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Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.81 Belo Horizonte Jan./June 2021

 

AUTORA CONVIDADA

 

Integrando o dissociado: da dominância do medo ao poder da angústia - a angústia como uma "presença do sentimento"

 

Integratingthe dissociated: from the dominance of fear to the power of angst - angst as a 'presence of feeling'

 

 

Anna Maria LoiaconoI; Tradução: Bernardo Maranhão

IPsicoterapeuta relacional/interpessoal. Psicanalista que vive e trabalha em Florença, na Itália. Presidente do Instituto H. S. Sullivan de Florença. Analista supervisora e docente do Instituto de Psicoterapia Analítica de Florença. Vice-presidente da Organização Psicanalítica Italiana - Federação e Registro (OPIFER). Membro executivo e delegada da Federação Internacional de Sociedades Psicanalíticas (IFPS). Leitora editorial para o Fórum Internacional de Psicanálise. Publicação de artigos clínicos e teóricos, alguns em inglês, e a versão italiana de The unformulated experience, de D. B. Stern. Autora do livro La teoria interpersonale di H. S. Sullivan e la Clinica della Dissociazione (2016). Presidente de mesa no XX Fórum da IFPS, realizado de 17 a 20 de outubro de 2018 em Florença, "As novas faces do medo. Transformações em curso em nossa sociedade e na prática clínica".

 

 


RESUMO

A autora aborda a prática clínica contemporânea, na qual encontramos indivíduos aparentemente incapazes de entrar em contato com suas próprias dimensões existenciais, que comunicam seu distanciamento, por vezes total, em relação aos próprios sentimentos e medos, intencionalmente empenhados que estão em evitar a inevitável experiência da angústia que pode acompanhá-los ao longo da vida. Essa dissociação da emoção angustiante é revelada ao analista por meio do distanciamento ou de uma simples ação. Esse sentimento que gera tanto o distanciamento quanto seu oposto, talvez uma reação hipomaníaca, mostra-se "ausente" e não é percebido pelo paciente. Desse modo, a angústia pode ser evitada e, de fato, parece "ausente", mas o que se experimenta é toda a gama de emoções em estado bruto a ela conectadas, como medo, terror, pânico, distanciamento, apatia e anedonia. A autora busca esclarecer os termos "medo", "ansiedade" e "angústia", nas formas em que foram historicamente utilizados em filosofia, psicanálise, psiquiatria e psicologia. Ao final, explica as razões de sua escolha pelo termo "angústia" em vez de "ansiedade" em seu distinto e explícito manejo desse tema.

Palavras-chave: Medo, Ansiedade, Angústia, Dissociação, Afeto, Prática clínica contemporânea.


ABSTRACT

The author addresses contemporary clinical practice, where we encounter individuals, seemingly incapable of getting in touch with their own existential dimension, who communicate their detachment, at times even total, from their feelings and fears, wilfully committed as they are to avoid experiencing the inevitable angst that may accompany them through life. This dissociation from the angst-producing emotion is revealed to the clinician through either detachment or a simple action. This feeling that generates both detachment and its opposite, perhaps a hypomanic reaction, proves to be "absent," and is not perceived by the patient. In this way, angst can be avoided and indeed seems "absent," but what is experienced is the complete range of raw emotions connected to it, such as fear, terror, panic, detachment, apathy, and anhedonia. The author sets out to clarify the terms "fear," "anxiety," and "angst" as they have been historically used in philosophy, psychoanalysis, psychiatry, and psychology. Ultimately, she explains her reason for her choice of the word "angst" instead of "anxiety" in her distinct and explicit handling of this subject matter.

Keywords: Fear, Anxiety, Angst, Dissociation, Affect, Contemporary clinical practice.


 

 

Frequentemente, no tratamento das chamadas patologias emergentes, caracterizadas pelas consequências de feridas narcísicas, que podem causar dificuldades na simbolização e na representação de estados emocionais, a angústia se manifesta sem afeto, por meio do distanciamento (por vezes total) com relação às emoções. Os indivíduos que experimentam esses sintomas parecem incapazes de entrar em contato com sua própria dimensão existencial, intencionalmente comprometidos que estão em evitar a inevitável dor que muitas situações internas e externas implicam durante a complexa jornada de uma pessoa através da vida. Nesses casos, a angústia dissociada parece mesmo "ausente" (Deutsch, 1942; Zilboorg, 1933); contudo, o que se experimenta é toda a gama de emoções em estado bruto a ela conectadas, como medo, terror, pânico, distanciamento, apatia e anedonia.

Este estudo, partindo da distinção entre angústia e medo, procura explorar como a irrupção da angústia como afeto, que pode em suma ser percebida sem a necessidade de um objeto ao qual se referir, representa uma angústia integrativa. Em outras palavras, se o medo permite evitar a dor, a entrada em contato com a dor pressupõe uma percepção da angústia, assinalando o início de um processo de integração dos afetos dissociados. Alguns cenários clínicos esclarecerão essas premissas.

O contexto teórico em que operarei no trato com o conceito de dissociação pertence ao campo da psicanálise interpessoal, de acordo com a qual a mente funciona de maneira dissociativa, ao longo de um contínuo que vai da saúde mental à patologia. A dissociação, sob essa perspectiva teórica, representa não só uma defesa contra o trauma, como por exemplo, no caso de Janet (1889), mas também a maior capacidade da mente humana para proteger sua própria estabilidade (Bromberg, 1988, 2011; Stern, 2002, 2003, 2004, 2010; Sullivan, 1948, 1953, 1956). A dissociação, na teoria interpessoal, é motivada pela necessidade da pessoa de não saber, a fim de evitar a tomada de contato com a dor e a angústia e, portanto, não simplesmente sugere uma consequência de agitação psíquica devida ao trauma.

 

Medo, ansiedade e angústia

De modo geral, encontramos frequentemente um certo grau de confusão no uso dos termos "angústia" e "medo".

"Medo" é um termo psicológico, referido a um fenômeno experimentado no corpo, com manifestações somáticas. É considerado como uma:

[...] resposta emocional primária de defesa, provocada por uma situação de perigo que pode ser real, prevista com antecipação, evocada da memória ou produzida pela fantasia. O medo é frequentemente acompanhado por uma reação orgânica, pela qual o sistema nervoso autônomo é responsável [...]. Quando, por outro lado, é prolongada ou relativa a objetos, animais ou situações que não podem ser consideradas assustadoras, assume os traços psicológicos de uma fobia, que a psicanálise interpreta como defesa contra a angústia (Galimberti, 2008, p. 659)

"Angústia" ou "ansiedade", por outro lado, é um termo específico de ordem psicanalítica, que sempre é pertinente a uma percepção subjetiva. A angústia, seja ela normal, seja neurótica, sempre resulta, uma vez que alcança um nível de plena expressão, ser intimamente conectada com (ou acompanhada por) uma tonalidade afetiva da qual o sujeito está consciente e que é associada de algum modo a uma sensação de apreensão - é disso que emerge a confusão - e claramente representa ou, para ser mais precisa, é o afeto da angústia.

Do ponto de vista teórico, sabemos que a filosofia e a psicanálise, assim como a psiquiatria e a psicologia, distinguem vários tipos de angústia. Parece ser esse o motivo de haver, em italiano e em francês, dois diferentes termos que especificam as sutis variações do significado que temos no que concerne à angústia. Os termos "angoscia" em italiano e "angoisse" em francês (referentes à angústia), ora se aproximam, ora se diferenciam dos termos "ansia" e "anxiété" (ansiedade), ao passo que em alemão só encontramos um termo, "angst", e em inglês apenas o termo "anxiety". Tentarei agora me aprofundar mais na esfera epistemológica da angústia. (Apesar de o termo "anxiety" ser geralmente utilizado em inglês para denotar ambos os conceitos, utilizarei os termos separadamente, como fazemos em italiano. Mais adiante neste artigo, explicarei minhas razões o mais completamente possível.)

Em filosofia, "angst" é um termo introduzido por Kierkegaard (1844) para significar a condição humana. Em oposição ao medo, que sempre é medo de algo determinado, a angústia não se refere a nada preciso, mas, ao contrário, significa o estado emocional da existência humana. O tema foi retomado em seguida por Heidegger (1929), para quem a angústia revelava o "nada", e depois por Karl Jaspers (1933), que fez uma distinção entre a angústia do ser-no-mundo (Dasein) e a da existência (Existenz).

Em psicanálise, o conceito de angústia é fundamental, e Freud foi o primeiro a dar uma explicação psicogênica desse afeto, em contraste com as teorias somatogênicas dos primeiros tempos da psiquiatria, que atribuíam a causa da angústia ao funcionamento pobre do sistema neurovegetativo. Há duas datas significativas para a formulação desse conceito: 1894, quando Freud propôs a distinção entre neurose e neurastenia (Freud, 1894), e 1925 (Freud, 1925), quando distinguiu Realangst (angústia em face de uma situação real) de automatische Angst (comumente conhecida em inglês como automatic anxiety - ansiedade automática) e de Signalangst (comumente conhecida em inglês como signal anxiety - angústia-sinal) (Galimberti, 2008). Freud também iria estabelecer os conceitos de histeria de angústia (Freud, 1888, 1892-1895, 1908) e angústia de castração (1908).

Desenvolvimentos posteriores em psicanálise evidenciaram outras formas de angústia, tais como angústia de separação (Rank, 1924), angústia primal (Balint, 1965), angústia básica (Horney, 1937), angústias depressivas (Klein, 1935, 1948) e angústia persecutória (Klein, 1948).

 

A psiquiatria distingue neurose de ansiedade, ansiedade de espera, ansiedade situacional e ansiedade flutuante

Devemos à psicologia italiana, que em sua língua dispõe de ambas as palavras, "ansiedade" e "angústia", a acentuação da diferença entre os dois vocábulos, não só em termos quantitativos, no sentido de que a angústia seria uma intensificação da ansiedade, mas também em termos qualitativos (Galimberti, 2008). Essencialmente, a psicologia encara a ansiedade de uma maneira diferente, no que concerne ao método: enquanto a psicanálise a considera por uma perspectiva explanatória, a psicologia a toma sob o ponto de vista descritivo e a define em termos operacionais, observando e medindo as reações de ansiedade, sua amplitude e sua intensidade.

À luz dessas observações, o conhecido psicanalista italiano Leonardo Ancona (1972, p. 918) escreveu:

A angústia se adapta a um processo psíquico que é substancialmente distinto daquele da ansiedade. Na verdade, a angústia corresponde à situação do trauma, nomeadamente a um influxo de excitações que são incontroláveis porque grandes demais para serem manejadas em uma moldura temporal específica. [...] A ansiedade, por outro lado, corresponde a um processo de adaptação em face da ameaça de um perigo real; esse processo é uma função do ego a utilizá-la como sinal, após tê-la produzido, a fim de evitar ser submergido pelo influxo traumático de excitação. Nesse caso, o ego do sujeito é ativo, na medida em que produz afeto e o utiliza para encontrar sistemas de defesa adequados. A força pulsional é estruturada e reproduzida sem uma linha de base, sem uma emissão de descarga. A distinção entre os dois processos deveria ser mantida, interpretando-se sua unificação como um aspecto de uma cultura que manifesta, quando confrontada com esse material temático, menos sensibilidade a uma provável atitude defensiva. Na realidade, os processos referidos são distintos sob os pontos de vista econômico, dinâmico, estrutural e genético. Portanto, ignorar essa distinção produz contradição e confusão.

Em consonância com as observações de Ancona, que continuam fundamentais até hoje em um exame detalhado da questão de se usar ou não os dois termos, escolhi aqui usar o termo "angústia", em vez de "ansiedade", porque a angústia de tipo integrativo a que estou me referindo é pertinente a uma situação traumática. De fato, estamos lidando com a angústia que acompanha o processo de integração das personificações do não eu.

Tendo exposto os fundamentos teóricos e as razões de minha escolha do termo "angústia", considero necessário neste ponto, contudo, destacar que, sob o ponto de vista clínico, ou antes, levando em consideração o que concerne à percepção subjetiva do tom afetivo, é praticamente impossível distinguir a angústia do medo.

Quando um paciente se encontra sob a influência da angústia, frequentemente declara estar com medo ou sentir-se aterrorizado, ainda que não seja capaz de dizer o que teme ou por que se sente aterrorizado. Esse paciente apenas tentará descrever os sentimentos, em vez de definir a relação que eles têm com algo em particular ou com algum evento específico.

De acordo com Freud (1920), a angústia é uma condição desagradável de pressentimento, sem relação com qualquer objeto específico; somente no momento em que pode ser associada a algo - em outras palavras, no momento em que "adquire" um objeto - é que se transforma em medo. Esta pareceria ser então uma distinção possível entre angústia e medo: a angústia não tem objeto, o medo o tem.

 

Ansiedade sem afeto

Em seu artigo Angústia sem afeto (publicado em inglês com o termo "anxiety", contudo, em consonância com as razões expostas cima, embora o termo "angústia" seja, segundo defendo, o mais apropriado), Gregory Zilboorg (1933) tentou compreender o modo pelo qual a "ansiedade" se manifesta sem afeto em muitos pacientes neuróticos e em muitas pessoas ditas normais.

Zilboorg observou que o afeto resulta por vezes tão elusivo que, a fim de evitar sua irrupção, o paciente pode se engajar em uma simulação da expressão motora real desse afeto, na esperança de que, como frequentemente acontece, ele possa ser tomado pela emoção genuína (o que vem à mente é o conceito de personalidade "como se", de Helene Deutsch (1942)). A elisão do afeto da angústia é uma modalidade particular da cisão do afeto e seu propósito é evitar a dor psíquica (a autora está correta, neste caso, quando fala em cisão e não em dissociação, movendo-se, assim, em um contexto teórico diferente do interpessoal).

De acordo com a linha de pensamento de Zilboorg, se tentamos explicar o fenômeno do desaparecimento do afeto de um ponto de vista psicanalítico, descobrimos que existe um ponto - na projeção da totalidade da vida interior para o mundo exterior (nomeadamente, o mundo interior projetado) - no qual o sujeito percebe esse mundo interior como se fosse exterior. E é nesse momento que, graças à liberdade que o sujeito tem em relação ao ego, ele responde com um aumento de tensão nas demandas deste mundo, agora alcançando-as pelo exterior. Na verdade, o afeto não desaparece. Ele é simplesmente retirado do ego, causando desse modo um desaparecimento da sensação de perigo. Em outras palavras, uma vez que a tonalidade afetiva da angústia é fundamentalmente medo, agindo como uma medida defensiva do ego, é o mesmo temor de se tornar biologicamente supérfluo no momento em que o ego está ausente.

Em suma, a reação de angústia é formada, em linhas gerais, por três componentes: o conteúdo ideacional, a tonalidade afetiva (afeto) e a reação motora. O conteúdo ideacional também pode aparecer isoladamente, quando a tonalidade afetiva e a expressão motora são reprimidas, como é possível observar em algumas formas obsessivas. Pode ocorrer também de a tonalidade afetiva ser mais proeminente, ao passo que o conteúdo ideacional permanece reprimido, mas nesses casos o acompanhamento motor também estará presente, como, por exemplo, em qualquer tipo de crise de ansiedade neurótica; no curso de uma crise como essa, o indivíduo tem consciência da própria angústia (afeto) e o revela por palidez, tremor, aceleração do batimento cardíaco, frequência respiratória mais elevada e assim por diante, isto é, por meio do componente motor. Também é possível que o componente motor vá se evidenciar em primeiro lugar, ao passo que o conteúdo ideacional e o afeto de angústia permanecem reprimidos (como nas expressões de choro neurótico, suor nas mãos, acessos mioclônicos brandos e tiques nervosos, atrás dos quais se escondem tanto pensamentos proibidos quanto sentimentos carregados de angústia).

Sob esse ponto de vista, o medo seria, portanto, um sinal da "ausência de sentimento" e expressaria a "angústia sem afeto" ou a angústia dissociada (e aqui estou certa de que Zilboorg teria usado a expressão "angústia reprimida"), que se manifesta na sensação crua de medo de alguma coisa. Essa irrupção da angústia como um afeto que se sente sem necessidade de referência a um objeto se torna, pois, sob essa perspectiva, uma angústia integrativa, que eu recomendaria chamar de uma "presença do sentimento", em oposição à outra, a "ausência de sentimento" de Zilboorg, que é pertinente à dominância do medo. Entrar em contato com a dor pressupõe a percepção da angústia, assinalando a integração do material dissociado.

Com o material clínico que se segue, tentarei mostrar como o aparecimento da percepção do sentimento de angústia pode ser considerado um momento divisor de águas no processo terapêutico, o início de um senso de vitalidade, experimentado como uma espécie de despertar.

 

Myriam, Irene e Júlia

Myriam me trouxe um sonho:

Estou aqui em análise no seu consultório com você, mas você está prestes a sair com o seu parceiro - ou marido, não estou certa - para tomar um aperitivo, ocasião para a qual você reuniu todos os seus pacientes, a fim de se livrar mais cedo. Então eu estava experimentando uma angústia indizível. Eu estava me sentindo simplesmente horrível. Você percebe quão mal estou me sentindo, então se aproxima e diz: 'Na semana que vem, não estarei aqui, mas eu prometo repor a sessão' [É importante assinalar que eu nunca falo em repor uma sessão. Uma sessão perdida é uma sessão perdida. Se outra sessão é possível, tudo bem, mas aquela sessão não pode ser recuperada. Por outro lado, ela perderia a sessão seguinte por causa da enésima viagem que estava em vias de empreender. Myriam frequentemente perdia compromissos agendados]. Imediatamente me acalmo e me sinto recomposta. A dor excruciante se foi porque você entendeu que eu estava me sentindo mal.

Esse sonho, que ela teve depois de um ano e meio de terapia, claramente ressalta, para além da infiltração de temas edipianos, um tema que caracterizou a análise de Myriam: a necessidade de evitar a angústia. Myriam pode experimentar o medo, mas ela recorre a todo expediente disponível para não "sentir" a angústia à qual está assujeitada.

Outro exemplo de minha prática clínica chama a atenção para a ampla gama de situações tipicamente encontradas em pacientes que recorrem a modalidades dissociativas.

Uma paciente de 35 anos, Irene, estava em análise comigo por causa de desordens dissociativas, das quais o exemplo mais recente fora uma semana inteira de sentimentos ininterruptos de despersonalização, durante a qual ela parecia estar vivendo como se estivesse destacada, alhures, longe de onde ela de fato estava, uma situação que lhe deu o ímpeto para entrar em terapia.

Depois de cerca de dois anos, ela relatou este sonho:

Estou aqui com você, numa sessão, mas muitas pessoas emocionalmente importantes para mim também entram - minha família, meus amigos, e eles estão aqui conversando. Da primeira vez, não digo nada, embora tenha coisas a lhe dizer, e isso me aborrece um pouco. Da segunda vez, estou consciente de ir escorregando cada vez mais fundo em minha cadeira, até estar quase completamente estirada, enquanto os outros conversam. Então, de repente, levanto-me de um salto e, furiosa com você, digo-lhe que os mande embora, que vamos repor essas duas sessões sem contar a eles, porque os quero de volta.

As associações se referiam à sessão anterior, durante a qual ela falara longamente sobre sua irmã e sobre como esta egoisticamente fica com tudo para si. Irene me contou ter experimentado uma sensação de haver desperdiçado toda a sessão e estava se perguntando por que eu a deixara fazer isso. Então, ressaltei que era óbvio que ela trouxera uma configuração interna pessoal para a sessão, uma configuração reveladora de um padrão inconsciente que ocupava grande parte de seu mundo interno.

Depois das minhas palavras, Irene estava tão tocada que rompeu em lágrimas e me contou que de fato, logo após a sessão anterior, ela novamente havia experimentado dor e um sentimento de solidão. Anteriormente, ela vinha se sentindo distanciada do que acontecia consigo. Sobretudo na noite anterior, antes de cair no sono, algum tipo de emoção emergira e ela talvez tivesse derramado uma lágrima, mas dormira em seguida e, de manhã, sentia-se novamente distanciada. Agora, no entanto, sentia necessidade de chorar. Ela estava tendo uma experiência de dor.

Pacientes como Myriam e Irene verdadeiramente representam, na minha opinião, a prática clínica contemporânea, na qual encontramos indivíduos que comunicam seu distanciamento, por vezes total, com relação aos próprios sentimentos e medos. Eles parecem incapazes de entrar em contato com suas próprias dimensões existenciais, intencionalmente empenhados como estão em evitar experimentar sua dor e seu sofrimento.

O que testemunhamos é basicamente a dissociação do sentimento angustiante que aparece e é revelado ao clínico por meio do distanciamento ou de uma simples ação. Em qualquer dos casos, esse sentimento, que gera tanto o distanciamento quanto seu oposto - por exemplo, uma reação hipomaníaca -, prova-se "ausente" e não é percebido pelo paciente. Desse modo, como mencionado acima, a angústia pode ser evitada e de fato parece "ausente", mas o que é experimentado é toda a gama de emoções em estado bruto a ela conectadas, como medo, terror, pânico, distanciamento, apatia e anedonia.

Uma vez integrado o material antes dissociado, a tarefa do terapeuta consiste em promover uma elaboração dos aspectos por meio dos quais o paciente pode, em última instância, transformar as personificações que não mais estão dissociadas, e sim integradas. De modo geral, isso ocorre gradualmente por meio de atuações que são finalmente processadas e, por último, superadas (Buechler, 2017; Hirsch, 1998, 2008; Stern, 2003, 2010). Todo esse trabalho propicia a percepção da ferida (ou das feridas) como algo situado no passado e não mais no presente. Assim, torna-se possível recuperar finalmente as partes boas do objeto primário e reconhecer a identificação de cada um com o objeto primário em si.

Descreverei agora o sonho de outra paciente, Júlia, em seu sétimo ano de análise:

No sonho há duas mulheres, uma mais velha, a outra um pouco mais nova, com cerca de 45 anos, e uma garotinha no quarto onde a mulher mais velha, certa vez, fora isolada e espancada. A mulher mais velha está chorando, perambulando e lembrando, enquanto a mulher mais nova aprova e a encoraja a expressar seus sentimentos, declarando que a compreende. A criança, com idade entre 7 e 9 anos, também está circulando por ali, observando e entendendo o que se passa, mas ela está livre.

Considero que esse é um sonho de reestruturação do self, no qual é evidente a integração gradual das personificações persecutórias e aterrorizantes. A atmosfera de violência é associada, na mente do paciente, com a da casa onde nasceu. A mulher mais velha é, portanto, a mulher em desespero, do passado. A de 45 anos corresponde ao período em que a paciente aceita, compreende e escuta a si mesma, e em que ela começa a se identificar com a própria mãe, de quem a paciente de fato começara recentemente a se sentir mais próxima. A garotinha representa a idade de não memória. Agora, contudo, a criança sente que está sendo aceita, e compreende tudo. Ela já não é sem memória. A garotinha não é mais forçada a reprimir; ela é livre, para além do conflito. Esse sonho encapsula um movimento rumo à integração baseado no conceito de acordo com o qual o vínculo fomenta a integração e é uma forma de compreensão (Friedman, 1988).

Podemos também descrever esse sonho usando uma linguagem mais genuinamente interpessoal. Nesse sonho, o que testemunhamos é a realização da autoaceitação, por meio da colocação em cena das personificações das diferentes realidades do self, sem a perda de nenhuma delas, e a expressão de todas as subnarrativas fundamentais da personalidade do paciente (Stern, 2009, 2013, 2015). Isso demonstra, em última análise, a capacidade de ficar nos espaços através das pontes que criativamente conectam as ilhas de concretude anteriormente dissociadas (Bromberg, [1998] 2001, 2006).

Em suma, numa sociedade mais e mais orientada para o "fazer" em vez do "ser", não surpreende que os pacientes estejam mais e mais dispostos a usar modalidades dissociativas, conseguindo apenas experimentar o medo. Isso facilita a proliferação de psicoterapias da variedade protética, no sentido reabilitativo e psicoeducacional, sentido que as predispõe à personificação da figura dos "doutores da psique" (para falar em personalidades "como se", como tive ocasião de fazer em um outro artigo), prontos a intervir para aliviar as feridas o mais rápido possível. Nossa tarefa como psicanalistas deveria ser, ao invés, mais do que nunca, oferecer aos pacientes a possibilidade de entrar em contato com sua própria dimensão existencial. Do contrário, estaremos celebrando o fim da interioridade.

Se o "Zé Ninguém", de Wilhelm Reich (1948), (ou os pacientes como Myriam, Irene, Júlia e muitos outros) pudesse se conectar com sua angústia, rebelando-se contra os limites estreitos a que fora confinado sob o domínio do medo (e nisso reside essencialmente a função social de nossa profissão), ele seria capaz de se conectar com a possibilidade de processá-la. E então, a partir do "pequeno homem", poderíamos testemunhar o nascimento de uma "pessoa".

Como escreve Pier Francesco Galli (1995, p. 67):

Se mantivermos a crença de que a psicanálise é uma prática irredutível a outros argumentos, que se transforma continuamente a si mesma e a seu objeto, então a psicanálise não está em crise, mas pode ainda provocar crises.φ

 

Referências

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Recebido em: 05/02/2020
Aprovado em: 16/04/2021

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