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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.79 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

PSICANÁLISE E CULTURA

 

Amar, verbo intransitivo, idilio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein

 

To love, intransitive verb, idyll: the sexual initiation of a young man and fräulein's desire

 

 

Eliana Rodrigues Pereira MendesI; Marisa Lima RodriguesII

IEspecialista em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Titulada psicóloga clínica pelo Conselho Regional de Psicologia - Seção Minas Gerais. Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Presidente do CPMG nos períodos de 1999-2001 e 2011-2014. Vice-Presidente do CPMG no período de 2017-2020. Leciona 'Psicanálise e Cultura' no Programa de Formação para Psicanalistas do CPMG, desde 1990. Integrante da Comissão de Publicação da revista Reverso do CPMG. Delegada do Brasil na International Federation of Psychoanalytic Societies (IFPS). Editora regional para a América do Sul da revista International Forum of Psychoanalysis (IFP), desde 1998. Tem artigos publicados em revistas e livros no Brasil e já editou três números da revista International Forum of Psychoanalysis como editora convidada
IIEspecializada em Psicologia Clínica pela Faculdade de Ciências Humanas da Universidade FUMEC. Titulada psicóloga clínica pelo Conselho Regional de Psicologia - seção Minas Gerais. Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais (CPMG). Coordenadora da Clínica de Psicanálise do CPMG nos períodos de 2005-2007 e 2017-2020. Fez parte da Diretoria no período de 2011-2014

Correspondência

 

 


RESUMO

Leitura psicanalítica do romance de Mário de Andrade Amar, verbo intransitivo, idilio, que trata da iniciação sexual de Carlos, um jovem dos anos 1920, feita pela preceptora alemã Frâulein. A sexualidade é vista como uma produção discursiva que envolve o sujeito e a cultura. A iniciação sexual se dá de acordo com o grupo social e o tempo histórico e é sempre uma reedição do complexo de Édipo. No romance, ao se apaixonar, o casal subverte a ordem esperada, o que torna explícita a interdição paterna.

Palavras-chave: Iniciação sexual, Adolescência, Masculinidade, Feminilidade.


ABSTRACT

Psychoanalytic reading of the novel by Mário de Andrade To love, intransitive verb, idyll, deals with the sexual initiation of Carlos, a young man of the 1920s, made by the German tutor Fräulein. Sexuality is seen as a discursive production that involves the subject and culture. Sexual initiation occurs according to the social group and historical time and is always a reissue of the Oedipus complex. In the romance, when they fall in love, the couple subverts the expected order, which makes paternal interdiction explicit.

Keywords: Sexual initiation, Adolescence, Masculinity, Femininity.


 

 

A sexualidade é uma das dimensões do ser humano que abrange uma complexidade que perpassa gênero, identidade sexual, orientação/preferência sexual, erotismo, envolvimento emocional, fantasias, desejos, crenças, valores, atitudes.

A psicanálise e a literatura dialogam pelos meandros da linguagem, e o sujeito falante é o sujeito do inconsciente. Somos constituídos por palavras. Quanto à sexualidade, se a literatura sempre abordou a questão sexual como tema inesgotável do desenrolar da vida humana, a psicanálise fez do sexo um dos fundamentos do psiquismo.

Dentro da riqueza de visões sobre a sexualidade, um autor como Foucault (1985) considera o sexo como uma produção discursiva, logo uma construção sócio-histórica. Nessa perspectiva, a sexualidade constitui-se muito mais como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos do que como um dado corporal sobre o qual se impõe artificialmente a construção de um gênero.

Assim se justifica falar em sexualidades, no plural, e ter sempre em mente a contínua evolução dos conceitos e comportamentos sexuais através dos tempos. O sexo envolve o sujeito (com a tensão permanente entre o biológico e o psíquico) e a cultura.

A iniciação da vida sexual apresenta-se, então, como uma temática complexa, que varia de acordo com o grupo social e o tempo histórico, que vão definir o controle, as interdições e o período em que a identidade sexual se afirma (Nascimento; Gomes, 2007).

Na contemporaneidade, não há ritos de passagem da adolescência para a maioridade. Tais cerimônias, no entanto, eram comuns entre povos primitivos e ainda são usadas em sociedades mais tradicionais, como entre os judeus, onde os meninos de treze anos fazem sua introdução ao mundo adulto através de um cerimonial bem definido e fortemente valorizado (o chamado bar mitzvá).

Atualmente, essa passagem se dá de forma particularizada, no um a um; cada qual vive também a iniciação sexual a seu modo, sem ter muitos parâmetros rígidos. A permissividade sexual de nossos dias mudou bastante o panorama dessa vivência de iniciação. Hoje rapazes e moças podem vivenciar o sexo de uma forma mais liberada, em que é desnecessária a concorrência de uma figura mais experiente, para inaugurar a experiência sexual de um jovem. Mas ainda é uma forte preocupação dos pais, que veem nesse momento uma afirmação de seu orgulho viril projetado nos filhos.

 

Do ponto de vista de Carlos

No belo livro Amar, verbo intransitivo, Idilio, de Mário de Andrade ([1927] 2013), somos chamados a acompanhar as vicissitudes do adolescente Carlos, com seus quinze anos, recém-saído da puberdade.

Único filho varão de uma família abastada e patriarcal, com mais três irmãs, Carlos constitui uma preocupação para seu pai, que toma a si a responsabilidade de iniciá-lo na vida sexual. O que o pai deseja, ao contratar a preceptora alemã, prática comum em seu grupo social e em sua época, é que ela conduza seu filho com segurança e sem percalços, nos mistérios do sexo. Fräulein [senhorita, em alemão], como é chamada no seu posto de trabalho, deve dar a Carlos lições de amor, verbo intransitivo, sem objeto.

O que nos diz a psicanálise sobre esse momento crítico do desenvolvimento do menino?

Freud propõe a noção de bissexualidade do ser humano, sobre a qual se fundam as hipóteses a respeito da construção da identidade sexual. A diferenciação básica do desenvolvimento sexual vai mostrar o complexo de castração nos meninos e a inveja do pênis nas meninas. Na puberdade, com o desenvolvimento do corpo sexuado, há uma explosão pulsional de caráter genital, calcada nas experiências pré-edípicas, que se encaminha, por meio da resolução edípica em andamento, à escolha de um novo objeto amoroso, que, na verdade, é uma escolha renovada. Agora o objeto da sexualidade infantil é proibido pela barreira contra o incesto. As fantasias incestuosas têm de ser superadas, e o superego tem de ser reelaborado.

Completa-se então, a mais dolorosa experiência da puberdade: o desligamento da autoridade dos pais (Freud, [1905] 1976, p. 234).

Freud considera que o desenvolvimento da masculinidade seja mais fácil e direto, já que o menino

[...] retém o mesmo objeto que catexizou em sua libido - não ainda um objeto genital - durante o período precedente, enquanto estava sendo amamentado e cuidado (Freud, [1925] 1976, p. 310).

Mas, na realidade, isso não parece ser tão fácil assim. No caminho para a assunção de sua masculinidade, o menino vivencia muitas fantasias ameaçadoras à sua integridade viril. Como consequências da angústia de castração para os meninos, dependendo de como foi vivida a sua situação edípica, pode haver um horror diante da mulher, criatura mutilada, ou um desprezo triunfante diante dela.

Segundo Freud ([1925] 1976, p. 314), "[...] esses desfechos, contudo, pertencem ao futuro, embora não muito remoto".

Melanie Klein (1957), entre outros autores, levanta a questão da inveja do menino pelo seio, como uma característica feminina nutridora e amorosa, que se amplia depois para a capacidade de procriar e de gerar bebês.

A dominação masculina gera a subserviência aos padrões culturais de virilidade, força, dureza, resistência, competência física, e muitas vezes esses mesmos padrões criam uma grade intransponível para o me -nino, que, para ser macho, tem de abdicar de sua sensibilidade e de sua ternura.

As condutas extremas do machismo e da homossexualidade podem ser pensadas como defesas complementares e equivalentes, que negam a possibilidade de integração entre o masculino e o feminino de cada sujeito, comprometendo a harmonia interna entre a masculinidade e a feminilidade, que coexistem em todos os seres humanos, ou seja, a bissexualidade que os constitui. Com isso, também se nega a incompletude e a dependência afetiva da condição humana.

Entre os obstáculos que o menino tem que superar está a imagem paradoxal que ele tem das mulheres: por um lado, o temor e a idealização diante do poder da imago da mãe fálica e, por outro, o temor à possível potencialidade feminilizante e o enfraquecimento no contato com o sexo feminino. Nas mulheres são projetadas, alternativamente, imagens de domínio e força, e imagens de desvalimento e debilidade (Vannucchi, 2009). Todos esses sentimentos têm de ser enfrentados pelo jovem que faz sua iniciação sexual.

Segundo Elizabeth Badinter (1993 apud Alizade, 2009, p. 188), "[...] a virilidade não é algo concedido, deve ser construída, fabricada".

Bleichmar (2006 apud Alizade, 2009) fala que a masculinidade é pensada como um ponto de chegada, como algo a ser conquistado na passagem de um pênis fá-lico para um pênis como objeto de ligação.

Como se sabe, a construção de uma identidade, seja de homem, seja de mulher, é produção sintomática da neurose. O sintoma visa suplantar o furo estrutural, tenta produzir uma analogia, impossível, entre real e simbólico.

Voltemos a Carlos, que teve sua iniciação sexual nos anos 1920.

De acordo com o tempo e o grupo social, administra-se a forma como o jovem inaugura e exerce a sua sexualidade. Dentro da estreita grade, já mencionada, que delimita o comportamento dos jovens do sexo masculino, há uma preocupação em observar se os comportamentos expressos se enquadram num padrão de identidade sexual prescrito pelo modelo hegemônico do gênero. Tem de haver uma conciliação entre discursos e práticas.

No imaginário social, de um lado, os pais costumam expressar as expectativas de que os jovens devem se iniciar sexualmente para afirmar sua masculinidade, sua virilidade; de outro, há o campo da interdição que faz com que esses pais não demonstrem, na prática, como ocorre a relação sexual, delegando a outrem esse ensinamento. Isso pode ser feito por jovens mais experientes, profissionais do sexo, mulheres mais velhas.

O pai de Carlos, chefe patriarcal de uma família dos anos 1920, é ele mesmo um exemplo de dupla moral: dentro de casa é o pai e o marido dedicado, mas sai sozinho todas as noites, deixando a 'sagrada' esposa presa no lar, junto com os filhos. Ele quer que seu filho seja também um espécime masculino bem-sucedido, como ele mesmo se considera. Sua condição financeira o abaliza para contratar as lições particulares de amor para seu herdeiro. Toma essa iniciativa em surdina, sem avisar a esposa dona Laura, sem considerar os pedidos de Fräulein para que explicite a situação e sem dizer uma única palavra ao filho, que se vê enredado na sedução encomendada pelo pai.

Fosse o pai um senhor de escravos, entregaria Carlos, o sinhozinho, à sedução de sua mucama. Fosse menos endinheirado, faria vista grossa para o assédio do filho à empregada doméstica, essa que tantas vezes iniciou sexualmente os filhos da casa em que serve. Fosse Carlos um jovem contemporâneo, teria assediado a moça proletária de sua empresa ou escritório, sob a benevolência cúmplice dos mais velhos, ou teria tentado aprender o sexo pela internet, também esta uma forma de amar intransitivamente, segundo o modo atual de se comportar.

Carlos, com as irmãs, especialmente a mais velha, próxima dele em idade, é sempre o machucador, aquele que se chega a ela para um contato corporal mais próximo, mas sempre disfarçado numa certa brutalidade. "Mamãe, olha o Carlos", é a queixa constante da irmã. A conduta agressiva de Carlos mascara o desejo incestuoso de um contato com ela.

A princípio indiferente às enfadonhas aulas de alemão, Carlos vai se interessando cada vez mais por aquela professora cálida e acolhedora, até desejá-la de fato e sentir a explosão de toda a força de sua vigorosa sexualidade adolescente. O que saiu do roteiro traçado pelo pai foi o idílio (subtítulo do livro) que uniu Carlos e Fräulein. Com isso ninguém contava. Fräulein é um objeto amoroso de Carlos, e Carlos também o é para ela. O verbo amar passa a não ser mais intransitivo. Tem, afinal, um objeto. Transitivar-se foi a sua subversão. Os dois amantes causam agora repúdio e aversão ao senhor Sousa Costa (o pai). Ele avisa Carlos de seu contrato com Fräulein, mas este, atônito, não quer acreditar que ela fez o que fez por dinheiro. Carlos se sente amado e revive inconscientemente com a professora o amor pela jovem mãe, que, afinal, se aproxima dele e o aninha novamente em seus braços, para que se esqueça de Fräulein. O primeiro objeto de amor volta à cena. Esse aconchego com a mãe é agora permitido. Esse é, assim, considerado como um mal menor, diante do perigo da mulher estrangeira.

Terão as lições de amor provido Carlos de uma identidade masculina que lhe permitirá se encontrar no amor? Fräulein crê que lhe deu a chave para se resolver bem, através de suas lições. Tanto que Carlos é visto por ela, não sem certo sofrimento, com uma jovem namorada.

Sabemos que a identidade sexual é frágil. As vicissitudes da vida como o casamento, a maternidade, a paternidade, as mudanças corporais que o tempo acarreta estão sempre a nos demandar provas de nossa consistência identitária. Pode-se passar a vida buscando encontrar o outro complementar, que, pelo amor, garantiria a identidade.

Segundo Poli (2007) alguns casais dão provas desse encontro e optam por se assegurar mutuamente até o fim de seus dias. Culturalmente essa é a resposta estética à falta de sentido da vida - castração simbólica - que mais apreciamos.

Terá Carlos conseguido chegar lá?

 

Do ponto de vista de Fräulein

A Fräulein, de Mário de Andrade, acredita no amor. Cultiva a fantasia de que ele não demora a chegar. Mais dois trabalhos ao custo de oito contos de réis cada serão suficientes. Para isso ela trabalha. E como!

Fräulein, ou melhor, Elza, simples assim, sem sobrenome, é uma alemã de trinta e cinco anos. Veio para o Brasil fugida da devastação causada pela Primeira Guerra Mundial. Imigrante, se estabelece na cidade de São Paulo, símbolo de prosperidade da época, onde encontra a melhor possibilidade de juntar dinheiro e voltar ao seu país, local onde pretende constituir um lar feliz. Moça bem apessoada, professora de línguas e de piano, Elza não tem dificuldade em encontrar trabalho nas casas de famílias abastadas. Mas logo descobre outra forma de mestria que lhe trará rentabilidade financeira bem maior. Sua principal atividade passa a ser, então, a de professora de iniciação sexual dos jovens e ricos herdeiros da alta burguesia paulistana. Assim, Elza se torna Fräulein, colocando em suspensão o significante de sua identidade, para resgatá-lo quando puder realizar o sonho acalentado de um ideal de amor, esperando por ela longe dali.

A trajetória de Fräulein carece de decifração para que se encontre um sentido, e à psicanálise, neste momento, recorremos como imprescindível para que possamos ir além da narrativa e do dito nesse idílio. Fräulein não se contenta apenas em ensinar sexo aos seus adolescentes. Ela é arrojada. Deseja ensinar também a linguagem do amor. E o amor pode ser ensinado? Fräulein acredita que sim. E sonha com o seu próprio amor, não encomendado. Um amor sincero, sublime, sem loucuras. Enquanto ele não chega, inicia os jovens.

O desejo de um futuro feliz faz com que Fräulein suporte a dura realidade. Aqui ela tem de achar um jeito de lidar com a impossibilidade de realização desse desejo. Os senhores que contratam seus serviços de preparadora sexual particular de seus filhos querem apenas que eles se iniciem no sexo de maneira segura e higiênica, evitando contatos com a promiscuidade e com possíveis aproveitadoras. Inexperientes, esses jovens correm o risco de ser explorados e manipulados por mulheres desqualificadas. Fräulein insiste em ser reconhecida como professora de línguas e de piano, talvez por se ver submetida ao poder masculino dominante, num mundo onde as esposas são poupadas e mantidas, e as prostitutas são usadas e descartadas.

Freud afirma ([1910] 1976, p. 151):

No amor normal o valor da mulher é aferido por sua integridade sexual, e é reduzido em vista de qualquer aproximação com a característica de ser semelhante à prostituta.

Fräulein não quer ser considerada uma dessas. Insiste em afirmar que exerce uma profissão como outra qualquer. Não se sente interesseira, muito menos aproveitadora. Simplesmente trabalha e faz jus à grande quantia que recebe ao final de cada empreitada.

Assim se justifica perante dona Laura, a mãe de Carlos, quando é interpelada:

Estou no exercício de uma profissão. E tão nobre quanto as outras. É certo que o senhor Sousa Costa me tomou para que viesse ensinar a Carlos o que é o amor e evitar assim os muitos perigos, se ele fosse obrigado a aprender lá fora. Mas não estou aqui apenas como quem se vende, isso é uma vergonha! [...] Se infelizmente não sou nenhuma virgem, também não sou nenhuma perdida. [...] E o amor não é só o que o senhor Sousa Costa pensa. Vim ensinar o amor como deve ser. Isso é que pretendo, pretendia ensinar para Carlos. O amor sincero, elevado, cheio de senso prático, sem loucuras. Hoje, minha senhora, isso está se tornando uma necessidade desde que a filosofia invadiu o terreno do amor! Tudo o que há de pessimismo pela sociedade de agora! Estão se animalizando cada vez mais. Pela influência de Schopenhauer, de Nietzsche... embora sejam alemães. Amor puro, sincero, união inteligente de duas pessoas, compreensão mútua. E um futuro de paz conseguido pela coragem de aceitar o presente. [...] ... É isso que vim ensinar para seu filho, minha senhora! Criar um lar sagrado! Onde é que a gente encontra isso agora? (Andrade, [1927] 2013, p.56).

Na literatura é sabido que cada leitor atribui um sentido particular à obra, a partir de seu olhar único, sustentado pelos recursos internos de que dispõe.

O sentido encontrado no idílio de Mário de Andrade passa pela instigante conduta da protagonista, uma vez que o autor, através dela, nos apresenta uma temática em que a linguagem se manifesta pelo surgimento dos afetos. É na narrativa psicológica dessa história de amor que podemos perceber a sensibilidade com que se conjuga o verbo amar, mesmo que de maneira intransitiva, quase beirando o sublime.

No caso específico do filho do senhor Sousa Costa, surge o inusitado, pois as lições de amor de Fräulein ultrapassam os limites da cartilha impessoal e educativa, passando a ser permeadas pelos sentimentos afetivos. Esse é o momento em que o leitor se encanta e é capturado pela obra, na medida em que cresce a densidade com que Fräulein se entrega de corpo e alma ao que acredita. E Fräulein acredita no amor.

Entretanto, sabe que o sentimento que nutre pelo jovem aprendiz tem de ser transitório e que em breve terá de deixar a mansão dos Sousa Costa. Ciente da dor que a separação causará nela e em seu pupilo, não recua em momento algum, fortalecida pelo sonho de que seu desejo se realizará longe dali.

Sobre a transitoriedade, Freud ([1916] 1976, p. 346), também grande poeta, diz: "Uma flor que dura apenas uma noite, nem por isso nos parece menos bela".

Cabe a nós poder contemplá-la, usufruir de sua beleza e nos encantarmos, mesmo cientes de sua evanescência. Depende de como suportamos a nossa impermanência. O jovem Carlos, por sua vez, inicia sua relação com a professora de modo indiferente, pouco interessado em aprender alemão, mas aos poucos vai sendo envolvido pela atmosfera de sedução, até se apaixonar perdidamente. Sabemos que o amor de um jovem por uma mulher madura remete inevitavelmente às suas vivências edipianas, uma vez que presentifica os sentimentos de ternura decorrentes de uma fixação infantil em sua mãe, escolhendo, na puberdade, um objeto substituto que se torna especial por apresentar algumas características maternas.

Do passado de Fräulein nada sabemos. Entretanto, é Freud quem nos acende a luz, ao considerar a natureza da feminilidade um enigma. Atribui às mulheres um complexo de castração afirmando ainda que a inveja do pênis deixa nelas marcas indeléveis.

Em Contribuições à psicologia do amor, sua escrita é bastante elucidativa:

A descoberta de que é castrada representa um marco decisivo no crescimento da menina. Daí partem três linhas de desenvolvimento possível: uma conduz à inibição sexual ou à neurose, outra à modificação do caráter no sentido de um complexo de masculinidade, a terceira, finalmente, à feminilidade normal (Freud, [1933] 1976, p. 155).

Entretanto, esses três caminhos descritos por Freud não são libertadores para as mulheres, pois nenhum deles oferece a possibilidade de superar o complexo de castração e prescindir do falo.

Com Fräulein não é diferente. Para exercer a mestria do sexo e do amor, ela não pode abrir mão de seu falo. Nesse âmbito, ela detém o poder e o saber. Sua porção masculina se sobrepõe à da mulher que um dia pretende ser. Ela está no comando.

A despedida dos amantes se dá com o desespero de Carlos e com a dor de Fräulein em ter que fazer o corte necessário. Mas é assim que deve ser. Com dignidade, ela o beija na testa e o entrega a dona Laura, sua mãe. Esta, protetora, acolhe o desamparo do filho oferecendo o mundo em seus braços capazes de abrigar, naquele momento, toda a dor do filho amado, agora tornado homem.

O epílogo do idilio é emocionante. Fräulein, já em novo trabalho, passeia de carro pelo corso de carnaval da Avenida Paulista, na companhia de Luís, seu mais recente aluno. Depara-se com Carlos, em outro carro, por sua vez acompanhado de uma rica e bonita moça. Carlos olha, envia-lhe uma educada saudação, num gesto rápido de cabeça. Depois continua a brincar como folião.

Fräulein se doeu, mas logo se recompôs no domínio de si mesma.

E se venceu completamente com o raciocínio, numa espécie de felicidade. Estava certo assim. [...] O mundo é tal como é. A gente tem de aceitar sem revolta. Carlos casará rico. Perfeitamente (Andrade, [1927] 2013, p. 148).

E agora, qual o futuro de Fräulein? Mais dois trabalhos e poderá retornar à terra natal. Será a mulher de um só homem. Alguém digno, paciente, estudioso. Nariz longo, muito fino e bem traçado. Branco como tem de ser. Óculos sem aro, todo vestido de preto, alfinete de ouro na gravata. Ele lhe beijará a testa, pronto para jantar e levá-la para ouvir a Pastoral. Fräulein se tornará Fräu [senhora], mulher respeitada. É assim que sonha, pois sua felicidade está nesse ideal de completude. Para resgatar Elza, Fräulein prescindirá de seu falo, mas diante da impossibilidade de se ver castrada, recorrerá ao homem amado, homem destinado a lhe cobrir a falta.

Será possível, enfim, conjugar o verbo amar de forma transitiva?

Fräulein acredita no amor. φ

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Eliana Rodrigues Pereira Mendes
E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

Marisa de Lima Rodrigues
E-mail: mligues@yahoo.com.br

Recebido em: 10/03/2020
Aprovado em: 03/04/2020

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