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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.80 Belo Horizonte Jul./Dec. 2020

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Ana Boczar

 

 

Tal como Gregor Samsa, personagem de Franz Kafka, que acorda de seus sonhos intranquilos metamorfoseado em uma barata, cá estamos nós encapsulados em "cocoons" e diante de telas, atravessando tempos pandêmicos.

Inevitavelmente, deparamo-nos, enquanto analistas, com sujeitos e seus dialetos próprios, frente ao mal-estar na cultura, que, para além de estrutural, agora se apresenta como um desafio cotidiano: há uma nova territorialização de espaços ora permitidos, ora proibidos, além do impedimento de certas formas de expressão dos afetos, um cálculo da distância necessária entre os indivíduos e uma incerteza quanto ao retorno ao modus vivendi social, habitual.

Nossa Reverso n. 80 apresenta, entre outros temas, algumas interlocuções com esses enigmas.

Sofia Veiga, Helena Lopes e Daniel Figueiredo, autores convidados, nos apresentam uma reflexão sobre o sujeito na contemporaneidade, com os múltiplos desafios que emergem daí, ressaltando que é "em relação" que o sujeito pode existir. Nesse sentido, a dimensão do afeto torna-se essencial. Autores como Bauman e Lipovetsky dialogam, entre outros, com o artigo.

Frente a esse cenário, encontramos alguns artigos que nos apresentam tessituras clínicas reinventadas, como o artigo Psicanálise online com crianças, práxis apresentada de forma criativa por Maria Carolina Bellico. Ainda nessa direção, contamos com Guilherme Henderson, Janaína Silva e Ricardo Coe, que apresentam reflexões sobre impasses em torno da análise à distância.

Juliana Caldeira, de forma particular e criativa, fala do inominável que vivemos nestes tempos, confrontando-nos com o luto, a falta e um imperativo de construção na travessia da singularidade ao laço social.

De forma muito clara, Eliane Mussel nos apresenta, a partir do Seminário 3: As psicoses, de Lacan, e de sua vasta experiência clínica com psicóticos, o Real como causa constitutiva do sujeito e a linguagem como indicação inaugural de toda possibilidade de constituição subjetiva, assim como sua especificidade na psicose, pela "extinção do efeito de significação". Várias referências instigantes aos tempos pandêmicos enriquecem uma reflexão sobre sua interseção com o Real.

Marília Brandão nos fala de características dos sonhos e do luto frente aos impactos da pandemia na vida psíquica. O manejo da angústia nestes tempos permeia seu artigo, que apresenta uma interlocução rica com referências literárias e de outros campos do saber.

Ainda na interface teoria e clínica psicanalítica, encontramos a temática da repetição em Freud e Lacan, em que Arlindo Pimenta propõe caminhos paralelos na obra desses autores. O artigo faz um paralelo importante entre o Além do princípio de prazer em Freud, a viragem lacaniana operada no Seminário 11, e articulações posteriores com o conceito de "Coisa".

O enfrentamento da homofobia por jovens e adolescentes é a temática eleita por Paulo Ceccarelli e Roberto Santana Júnior. Os autores trazem uma análise histórico conceitual da problemática em questão e a forma como a intolerância é travestida em brincadeiras vividas precocemente no cotidiano.

Ao fazer uma interseção entre psicanálise e arte, Anchyses Jobim faz uma referência ao filme de Fellini La dolce vita, destacando uma articulação com a "Coisa", apresentada por Lacan em seus seminários, e com O estranho [Unheimlich], descrito por Freud.

Bernardo Maranhão e Guilherme Massara, com uma abordagem sensível e criativa, tomam o "inconsciente como um mistério do corpo falante", tal qual proposto por Lacan em seu Seminário 20: Mais ainda e trilham a sustentação de uma continuidade entre fala e canto.

A umbanda, religião afro-brasileira, ganha uma apreciação psicanalítica com base nos escritos de Freud dedicados à cultura, discurso em que Thiago Martins procura situá-la.

Por último, mas não menos importante, Juliette Cerf, a partir de uma entrevista com Elisabeth Roudinesco, apresenta um Freud nutrido por um olhar sobre a sociedade, numa interlocução sobre o destino da espécie humana e toda a sua virulência, que permanece como inquietação constante.

De fato, o konstant kraft, a força constante pulsional, reaparece a todo momento em tempos tão enigmáticos quanto inquietantes, trazendo-nos o furor da peste psicanalítica como propulsora de nosso trabalho!

Boa leitura!

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