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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.42 no.80 Belo Horizonte Jul./Dec. 2020

 

AUTORES CONVIDADOS

 

Crio porque existo, existo porque fui amado. Vazio e criatividade na contemporaneidade1,2

 

 

Sofia VeigaI; Helena LopesII; Daniel FigueiredoIII

IDoutorada em Psicologia. Sócia didata da Sociedade Portuguesa de Psicodrama. Membro efetivo e formanda do 4.º ano da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica. E-mail: sofiaveiga@ese.ipp.pt
IILicenciada em Psicologia. Doutorada em Ciências da Educação. Membro efetivo e formanda do 4.º ano da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica. Email: hlopes@fe.up.pt
IIILicenciado em Psicologia. Membro efetivo e formando do 4.º ano da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica. Email: daniel_figueiredo@live.com.pt

 

 


RESUMO

O trabalho em apreço pretende fazer uma incursão reflexiva sobre o Homem na contemporaneidade. Decorrente dos múltiplos e variados desafios e oportunidades que esta Era faz emergir, descobrem-se novas configurações do sofrimento mental, que exigem respostas consentâneas com as (novas) necessidades vivenciadas. O legado de Coimbra de Matos evidencia a importância do afeto e da relação na vida do sujeito, resgatando-o de uma existência sem sentido, de uma existência vazia. Só em relação o sujeito pode existir, ser e criar.

Palavras-chave: Vazio, Contemporaneidade, Relação, Afetividade, Criatividade.


ABSTRACT

The work in question intends to make a reflexive incursion on Man in contemporary times. Due to the multiple and varied challenges and opportunities that this Age brings to light, new configurations of mental suffering are discovered, which demand responses in line to the (new) needs experienced. Coimbra de Matos' legacy highlights the importance of affection and relationship in the subject's life, rescuing him from a meaningless existence, from an empty existence. Only in relation to the subject can there be, be and create.

Keywords: Emptiness, Contemporaneity, Relationship, Affection, Creativity.


 

 

Introdução

O presente trabalho foi apresentado no Dia Aberto da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica. Tendo por pano de fundo o tema Vazio e criação na contemporaneidade, o encontro teve como intuito ainda, nas intervenções realizadas, homenagear o Dr. Coimbra de Matos, psiquiatra, pedopsiquiatra e psicanalista, reconhecido pela sua vasta obra, pelo seu pensamento e prática profissional (clínica e de docência) de excelência na área da saúde mental em Portugal.

A incursão inicia-se com uma síntese reflexiva sobre o Homem atual e o seu lugar na contemporaneidade. Emerge, desde logo, a ideia de uma "modernidade líquida", pautada pelos narcisismos e identidades públicos, por uma disponibilidade e abundância aparentes, as quais se contrapõem a um vazio existencial, a uma ausência do desejo.

Nesse enquadramento - e na conjuntura de um mundo globalizado, com múltiplos e variados ruídos, estímulos e desafios, urge pensar e compreender o (sofrimento do) Homem, bem como (re)equacionar (novas) respostas (e mais espontâneas) que façam face às necessidades atuais.

O pensamento e a obra de António Coimbra de Matos pontuam de forma indelével a importância da relação e do afeto na vida do sujeito da atualidade, pois considera que este só pode existir, ser e criar na e através da relação. Assim se percebe que, enquanto psicanalista, dê primazia à (qualidade da) relação terapêutica, uma relação que descreve de "intimidade implícita partilhada", que permite a expansão do pensamento, da atividade construtiva e criativa.

 

O homem e o seu lugar na contemporaneidade

Pensar (n)o vazio e (n)a criatividade na contemporaneidade conduz-nos a uma reflexão acerca do Homem e do seu lugar, no que Bauman (1998) designa de modernidade líquida, Lipovetsky (2005) de hipermodernidade ou era do vazio, Nery (2013) e Gravanita (2015), entre outros, de pós-modernidade.

Independentemente das nuances conceptuais acima referidas, é relativamente consensual considerar-se que esta contemporaneidade emerge das transformações decorrentes de uma realidade globalizada, de fronteiras ténues, marcada pela massificação da tecnologia, pelo domínio dos media, pelo consumo, pelas influências e vivências efémeras e vorazes.

A realidade histórica contemporânea indica que a condição de permanência, certeza e continuidade do indivíduo são condições que se desmancham no ar, com o aprofundamento da modernidade tardia em tempos pós-modernos (Mendes, 2017, p. 5).

Assiste-se, assim, a uma volatilidade constante, consequente de mudanças permanentes e acontecimentos imprevisíveis que ocorrem à escala global (como a pandemia Covid-19 que estamos a vivenciar), emergindo, neste enquadramento, um sujeito de fluxos e (des)ajustamentos constantes, de intensidade e de exposição mediática permanente.

Nos dias de hoje, e sobretudo no mundo ocidental, tudo funciona pelo excesso e não pela falta. Tudo está disponível. Essa aparente disponibilidade de tudo leva à instalação, na vida do sujeito, de uma ausência primordial, o móbil para o desenvolvimento e para a vida, a ausência do desejo. É a época da ausência da ausência.

Não obstante a (aparente) abundância, a pós-modernidade é também o tempo do obsoleto contínuo e do descartável, assistindo-se a uma

[...] dilatação do presente, sem passado e sem futuro o que torna qualquer impacto efémero sem tempo para ser absorvido (Gravanita, 2015, p. 2).

Essa obsolescência condiciona o estabelecimento de identidades, laços e culturas, tendo-se aparentemente tornado obsoletos também os limites éticos, sendo os valores morais substituídos pela busca da maximização dos resultados e pelo culto do sucesso (Gravanita, 2015).

Coimbra de Matos (2016) evidencia ainda o tempo atual como um tempo sendo pautado pelo primado do prazer.

À era da histeria/recato e repressão da sexualidade seguiu-se a era do gozo /make love not war, défendu défendre. Foi o império da moral e o império dos sentidos.

Vem mais tarde o "amor líquido", sem consistência:

[...] O amor líquido escoa-se por entre os dedos - não deixa rastro nem produz sonhos (Bauman, 2004, p. 318-319).

Vivemos na era do narcisismo público e das identidades públicas: "Eu não existo se não for publicamente acedido e anunciado em permanência". Tudo se projeta na ideia de um sujeito de sucesso. Percebe-se, assim, que a fama e a exposição, que são efémeras, tal como a tecnologia, são as drogas da vida moderna.

Os écrans são as janelas para o mundo onde se aparece, a possibilidade de exclusão do palco ou dos écrans móveis e fixos não implica um sentimento de falta de objeto, mas a imagem de si projetada onde o anonimato das massas da modernidade dá lugar ao protagonismo efémero, bizarro ou singular (Gravanita, 2015, p. 2).

Vive-se num mundo globalizado, mas com falta de vínculos, numa escravatura virtual de corresponder a um ideal, de preencher um vazio. Nesta sociedade, onde tudo fica mediatizado - a que Débord denominou de "sociedade do espetáculo" e Lasch de "cultura do narcisismo" (Birman, 1998) - instalam-se o individualismo, a omnipotencia e a ilusão de controlo infantil.

O indivíduo fica ou instala-se na incapacidade de sonhar, de imaginar uma relação objetal, de construir uma narrativa amorosa (Coimbra de Matos, 2006, p. 176).

Um sujeito assim, desprovido de inter-subjetividade, desvela-se frágil e omnipotente, de um Eu fragmentado, com falta de profundidade e de estruturação. É um nómada, salta de um perfil para o outro. É um sujeito sem limites e sem formas.

A fragilidade [deste sujeito] foi tomando direção para uma busca infinita de satisfações de desejos incentivada pelo consumo de massa e os meios de comunicação. Com efeito, o vazio e o deserto passaram a ser estratégias das sociedades livres. Quanto mais vazio, mais desejo; quanto mais escolhas, mais liberdades. A loucura hipermoderna plasma em conjunto o vazio e o excesso, a era paradoxal (Cruz, 2013,p.82).

Esse mal-estar do sujeito pós-moderno, que Levisky (2014, p. 425) relaciona com a fragilidade do símbolo (também ele transitório),

[...] é um sofrimento existencial com a forma de subjetividade da época. É uma forma de ser. No plano da psicopatologia encontramos: o sofrimento ligado à experiencia de vazio, de falta de sentido e de tédio existencial; atuações, nas quais a violencia pulsional permeia as relações intersubjetivas.

Assiste-se e vive-se, de acordo com Coimbra de Matos, a um excesso de informação que nos invade a um ritmo acelerado e sem tempo para reflexão/integração. Ruido de fundo, fonte de sobrecarga, confusão, insegurança e indecisão.

Não serve para pensar, só para encher o pote dos pensamentos já feitos. É o pronto a pensar; e não pensamento pensante (Coimbra de Matos, 2016, p. 320).

Não obstante, esta Era oferece igualmente oportunidades e potencialidades. Estas, sendo deveras importantes na realidade e nos contextos de vida dos sujeitos, tendem a ser negligenciadas, mas não esquecidas na sua totalidade pela literatura científica sobre a pós-modernidade.

Lipovetsky (2005 citado por Cruz, 2013) salienta que o pós-modernismo potencia um retorno, uma harmonia entre todos os estilos, uma "coabitação", até com movimentos extremistas e em todos os campos do conhecimento. Não admite, por isso, (mais) nenhuma forma de aprisionamento dos saberes.

Enquanto o pós-modernismo é inclusivo, o modernismo é de caráter exclusivo. O que este recusou, agora é reabilitado numa época de convivências e tolerâncias, coexistindo tradição e modernidade.

Concomitantemente, Maldonato (2014, p. 63) afirma que

[...] novas imagens do homem tomam o lugar das tradicionais descrições da identidade. O eu compacto e unitário dá lugar a um campo de forças anárquico e múltiplo. Finda uma época. E, como ocorre nas grandes passagens de tempo, à excepcionalidade das transformações corresponde a excepcionalidade das linguagens.

Ao desconstruir as conceções tradicionais de uma identidade unitária e coesa, tão cartesianamente ordenada, enfatiza-se a multiplicidade de experiências e realidades que a linguagem, a representação e o pensamento não podem conter. Na distância intangível entre o significante e o significado, o Homem afirma-se como um nómada criador, em recorrente contradição e conflito consigo mesmo.

Nesta sociedade mais liberal, a diversidade de possibilidades identificatórias expande-se e com ela surgem novas oportunidades de inclusão. Gera-se um clima psicológico e social de integração e de maiores possibilidades de aceitação de si mesmo, do outro, da diferença e da diversidade (Levisky, 2014).

Cruz (2013) refere mesmo uma tendência à humanização ou "personalização" da sociedade atual, na qual as "estruturas fluídas" da pós-modernidade são voltadas e moduladas em função da pessoa e das suas necessidades, passando a primar-se mais pela qualidade de vida, o bem-estar e o desenvolvimento do indivíduo em todas as dimensões que lhe sejam significativas.

Até mesmo o consumo, possibilitando ao sujeito múltiplas opções, permite a emergência de indivíduos mais consentâneos com as suas necessidades e escolhas, mais realizados e mais aceitantes, o que potencia o desenvolvimento da singularização (Lipovetsky 2005 citado por Cruz, 2013).

No mesmo sentido, Coimbra de Matos (2016) salienta que se assiste a uma maior valorização do individuo e das suas potencialidades, quer na família, quer na sociedade, com um maior investimento no seu desenvolvimento, na sua formação e no seu bem-estar.

Com um enquadramento mais livre e aceitante e facilitador da construção de identidades e diversidades, surgem novas gerações de homens cosmopolitas - abertos à experiência, mais empoderados, com um acesso facilitado/seletivo à informação. Um Homem livre que procura e se (se) questiona, que ousa questionar limites e regras estabelecidos e redescobrir-se continuamente.

Nessa conjuntura, de desafios e oportunidades múltiplos e constantes, urge (re)equacionar, pensar e compreender o (sofrimento do) Homem pós-moderno, perspetivando novas respostas e novas culturas...

Sobretudo de uma

[...] Cultura de respeito e consideração por tudo o que existe - "todos os seres e todas as coisas", como dizia Leonardo Coimbra [...] Uma cultura de proteção e conservação, convivialidade e biofilia - uma revolução do afeto e pelo afeto (Coimbra de Matos, 2007, p. 123).

 

O pensamento de Coimbra de Matos sobre os desafios da contemporaneidade

A importância do afeto na vida pontua de forma indelével o pensamento e a obra de António Coimbra de Matos, pois só o afeto pode resgatar o sujeito da atualidade de uma existência sem sentido, superficial, fugaz, frenética, coisificada. No limite, de uma existência sem mentalização, de uma existência falhada.

Não tendo recebido amor, o individuo não vive a experiência fundamental de ser amado. Experiência fundamental e fundadora; sem ela, não há movimento de expansão a que chamamos mente - criação contínua. Deveras, ter mente é criar (Coimbra de Matos, 2006, p. 35).

Só na relação amorosa e no estar com o outro, o sujeito pode existir, ser e criar.

Por isso, a verdadeira criação é a criação a dois, cocriação, coconstrução. Criamos - e só verdadeiramente criamos - na relação com o objecto, externo ou interno, sobretudo com este. Só é criador quem atingiu a constância do sujeito no interior do objecto (primeiro passo da existência psicológica) [existo porque fui amado.] (Coimbra de Matos, 2006, p. 11).

Percebe-se, assim, que, para o autor, uma teoria da mente e do ato criativo seja indissociável de uma teoria do amor, pois só se ama o que importa, o que abraça e ameiga. Assim, ama-se o que nos ama e na justa medida em que fomos amados. "O amor é portanto um ato reflexo - e refletido" (Coimbra de Matos, 2006, p. 53). Decorre de se ser amado, na sua singularidade e originalidade, e disso tomar consciência.

E se somos o que de nós fizeram, como se costuma dizer, somos também, e principalmente, o que fizemos com aquilo que quiseram que nós fôssemos; pois somos seres desejantes, intencionais, autopoiéticos e responsáveis (Coimbra de Matos, 2006, p.129).

Assim, só uma vida emocionalmente rica, vivida numa relação de complementaridade não saturada, permite a expansão do pensamento - particularmente do pensamento intuitivo -, bem como da atividade construtiva e criativa. "É com amor e sonho, partilha e esperança que se cresce e cria [...]" (Coimbra de Matos, 2007, p. 54), viabilizando a descoberta do novo, a exploração de outros territórios, a edificação de ideias diferentes e alternativas, e o vislumbre de factos psíquicos até então não acedidos.

Não obstante, para Coimbra de Matos (2007, p. 121):

[...] a criação não emerge do zero, mas do negativo - ainda que mínimo, pois de contrário gera- se o bloqueio ou a desistência. "Amor, amor, é no teu discreto desamor que o meu melhor amor germina" - cantaria o poeta. Com efeito, como se pode querer criar algo quando está tudo certo?

Mas estará tudo certo na vida e na existência do sujeito da atualidade? Não. Ela é inundada de múltiplos (e tantas vezes excessivos) ruídos, estímulos e desafios, que abafam e confundem pensamentos, emoções, e deixam latente uma demanda de autoria e diferenciação.

Como diz Coimbra de Matos (2007, p. 160):

[...] Ensina-me a ser gente, sentir as minhas emoções, ter sentimentos, pensar os meus pensamentos, ter pensamento; ser sujeito, reconhecer-me como alguém em devir - com subjetividade, intencionalidade, projeto, esperança e entusiasmo.

A (re)criação de relações sanígenas que possibilitem um saudável desenvolvimento e crescimento é um desafio particularmente vivenciado por pais e educadores, enquanto cuidadores primeiros e centrais da vida dos indivíduos. Todavia, quando essas relações em algum momento e/ou ao longo da vida foram ou são emocionalmente pobres, tóxicas e/ou vazias, uma ajuda profissional especializada revela-se essencial para resgatar o sujeito em (risco de) sofrimento psíquico.

 

...e a sua forma de ver e estar na psicanálise

A psicanálise e a psicoterapia de orientação psicodinâmica surgem como possibilidades in(ter)ventivas, já que são terapias que se sustentam na e pela relação, oferecendo-se o terapeuta como um novo objeto desenvolvimental, com o qual o sujeito se pode investigar e investir, abrirse ao sonho para renascer e crescer de outra forma.

Pese embora a contemporaneidade permita uma maior liberdade e atenção à singularidade e ao bem-estar, os paradoxos e os desafios já descritos, levam a que muitos indivíduos se sintam vazios, perdidos, com falta de vínculos e de referências perenes, apresentando um Eu fragmentado, com falta de profundidade e de estrutura. As intervenções psicanalíticas podem dar visibilidade e expressão ao sofrimento do sujeito da atualidade, e responder às necessidades desse individuo complexo, frágil e omnipotente, escravo de ideais e de uma existência virtual.

De acordo com Coimbra de Matos (2007, p. 147), essas abordagens terapêuticas se encontram ancoradas na

[...] ideia de libertação e liberdade. Libertação das peias da repressão, liberdade de expressão e de assunção do desejo. Liberdade, sobretudo, de pensar. Liberdade também de agir, tendo como limite a liberdade dos outros e a destruição.

Sendo uma "arte no seu que-fazer/saber fazer criativo e criador" (Coimbra de Matos, 2007, p. 15), as abordagens supramencionadas permitem que a pessoa se torne mais livre, mais responsável, aberta ao sonho-projeto, criativa e empreendedora.

Nesse processo transformador, que é coconstruído, a abertura, a honestidade e a curiosidade - do terapeuta e do sujeito -permitem que a díade se lance no círculo virtuoso do sonho, do pensamento, da descoberta, da esperança, da aceitação, da criação simbólica (Coimbra de Matos, 2006; 2007; 2012).

E são o sonho e a criação - ancorados numa relação de amor oblativo - que permitem a emergência de uma nova existência, fruto da contratransferência, da sensibilidade, da disponibilidade interna, da empatia, da escuta ativa, da responsividade... Enfim, da aceitação genuína, da "rêverie do terapeuta, na sua mente sonhante e criadora" (Coimbra de Matos, 2012, p. 160).

Essas são algumas das caraterísticas promotoras da nova relação, conceito de Coimbra de Matos (2016), que designa a relação sadia e aberta; voltada para a inovação, para o projeto autêntico, para o futuro enquanto horizonte de sentido e criação. Essa nova relação é o motor da cura analítica. Ela desenvolve-se paralelamente à relação transferencial, caraterizada pela repetição de padrões antigos, saturados e conhecidos. É a repetição e a cristalização patogénica do familiar, das identidades e identificações.

Cabe, assim, ao analista ser o farol nesse "esconde-esconde" entre o saturado e o original; construir a nova relação, dissolvendo a transferência interpretando-a, para que novas aberturas possam ser rasgadas.

A nova relação nada tem a ver com a "experiência emocional corretiva"; é antes um encontro verdadeiro com um novo objeto autêntico, confiável e introjetável. Pela introjeção do novo objeto dá-se a transformação da identidade e a transferência da nova relação interna - a sua generalização na vida diária com propagação da abertura ao novo e ao incógnito.

Essa nova abertura com que se arrisca no desconhecido e que permite ao sujeito a liberdade de explorar novas possibilidades, pode ser um fator preponderante na conquista do equilíbrio entre os riscos e as potencialidades que a atualidade oferece. Como vimos, face à fluidez contemporânea, em que as referências comportamentais e identitárias se esbatem, o sujeito torna-se um nómada em viagem, face a face com o vazio e a liberdade.

Pode, então, sucumbir à repetição do familiar. Repetição dissimulada com os trajes da época, isto é, com o saltar de perfil em perfil, o acumular de informação que circula no ecrã, a busca estereotipada e defensiva de novidade que nada cria de novo, num quotidiano em que a rotina é a quebra com a rotina.

Ou pode, em vez disso, abrir-se à nova relação e transformar a transitoriedade numa janela de redescoberta de si e do outro, na criação de um renovado horizonte de sentido pessoal. A diferença entre tornar-se um investigador reflexivo ou ser intoxicado/distraído pela imensa tela de informação obsessiva e vertiginosamente circulante.

Pode, assim, ter a ousadia de construir de uma forma mais autêntica a sua identidade - com predomínio da identificação idiomórfica (autoidentificação por reconhecimento da informação interna), sobre a alotriomórfica (identificação ao modelo, incluindo a identificação primária, a identificação edipiana, e a identificação ao igual/duplo narcísico) e a imagóico-imagética (resultante da incorporação e identificação introjetiva das imagos na relação primária) (Coimbra de Matos, 2006, 2007, 2016). Isto é, de uma identidade de autoria e encontro, ao invés de uma identidade outorgada; de uma identidade aberta à experiência em vez de uma identidade de papel fixo/contratual.

De acordo com Coimbra de Matos (2016), a própria psicanálise requer-se mais aberta e inclusiva, numa atitude de questionamento e investigação contínua, afastando os dogmas doutrinários e os fundamentalismos do pensamento único e totalitário.

Estamos, assim, longe do primado do saber do especialista, já que, como refere Coimbra de Matos (2016, p. 199),

[...] o êxito em psicoterapia depende mais da arte do que da técnica, do afecto do que do conhecimento.

Impõe-se, então, pensar nesse profissional de relação e de proximidade como alguém que

[...] ama: a vida, a si mesmo e os outros. Que não é impotente nem todo-poderoso, mas competente na tarefa que realiza; que não é bronco nem omnisciente, mas sabe aprender com os pacientes; que não tem inveja, mas possui ambição; que não é vaidoso, mas tem orgulho no que faz. Que é narcísico quanto baste (não se sente inferior) e generoso quanto pode (para não se esgotar) (Coimbra de Matos, 2007, p. 8-9).

Nesta relação de "intimidade implícita partilhada" (Coimbra de Matos, 2012, p. 29), o profissional transforma e transforma-se: transforma a relação, o outro e a si próprio (Coimbra de Matos, 2007; 2011).

 

Conclusão

O Homem, independentemente dos tempos e das circunstâncias, é na, sua essência, um animal gregário. Pese embora os constrangimentos, os desafios e as oportunidades que decorrem na e da vivência da contemporaneidade, o Homem, como refere Coimbra de Matos (2016), nasce da relação, vive em relação e para a relação. Só existe e cumpre verdadeiramente o seu destino com o(s) outro(s), numa relação que se quer - agora e sempre - presente, continuada, cuidada e recíproca.

É no encontro com o(s) outro(s), no seu encantamento afetivo, no olhar que nos devolve(m) e no lugar em que nos coloca(m), que a criação - do EU, do outro e da realidade - acontece.

São os sentimentos que nos fazem voar nas asas do pensamento e correr para a realização. São as emoções que fixam o conhecimento; é o afecto que determina a sua fluorescência e a produção de novos saberes. Sem afectividade não há cor, música, poesia; não medra a arte nem cresce a ciência; morre a criação e definha o pensamento (Coimbra de Matos, 2016, p. 201).φ

 

Referências

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Recebido em: 27/05/2020
Aprovado em: 18/09/2020

 

 

1. Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P, no âmbito do projeto UIDB/05198/2020 (Centro de Investigação e Inovação em Educação, inED).
2. A Comissão de Publicação e Edição da revista Reverso manteve a escrita em português de Portugal.

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