos, (1901-1905). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. (Obras completas, 6).         [ Links ]

JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise: de Freud a Lacan, v. 3: a prática analítica. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.         [ Links ]

QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a escola de Lacan e seus analistas. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.         [ Links ]

QUINET, A. Seminário A política do analista. Anotações de aula. Campo Lacaniano de Belo Horizonte, out. 2018.         [ Links ]

QUINET, A. O sinal. Estado de Minas, Caderno Pensar, sábado, 30 jul. 2011.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:

Maria Angela Assis Dayrell
E-mail: maria.angelaadayrell@gmail.com

Recebido em: 17/09/2019
Aprovado em: 03/04/2020

 

 

1 Comentário teórico-clínico realizado no debate do caso clínico apresentado na reunião clínica do Círculo Psicanalítico de Minas Gerias, em 07 ago. 2019.

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