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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.79 Belo Horizonte Jan./June 2020

 

PSICANÁLISE E CULTURA

 

Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da psicanálise

 

Transphobia, masculinities and violence from the perspective of psychoanalysis

 

 

Gabrielle Leite RochaI; Hugo Ribeiro LanzaII; Sarug Dagir RibeiroIII

IGraduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais
IIGraduando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais
IIIPsicóloga Clínica. Psicanalista. Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra em Teoria da Literatura - Pós-Lit/UFMG

Correspondência

 

 


RESUMO

Pretendemos discutir a transfobia utilizando a teoria da sedução generalizada e a categoria de códigos tradutivos de Jean Laplanche, bem como a noção de enquadramentos proposta por Judith Butler para entender as posturas violentas de homens contra mulheres transexuais. A partir disso, discutiremos o papel do abalo narcísico das identidades masculinas como uma das possíveis causas psicológicas das violências cometidas por homens cis contra mulheres trans e travestis.

Palavras-chave: Transfobia, Códigos tradutivos, Psicanálise, Abalo identitário.


ABSTRACT

We intend to discuss transphobia using the theory of generalized seduction and Jean Laplanche's category of translational codes, as well as the notion of frameworks proposed by Judith Butler to understand the violent stances of men against transsexual women. Besides, we will discuss the role of narcissistic shuddering of male identities as one of the possible psychological causes of the violence committed by cis men against trans and transvestite women.

Keywords: Transphobia, Translating codes, Psychoanalysis, Identity shaking.


 

 

Introdução

Entendemos que as violências transfóbicas são multideterminadas, agregando reiteradas violações, de caráter físico e simbólico. Dessa forma, visamos abordar, pela psicanálise, pontuações sobre os rudimentos da transfobia. Neste trabalho contextualizamos a transfobia no cenário brasileiro enquanto um dispositivo de violência genocida, que atua sobre a vida de pessoas trans e travestis, que, no enquadramento proposto por Judith Butler (2015), não são vivíveis ou passíveis de luto.

Posteriormente, utilizando da Teoria da Sedução Generalizada, proposta por Jean Laplanche (2003; 2015), situamos a violência transfóbica na origem alteritária dos processos constitutivos do psiquismo. Para isso, analisamos a facilitação tradutiva proporcionada por códigos tradutivos socialmente consolidados, que subjazem às masculinidades e à violência. Sustentamos, então, que a violência é uma manifestação subjetiva e expressiva utilizada por muitos homens quando têm comprometida ou ameaçada a masculinidade ideal. Por fim, a partir dos estudos de Susana Muszkat (2006), pontuamos que os homens, ao se perceberem ameaçados pela percepção que têm das mulheres trans e travestis, podem enxergar na passagem violenta ao ato uma alternativa para fazer cessar suas angústias e se reaproximar de um ideal masculino.

 

Sobre a transexualidade e o transfeminicídio

A população trans e travesti do Brasil é sujeita a estigmas, preconceitos e marginalização. A não conformidade com a cis-heteronormatividade expõe tal população à exclusão social e diferentes formas de violência e violação de direitos fundamentais e constitucionais.

Consideramos a cis-heteronormatividade como uma imposição social de normas de gênero e sexualidade, ocasionando uma padronização das identidades de forma binária e biologizante, na qual aqueles que fogem da cisgeneridade e da heterossexualidade não são reconhecidos (Sousa, 2018)

A transfobia é o dispositivo que produz os preconceitos, a exclusão estrutural, a violação de direitos, os diversos tipos de violência que atingem especificamente pessoas transgêneras, devido ao gênero que performam (Jesus, 2014).

Já o transfeminicídio, o entendemos, a partir de Berenice Bento (2014, p. 1),

[...] como uma política disseminada, intencional e sistemática de eliminação da população trans no Brasil, motivada pelo ódio e nojo.

É importante ressaltar que Jaqueline Gomes de Jesus (2014), a partir do elevado número de assassinatos de transexuais no Brasil e do caráter discriminatório da violência transfóbica, considera que, para compreender o caráter estrutural da transfobia, é preciso concebê-la como uma tentativa de genocídio, além de conceber o transfeminicídio na esfera interpessoal como um crime de ódio.

A tentativa sistemática de eliminação dos corpos trans e travestis ocorre em função da maneira como a sociedade os identifica - ou não.

Em Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?, Butler (2015) trabalha com a ideia de que existem enquadramentos epistemológicos que organizam as experiências sensoriais e ontológicas do sujeito, diferenciando vidas que são reconhecidas e apreendidas daquelas que não o são. A partir desses enquadramentos, existem vidas que são qualificadas como vivíveis e outras que são qualificadas como não vivíveis, além de corpos passíveis de luto e corpos não passíveis de luto.

Segundo a autora,

A capacidade epistemológica de apreender uma vida é parcialmente dependente de que essa vida seja produzida de acordo com normas que caracterizam como uma vida ou, melhor dizendo, como parte da vida (Butler, 2015, p. 16).

Segundo Butler (2015), o que sentimos é condicionado pelo modo como interpretamos o mundo, ou seja, condicionado pelos enquadramentos postos e pelos dados. Assim, sentimos mais horror e repulsa por violências cometidas contra algumas vidas do que por outras: aqueles cuja vida não importa, não geram comoção pública ao serem violados.

Em se tratando de sujeitos cujos corpos são inscritos à margem das normas de gênero e sexualidade, é conferido às trans e aos travestis um status de abjeção. Esse enquadramento denota, assim, vidas que podem ser destruídas, cuja perda não é lamentada, pois nunca foram vividas, ou seja, nunca foram consideradas como uma vida (Butler, 2015).

Dessa maneira, é instituído um genocídio silencioso, que não perturba a percepção da violência, pois esses são corpos que não importam. Consequentemente, não há comoção pública ou distúrbio na percepção da ordem social, apenas manifestações isoladas de luto, quando tanto.

 

Alguns apontamentos psicanalíticos e a Teoria da Sedução Generalizada

Optamos por utilizar a Teoria da Sedução Generalizada, proposta pelo psicanalista francês Jean Laplanche como modelo para problematizar o caráter subjetivo das violências em sua relação com a masculinidade, uma vez que essa teoria acentua o papel da alteridade na constituição subjetiva.

[...] resposta que, certamente subjetiva, adota linguagens culturalmente estabelecidas na tentativa de traduzir enigmas associáveis ao inconsciente sexual, infantil e recalcado (Andrade, 2011, p. 46).

Conforme a teoria laplancheana, está situado na "situação antropológica fundamental" o encontro assimétrico entre o adulto, dotado de seu inconsciente, sexual e recalcado, e a criança (infans), passiva e desprovida de um inconsciente.

Nesse cenário, o adulto, ao cuidar da criança, transmite a ela mensagens que são enigmáticas, tanto para ele, que desconhece que as transmite, quanto para o bebê, vulnerável às mensagens, uma vez que ainda não dispõe de recursos simbólicos e narcísicos para integrá-las (Belo, 2004).

Todavia, o encontro com a criança suscita nos pais algo do sexual infantil, que é anárquico, polimorfo, perverso e, portanto, tal qual um ruído, o inconsciente do adulto se infiltra nas mensagens pré-conscientes-conscientes, interferindo e comprometendo o que é transmitido (Laplanche, 2015).

Portanto, a veiculação da sexualidade no corpo e no psiquismo infantil é necessariamente traumática, uma vez que resulta de um encontro desigual entre um adulto e uma criança em situação de extrema passividade em relação ao mundo externo (Bacelete; Ribeiro, 2016).

Enquanto trauma, a mensagem enigmática endereçada ao infante se consolida em dois tempos,

[...] no primeiro tempo a mensagem é simplesmente inscrita, ou implantada, sem ser compreendida (Laplanche, 2003, p. 407).

Em um segundo momento, essa mensagem

[...] é revivificada do interior. Ela age como um corpo estranho interno que é preciso a todo preço integrar, controlar (Laplanche, 2003, p. 95).

Ou seja, da operação inevitavelmente falha de tradução, sobram 'restos', excitações não traduzidas e não ligadas pelo ego incipiente da criança, que compõem o objeto-fonte da pulsão (Belo, 2004), que passa a operar como um corpo estrangeiro interno e a atacar o ego (Bacelete; Ribeiro, 2016).

Segundo Laplanche (2015), as principais mensagens desse tipo são as mensagens de designação de gênero, que consistem em

[...] um conjunto complexo de atos que se prolongam na linguagem e nos comportamentos significativos do entorno. Poder-se falar de uma designação contínua ou de uma prescrição (Laplanche, 2015, p.123).

A criança, nesse processo, ocupa também uma posição passiva, ou seja, passa por um processo de identificação no qual é identificada pelo adulto como pertencente a um gênero. Esse giro em direção à primazia da alteridade é fundamental para a compreensão dos códigos propostos pela cultura, como aqueles relativos à performance de um dado gênero, pois

[...] nos primórdios da vida psíquica, o verbo identificar não pode ser usado na voz reflexiva eu me identifico, mas antes na voz passiva eu sou identificado: são os adultos com os quais a criança convive que designam e definem seu gênero (Lattanzio, 2011, p. 64).

 

Os códigos tradutivos e as normas de gênero

Em seus esforços de tradução das mensagens emitidas de adultos, a criança encontra apoio nos códigos que estão disponíveis para ela na cultura, o que Laplanche (2003, apudFERREiRA, 2012, p. 3) define como universo do mito simbólico. Esses códigos configuram para a criança uma ajuda para a tradução da tarefa de conter, de simbolizar as mensagens do adulto.

Tomando esse caminho predefinido pela cultura, o Eu e o narcisismo da criança são:

[...] formados a partir da erotização originária inconsciente e dos códigos de tradução que lhe advêm do adulto, algo a que a criança se apega em face de seu desamparo perante o pulsional. Isso gera o apego apaixonado às normas, à sujeição, aos códigos que orientam as traduções constitutivas do sujeito, que permitem seu aparecimento (Lima; Belo, 2018, p. 10).

Os códigos tradutivos são impregnados pela sexualidade inconsciente dos adultos, uma vez que, no encontro com a criança, os adultos têm a própria sexualidade infantil reativada (Laplanche, 2015).

O processo em questão é, portanto,

[...] sujeito a diversas vicissitudes, impondo à criança um trabalho de simbolização do excesso que lhe chega (Lattanzio, 2011, p. 64-65).

A codificação do gênero geralmente segue a cis-heteronormatividade, gerando dois polos: masculino-feminino, relacionados à noção de atividade-passividade e correlatos à lógica de simbolização (Lima; Bedê; Belo, 2017).

Se observarmos as condutas violentas e transfóbicas dentro desse paradigma, podemos localizar a dimensão defensiva de tais posturas. Frente aos enigmas da alteridade e aos ataques internos ao Eu, o homem, em postura ativa, pode recorrer à violência,

[...] entendida aqui como todo ato em que haja o intencional abuso de força para subjugar, humilhar ou mesmo eliminar outra(s) pessoa(s) na relação de poder estabelecida socialmente (Andrade, 2011, p. 47).

O desejo pulsante de clamar para si o poder da atividade e fazer o outro se submeter, aparece no retorno daquilo que foi recalcado pelo agressor em sua vida. Ressaltamos a ligação entre a conduta violenta e o interesse do Eu em obter segurança total em relação aos ataques de seu inconsciente, projetados sobre a figura do objeto externo:

A violência é, por definição, como bem aponta Laplanche (1994), um fenômeno estritamente humano, já que potencialmente carregado de significados de natureza sexual: "ela está ligada às fantasias sexuais que habitam nosso inconsciente [...]". Luís Maia (1991, 1993), na esteira de Laplanche, desenvolveu a tese de que, na violência, o traço sexual tem uma conformação que, além de sádica, pode ser também (senão primariamente) narcísica: o desejo de autonomia em relação à alteridade, o desejo de autossuficiência está na raiz da violência, a qual nega a dependência em relação aos outros que são submetidos ou destruídos (Andrade, 2011, p. 47).

Fundamentalmente, a violência pode ser mais compreendida em sua relação com o sexual implantado pela alteridade, pois:

[...] essa concepção nos faz pensar que o desamparo original que experimentamos pode nos levar a participar de práticas de crueldade (Bacelete, Ribeiro, 2016, p. 95).

E a passagem ao ato do agressor frente à vítima pode ser apreendida como uma solução precária e cruel, que toma para si a atividade frente às ameaças de, por algum motivo, se situar no polo oposto, o da passividade, o que o faria tencionar a própria identidade, se aproximar de seu desamparo originário, sua passividade radical. A angústia experimentada é relativa ao que lhe é estranho, o outro. Embora projetados na vítima, os ataques sentidos pelo Eu advêm do que lhe é interno, do pulsional implantado pelo outro na situação antropológica fundamental.

 

Sobre as masculinidades e a violência

As relações de gênero são trocas simbólicas, nas quais há preponderância masculina sobre o feminino, configurando uma dominação masculina nas relações de gênero, sendo o homem detentor de poder simbólico. Podemos, então, entender a masculinidade como uma produção prática de símbolos e discursos em torno da posição dos homens nas relações (Connel; Messerschmidt, 2013).

As masculinidades são pautadas por ações reais e concretas, com um sentido definido, dentro dos mais diversos âmbitos da sociedade e suas instituições, como a família, a igreja, o trabalho, a escola, entre outros. Por ser um construto social, estão inscritas em contextos específicos: são produzidas a partir de um contexto histórico, cultural e social, fazendo sentido em tempos e espaços geográficos determinados.

Os estudos sobre as masculinidades comumente demonstram a existência de diversas hierarquias masculinas, que são pautadas por marcadores como classe, raça e sexualidade, considerando que as masculinidades permeiam múltiplas relações de poder.

A partir de nossa leitura de Connel e Masserschmidt (2013) e Silva (2014), entendemos a masculinidade hegemônica como aquela que pauta uma forma normativa de exercer os papéis do gênero masculino, no topo das hierarquias do gênero, subordinando não somente as feminilidades, mas também as masculinidades subalternas.

A relação entre violência e a formação da subjetividade masculina tem sido apontada desde o início dos estudos das masculinidades. As assimetrias das relações de gênero configuram narrativas em que a submissão da mulher e as dominações masculinas correspondem à dinâmica de poder pleiteada. Essas relações são estruturais, ou seja, constituem o tecido social e pautam todas as relações sociais, e o patriarcado, portanto.

A produção de práticas discursivas pelos homens, a partir das masculinidades, implica uma negação de tudo aquilo que se afasta da postura hegemônica masculina reiterada pela cultura e aproxima as masculinidades subalternas das feminilidades. A violência é muitas vezes utilizada, pelos homens, como uma manifestação subjetiva.

Sendo assim, o sentido da violência de gênero praticada pelo homem é a reafirmação de sua preponderância na sociedade: demarcando sua dominação sobre as mulheres, sua superioridade diante de outros homens e reafirmação de sua virilidade (Silva, 2014, p. 2811).

 

Abalo narcísico

Resultante do conflito violento entre a passividade e a atividade, e a revivescência do traumatismo da veiculação do sexual adulto, podemos situar no campo de defesas do Eu uma insurgência contra o abalo narcísico sofrido pelo homem frente aos corpos trans e travestis.

Em seu trabalho com homens autores de violência doméstica, a psicanalista Susana Muszkat (2006) identificou que eles recorriam à violência, pois sentiam um abalo narcísico de sua identidade masculina, considerando que a masculinidade hegemônica permite papéis de gênero pouco flexíveis. Quando esses homens exercem papéis que não condizem com o padrão de masculinidade - ou seja, há uma contradição entre um ideal de homem, marido, provedor e/ou pai e o real experienciado -, eles têm abaladas sua identidade e a própria noção de existência enquanto homens. Há, portanto, o que a autora denomina por abalo identitário.

Homens que não mais se viam como provedores financeiros da família ou cujas companheiras não correspondiam ao padrão de feminilidade que idealizavam, são exemplos de homens que Muszkat (2006) identificou sofrerem desse abalo identitário, que ameaça a integridade do Eu desses sujeitos. A partir da necessidade de autopreservação, o homem pode recorrer à violência, fundamentada como comportamento legítimo dentro do esquema narrativo das masculinidades, como ferramenta de defesa.

Em Silva (2014) a violência de gênero cometida por homens pode ser entendida como uma resposta imediata, ou algum tipo de lição, a um outro que põe em questão sua autoridade masculina ou incita um prejuízo à sua masculinidade. Assim, há sentimentos de humilhação e ofensa quando homens se veem distantes do ideal de masculinidade, quando têm seu ideal do Eu abalado. Portanto, a violência de gênero praticada é uma tentativa de preservar esse ideal abalado e afirmar uma identidade pautada na masculinidade hegemônica.

Deste prisma, o ato violento praticado, tem como finalidade principal a preservação narcísica do ego, sendo a destruição do outro consequência e não o objetivo que leva ao ato (Muszkat, 2006, p. 171).

Dito isso, é possível pensar a violência transfóbica como sendo operada por semelhantes mecanismos de defesa de um Eu comprometido nesses homens. Como o transfeminicídio é a máxima da violência transfóbica, é possível considerar que o agressor possui um forte abalo identitário, um grande afastamento da experiência real de sua masculinidade de seu ideal do Eu. Diante de corpos cujas experiências são discordantes da cis-heteronormatividade, existem sujeitos que entendem que a própria identidade enquanto cisgêneros e heterossexuais está comprometida.

Além disso, as experiências diversas de gênero e sexualidade evidenciam que as identidades rígidas e binárias não são dadas e nem naturais: são artificiais. A partir da cis-heteronormatividade, é produzido sobre os corpos um discurso que entende que há uma relação natural entre sexo e gênero, legitimando a existência de dois gêneros: homem e mulher. Essa produção discursiva binariza os dois gêneros, sinalizando a existência de diferenças inatas e antagônicas entre ser homem e ser mulher, hierarquizando-as (Bento; Pelucio, 2012, p. 575).

Entretanto, esse discurso é produzido, já que o binarismo de gênero é uma construção histórica. Assim, é possível entender que tais práticas discursivas em torno do gênero são artificiais e existem "[...] múltiplas possibilidades de experiências e práticas de gênero" (Bento; Pelucio, 2012, p. 576).

A partir do conceito de abalo identitário, entendemos que, frente a corpos que rompem com a cis-heteronormatividade com experiências dissidentes de gênero, possíveis agressores têm seu Eu comprometido. Esse comprometimento pode se dar a partir da exposição de que a relação entre gênero e sexo não é natural e que o gênero é uma artificialidade. Portanto, o próprio gênero de um agressor não é natural, é também um construto, uma produção discursiva, de tal modo que é passível de desconstrução e modificação.

 

Conclusão

Em suma, devido à carência na literatura acadêmica, sobretudo psicanalítica, sobre a transfobia e o transfeminicídio, os apontamentos e as hipóteses por nós levantadas carecem de estudos mais aprofundados. Os processos intrapsíquicos relacionados ao ato transfóbico são múltiplos, de modo que é possível estabelecer diversas relações e explicações, não só para a existência, mas também para a manutenção dessa violência.

A partir dos estudos de Muszkat (2006), entendemos que os tensionamentos entre o Eu e as masculinidades são pontos fundamentais para a compreensão desse fenômeno.

É a ausência de flexibilidade das normas sexuais que incita a violência transfóbica. Butler (2015) entende que as vidas que representam uma ameaça à própria vida, ou ao próprio Eu são vidas que não incitam comoção.

Por fim, se o gênero e a sexualidade experienciadas de modo dissidente pela população trans e travestis configuram uma ameaça à integridade do Eu de um sujeito transfóbico, essas vidas são consideradas como não passíveis de luto e, portanto, passíveis de destruição. A violência é aplicada, com legitimação social, de modo seletivo. φ

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Gabrielle Leite Rocha
E-mail: gabrielleleiterocha@gmail.com

Hugo Ribeiro Lanza
E-mail: hugo.rlanza@gmail.com

Sarug Dagir Ribeiro
E-mail: sdagir@gmail.com

Recebido em: 20/02/2020
Aprovado em: 03/04/2020

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