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Reverso vol.43 no.81 Belo Horizonte jan./jun. 2021

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICAS

 

A lei do desejo ao gozo: a tirania do pai em Freud e Lacan

 

The law from desire to enjoyment: the tyranny of the father in Freud and Lacan

 

 

André Fernando Gil Alcon Cabral

Psicanalista. Doutorando em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em psicologia e especialista em filosofia pela UFMG. Bacharel em psicologia pelo Centro Universitário Newton Paiva. Autor do livro Os Édipos na Letra de Jacques Lacan, pela editora Zagodoni (2021). E-mail: cabral.afga@gmail.com

 

 


RESUMO

Em 1897 Freud recuou frente à concepção de um pai perverso. O pai, contudo, retornou como um déspota em Totem e tabu. Para Lacan, a evitação de um pai gozador também esteve presente na medida em que a lei tirânica foi muitas vezes compreendida pela noção de supereu. Ao pai resta o lugar do desejo e da lei civilizatória. É tardiamente que Lacan vai admitir a presença fantasmática de um pai do gozo, incapaz de distinguir a neurose e a perversão. Assim, neste artigo, investigamos qual é o estatuto do pai para a psicanálise.

Palavras-chave: Pai, Perversão, Gozo, Desejo, Lei.


ABSTRACT

In 1897, Freud stepped back from the concept of perverse father; however, the father returned as a despot in Totem and taboo. The avoidance of a father-of-enjoyment can be also seen in Lacan, since the tyrannical law was often understood through the concept of superego and the father was interpreted as the place of desire and of civilizing law. Lacan belatedly acknowledged the phantasmatic presence of a father-of-enjoyment unable to distinguish neurosis from perversion. Thus, the aim of the current article is to investigatethe father's status in psychoanalysis.

Keywords: Father, Perversion, Enjoyment, Desire, Law.


 

 

Introdução

No Projeto para uma psicologia científica, Freud ([1895]1996) formalizou a etiologia da neurose a partir de uma experiência de abuso num estado muito primitivo da vida infantil, quando o aparelho psíquico ainda é demasiadamente imaturo frente ao sexual. É apenas em 1897, por meio de uma carta endereçada a Fliess, que Freud vai descrever sua desistência quanto a essa teoria. "Não acredito mais em minha neurótica" (Freud, [1897] 1996, p. 309).

Apesar de sua exposição anterior sobre a causa de a patologia ter se mostrado aparentemente crível, Freud expôs quatro principais razões para abdicar do percurso que vinha fazendo. Primeiramente, o psicanalista se refere ao insucesso do tratamento na medida em que ocorria uma debandada de suas pacientes. Tal fato serviu como alerta para que ele observasse a falta de êxito nos tratamentos que conduzia naquele período.

Como segunda alegação, o autor recorreu a um argumento simples e poucas vezes observado na psicanálise: o número de pais abusadores teria de ser infinitamente maior do que o número de histéricas, pois se nem todo abuso gera uma histeria, mas toda histeria é fruto de um abuso, chegamos a números absurdos frente à realidade observada por ele.

A perversão teria de ser incomensuravelmente mais frequente do que a histeria, de vez que a doença só aparece quando há uma acumulação de eventos e quando sobrevém um fator que enfraquece a defesa. (Freud, [1897] 1996, p. 310)

Em seguida, Freud nos lembra que, se o inconsciente nunca supera a consciência, por que haveria de fazê-lo para as lembranças de abuso? Trata-se de colocar em xeque a presença do recalcado como experiência vivida nos primórdios da infância. Aqui, encontramos uma primeira indicação de que o inconsciente jamais pode se fazer reconhecer na consciência. No seu lugar, encontramos sempre uma lembrança encobridora.

Por fim, como quarta argumentação, nota-se o médico pesquisador mencionar a indistinção entre verdade e ficção. Tendo em vista que não há indicações de que o inconsciente se sustente exclusivamente a partir da realidade objetiva e ordinária, nada impede que os relatos de abuso se refiram a uma fantasia.

Pela interpretação das quatro alegações freudianas, chegamos nada mais, nada menos que à teoria do Édipo. Tendo em vista que o inconsciente não pode superar a consciência, o neurótico é aquele que, em vez de reconhecer o próprio desejo pelo outro, aponta esse outro como um abusador que o deseja. Nessa perspectiva, não se trata de um acontecimento de abuso na idade precoce, mas de que a criança fantasie uma relação com o outro. Certamente essa fantasia vai ganhando novas camadas e ressignificações à medida que a criança se torna um adulto.

Desse modo, ainda em 1897, Freud endereçou uma carta a Fliess, a Carta 71, onde veremos as primeiras aparições do termo "Édipo", segundo a interpretação da peça de Sófocles intitulada Édipo Rei. Ao formalizar o Édipo, Freud se reencontrou com o pai do desejo e o pai da norma.

No entanto, devemos questionar:

• O que fez com que a hipótese do pai perverso fosse tão crível e convincente, conforme Freud pôde salientar? E ainda ao abandonar a "neurótica freudiana"?

• Deve a psicanálise abandonar a leitura de um pai perverso no nível fantasmático?

• Trata-se de compreender o que podemos nomear como uma lei perversa?

Veremos que Lacan se mostrou essencial para a retomada do conceito de pai para a psicanálise.

 

O pai de Totem e tabu

Em 1897, na carta enviada a Fliess, Freud ([1897] 1996) rompe com a perspectiva na qual a etiologia da neurose é dada a partir da figura de um pai abusador. No entanto, isso não evita que o inventor da psicanálise retorne à temática do pai perverso. Não por acaso, quase vinte anos depois, o pai reaparece a partir da figura de um tirano despótico pelo mito da horda primeva.

Em Totem e tabu, Freud ([1913] 1996) retomou a antropologia de sua época para convencionar uma hipótese sobre o nascimento da civilização. O austríaco acreditou que, nos primórdios da humanidade, antes que se entrasse efetivamente na cultura, toda a "comunidade humana" viveu sob a tirania de um pai primevo. Possessor de todas as mulheres na horda primitiva, esse pai foi responsável pela privação sexual dos demais homens-filhos. Após anos de humilhação, esses filhos se rebelaram contra o pai tirânico, momento em que o assassinaram, satisfazendo o ódio que sentiam pelo genitor.

Somente após a eliminação do pai, os filhos sentiram por ele uma afeição que até aquele momento permanecia velada. A partir do desenvolvimento do sentimento de culpa, esses filhos "anularam" seu próprio ato. É o que esclarece Freud com sua impressionante sentença: "[...] o pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo" (Freud, [1913] 1996, p. 146). Proibiram o assassinato do totem, substituto do pai, e renunciaram às mulheres de sua tribo.

Cabe salientar que, ainda que Freud propusesse a existência do pai primevo como um acontecimento real, nada impede que, mesmo para esse autor, encontremos esse mito enquanto uma formação fantasmática. Isso significa dizer que todos os relatos (antropológicos ou clínicos) poderiam ser fruto, única e exclusivamente, dos sentimentos e da realidade inconsciente, sem que tivesse ocorrido de fato o assassinato do pai primitivo nos primórdios da humanidade.

Consequentemente, o simples impulso hostil contra o pai, a mera existência de uma fantasia - plena de desejo de matá-lo e devorá-lo, teriam sido suficientes para produzir a reação moral que criou o totemismo e o tabu (Freud, [1913] 1996, p. 161, grifo nosso).

O fato é que ainda que a psicanálise novamente se deparasse com um pai tirano, Freud acabara de apresentar o pai como lei do desejo e normatizador da cultura na medida em que esse pai morto se tornava mais forte por sua internalização simbólica. Tal formalização certamente permite pensarmos novamente na evitação do psicanalista em formalizar uma teoria em que o pai se apresente como uma lei perversa. De novo, prevaleceu a lei do pai edípico no recalcado freudiano.

Lacan esteve atento à temática freudiana, de modo que jamais tomou o mito de Freud como um fato antropológico. Porém, embora retomasse o pai primevo nos termos de uma fantasia, o psicanalista francês também demonstrou certa evitação em tomar a lei do pai como uma lei perversa.

No seminário A ética da psicanálise, Lacan ([1959-1960] 1999) formaliza o pai tirano de Totem e tabu a partir da lei do supereu, deixando para o pai a dimensão de uma lei insuficiente, mas ainda assim desejante e regulatória.

 

A lei e o pecado

No seminário A ética da psicanálise, Lacan ([1959-1960] 2008) retoma o conceito de das Ding, do Projeto para uma psicologia científica, com intuito de compreender a relação entre a lei edípica e o desejo.

Vejamos do que se trata: a

Coisa, portanto, que, aproveitando-se da ocasião que lhe foi dada pelo mandamento, excitou em mim todas as concupiscências; porque sem a Lei a Coisa estava morta. (Lacan, [1959-1960] 2008, p. 103)

O psicanalista enfatiza que a relação entre a lei mundana e a Coisa teria sido retirada sobretudo da Epístola de São Paulo aos romanos (1974), da qual vemos a substituição da palavra "pecado" pela terminologia das Ding.

A lei é pecado? De modo algum! Mas eu não conheci o pecado senão por meio da lei. É que eu não conheceria a cobiça se a lei não dissesse 'Não cobiçarás'. E aproveitando a ocasião, o pecado, por meio do mandamento, produziu em mim toda a espécie de cobiça, visto que, sem a lei, o pecado está morto. (Paulo, 1974, p. 1130)

Lacan salienta que, quando Paulo escreve à igreja de Roma, no primeiro século após Cristo, o religioso tinha entre os seus objetivos principais esclarecer que as leis morais seriam insuficientes para que os indivíduos chegassem à salvação conforme a boa conduta perante Deus. A lei mosaica seria, de fato, um guia, mas um guia incapaz de dar força suficiente para que os indivíduos seguissem o próprio caminho por ela trilhado.

Na concepção de São Paulo, a própria lei daria o caminho para sua transgressão.

A lei, ao dar a conhecer o caminho sem, contudo, dar forças para segui-lo, multiplicava o pecado, porque ocasionava as violações dela. (Paulo, 1974, p. 1129)

Entretanto, Paulo ressalta que, se a lei é aquela responsável por produzir o pecado, o que diremos em relação ao tempo em que ainda não existia a lei? Como explicar que há pecado, se não há lei antes de Moisés? Isso é possível porque o primeiro pecado foi cometido por apenas um homem (Adão) e, desse modo, penetrado em todos os seus descendentes, que se tornaram igualmente pecadores assombrados pela morte. É aí que Paulo aproxima a morte do pecado, para dizer que a morte entrou no mundo a partir do pecado original.

Logo, a lei mosaica não é a causa do pecado, mas a ocasião para que o pecado de Adão ganhe vida através do que é a lei santa. Veja-se que a lei mosaica não é má, o que implica dizer que a lei edípica não é uma lei perversa. Foi o pecado que produziu nos homens a morte através de uma lei boa.

Eu vivi algum tempo sem lei. Mas, quando surgiu o mandamento, o pecado começou a viver e eu morri; e o mandamento, destinado à vida, conduziu-me à morte. (Paulo, 1974, p. 1130)

Não é pequena a coincidência entre o que Paulo nos apresenta nessa passagem e o que Lacan elucida ao dizer que

[...] a Coisa, aproveitando da ocasião do mandamento, seduziu-me, e por ele fez-me desejo de morte. (Lacan, [1959-1960] 2008, p. 103)

Quando Lacan postula que a Coisa vive e produz o desejo de morte, isso traz problemas teórico-clínicos no que se refere à ética do sujeito e, portanto, à ética da psicanálise. Na medida em que o mandamento edípico recalca e faz uma defesa frente ao real, ele também coloca o sujeito numa relação de transgressão dessa lei, o que implica haver riscos de que toda a dinâmica inconsciente seja conduzida pela destruição das leis mundanas.

A Lei desafiada não desempenha aqui o papel de meio, de vereda traçada para aceder a esse risco? Mas, então, se essa vereda é necessária, qual é esse risco? (Lacan, [1959-1960] 2008, p. 234)

O risco é que o sujeito permaneça na pura rejeição de toda a realidade empírica. Há o risco de que nada no mundo fenomênico possa alienar o desejo e que o sujeito tenha como saída uma perspectiva ética que implique a pura transgressão do mandamento moral. É nessa perspectiva que São Paulo aponta para a fé em Cristo como uma das possíveis saídas para o pecado e a transgressão. O apóstolo demonstra que somente a fé pode guiar os homens para uma saída ética.

Foi a fé que guiou Abraão para o alto de uma colina onde supostamente sacrificaria Isaac, ainda que os mandamentos mosaicos repugnassem veementemente o ato de assassinato.

E assim, não foi mediante a lei que se verificou a promessa feita a Abraão e à sua posteridade, de que receberia o mundo como herança, mas por meio da justiça da fé. (Paulo, 1974, p. 1128)

Embora se tome a ação de Abraão por uma espécie de imperativo hipotético kantiano, isto é, quando a ação é guiada por interesses e recompensações divinas, e não pela boa vontade, Lacan permite, com várias ressalvas, aproximar Paulo de Kant. Ora, em que medida tal aproximação é possível?

Notemos que frente a todos as leis hipotéticas, há um imperativo maior dado pela fé cristã: "Amar o Senhor, o seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, de todo o seu entendimento e de todas as suas forças". Tendo Deus criado o homem à sua semelhança, há um deslizamento possível a ser realizado para a sentença "Ame o seu próximo como a si mesmo".

Frente aos dois maiores mandamentos da fé cristã (que podem ser compreendidos como um mandamento apenas), é possível fazer uma aproximação interessante com o que Kant apresenta no livro Fundamentação da metafísica dos costumes.

Kant (2009) descreve o imperativo categórico - "Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa sempre valer ao mesmo tempo como princípio de legislação universal" - sem qualificar como, efetivamente, a ação deve ser cumprida. É aqui que encontramos semelhança com o mandamento cristão.

Lacan chama atenção para uma espécie de estrutura análoga na qual a Lei é compreendida por uma opacidade que guia o sujeito, opacidade necessária para que tenhamos a universalidade do agir ético.

É interessante verificar que, frente ao agir moral da lei imperativa categórica, Kant demonstra igualmente certo temor de que os sujeitos se deparem com o puro desvencilhamento das leis empíricas, podendo "[...] facilmente transformar-se numa grande tentação à transgressão dos deveres" (Kant, [1785] 2009, p. 123), sem que se encontre qualquer condução para a vida ética.

Dito de outro modo, o sujeito poderia permanecer na pura negatividade às leis hipotéticas sem, contudo, agir pelo dever. Daí a importância de um princípio supremo da moralidade a partir do Bem supremo.

A investigação do bem seria um impasse, se ele não renascesse - das Gute, o bem que é objeto da lei moral. (Lacan, [1963] 1998, p. 777)

Porém, cabe salientar que Kant, diferentemente de Paulo, recusa não apenas os fins empíricos, mas igualmente os tribunais teológicos como princípio da ação.

Guido Almeida (2009), em Fundamentação da metafísica dos costumes, descreve que as entidades não sensíveis (transcendentes) não são da ordem do conhecimento, isto é, não se pode afirmar ou negar a sua existência, mas unicamente pensá-las.

Assim, as entidades não sensíveis devem ser pensadas, mas sem que se possa

[...] determinar positivamente o conteúdo dos conceitos pelos quais as pensamos. (Almeida, 2009, p. 12).

Determinar positivamente seu conteúdo significaria produzir uma espécie de exterioridade ou superioridade à própria razão. Assim, a razão deve ser juíza da razão. Esse é o princípio fundamental do método transcendental, afirma igualmente Deleuze (2018).

Na medida em que a representação é algo exterior à vontade, importa pouco que ela seja sensível ou puramente racional; de qualquer jeito, ela só determina o querer pela satisfação ligada ao 'objeto' que ela representa [...] Contra o racionalismo, Kant argumenta que os fins supremos não são apenas fins da razão, mas que a razão não faz mais que estabelecer a si mesma ao estabelecê-los. (Deleuze, 2018, p. 10-11)

Mesmo frente à distinção kantiana do soberano bem e à ganga teológica à qual muitos filósofos foram submetidos, Lacan não aceita a solução dada pelo filósofo prussiano. Para o psicanalista, pressupor um Bem supremo conduziria o sujeito a amar ainda mais a transgressão das leis hipotéticas. É nessa perspectiva que o Bem supremo [das Gute] aproxima-se daquilo que Lacan formalizou como o das Ding freudiano.

 

A Lei de Kant com Sade

No seminário A ética da psicanálise, Lacan ([1959-1960] 1999) realiza um questionamento crucial para psicanálise: é o pai na neurose um pai perverso? Naquele período, a resposta de Lacan foi dada a partir da leitura de Paulo, pois, para o apóstolo, a lei mosaica não é má por si mesma, é apenas incapaz de assegurar que o sujeito não a transgrida.

É curioso que, nesse seminário, o psicanalista retome a função paterna a partir das leis mosaicas, deixando a opacidade da lei - análoga ao imperativa kantiano - ao supereu, tática há muito conhecida desde o escrito Funções da psicanálise em criminologia.

Se nossa experiência com os psicopatas levou-nos à articulação da natureza com a cultura, nela descobrimos essa instância obscura, cega e tirânica que parece ser a antinomia, no polo biológico do indivíduo, do ideal do Dever puro que o pensamento kantiano. (Lacan, [1950] 1998, p. 138)

É apenas no escrito Subversão do sujeito e dialética do desejo que Lacan ([1960] 1998) retira a função do pai da condição de leis contingenciais, para pensá-lo, finalmente, enquanto a pura forma da lei. Assim, ele aproxima, não apenas o supereu da lei kantiana, mas essencialmente a lei paterna. Isso é o que permite que a lei do pai se torne insuficiente para distinguir a perversão e a neurose, conforme salienta Lacan ([1963] 2005) na primeira apresentação do seminário interrompido, intitulado Nomes-do-Pai.

Pois bem, cabe-nos interrogar quais são as consequências de pensar o pai segundo uma lei estruturalmente análoga a Kant. Comecemos por abordar o imperativo categórico de Kant. Para Kant o imperativo categórico é uma ação moral que deve ser compreendida como uma instância livre e incondicionada de qualquer determinação empírica que porventura possa incidir sobre a lei moral.

Nota-se que, para o filósofo, há uma espécie de amor a priori à Lei, uma consciência da obrigação de dever, sem que qualquer expectativa de recompensação futura possa ser observada.

Enquanto o sujeito kantiano deve agir conforme a prática incondicional da razão, não é possível inferir o mesmo com relação ao sujeito lacaniano. Afinal, a criança somente é capaz de abrir mão do objeto da demanda, na condição de obter um gozo no futuro. Para a criança, ao contrário da consciência da obrigação do dever, trata-se de alcançar futuramente a possibilidade de tamponar a falta engendrada pela castração.

Porém, é imprescindível observar que, ao abrir mão de um objeto no aqui agora da demanda, a criança se depara com a opacidade de uma lei, cuja importância se revela na medida em que representa a rejeição radical dos objetos fenomênicos.

Pela reaproximação entre Kant e Lacan, cabe questionar: a lei paterna se aproxima da lógica kantiana, porque confere a ela a dimensão tirânica e cega? Afinal, o filósofo prussiano foi conhecido como um autor que propunha a boa vontade a partir de uma ética incorruptível. A resposta nos é dada a partir de um terceiro autor, o Marquês de Sade. Em Kant com Sade, Lacan ([1963] 1998) observa que o Dever puro, quando analisado de perto, resguarda em sua letra uma lógica equivalente à lei sadiana.

Tal afirmativa permite compreender a vereda tomada pelo psicanalista quando ele menciona que Sade também "[...] deteve-se nisso, no ponto em que se ata o desejo à lei" (Lacan, [1963] 1998, p. 80). Assim, "[...] sempre se está do mesmo lado, o bom e o mau" (Lacan, [1963] 1998, p. 799), o que permite explicitar a lei de Kant e a lei de Sade. Ora, em que medida é possível propor tamanha equivalência?

Para Lacan, é a partir do escrito Os infortúnios da virtude que a obra de Kant pôde vir a ser melhor elucidada, o que permite afirmar que Sade (2015) traz verdade e complementa a teoria moral kantiana. Isso porque, também para a filosofia do Marquês, é notório um rebaixamento do sensível ou empírico. Não por acaso, o conceito de apatia foi tão ressaltado por inúmeros leitores de Sade.

Essa apatia se manifesta como a rejeição do pathos, uma recusa absoluta de todas as leis e objetos sensíveis em benefício de um prazer reservado no nível das leis da natureza, ou desse além do mundo fenomênico.

Vale salientar que a assimilação entre Kant e Sade deve ser compreendida como uma aproximação perigosa. Isso porque Sade permite mencionar a destruição de leis que fundam a civilização, mas tal prerrogativa não se encontra em Kant.

Cabe observar que é incorreta a interpretação de que haveria uma apatia em Kant como rejeição radical do mundo fenomênico. É verdade que Kant se preocupa com os critérios da ação moral justa, sem que o empírico seja critério de moralidade, mas ele não é contra o empírico ou o prazer.

Vemos que o filósofo valoriza a beleza da natureza na Crítica da faculdade de julgar, e o prazer é ainda um tema central na estética kantiana (Assumpção, 2014). Trata-se, assim, de uma deformação da obra kantiana com intuito de aproximá-la da filosofia de Sade, tese central para que Lacan abordasse a Lei paterna a partir de uma lei gozadora.

Pois bem, feita essa pertinente observação, retomemos a interpretação lacaniana do escrito Os infortúnios da virtude. Notamos que Sade (2015) retoma os deveres morais, as leis sociais e as leis jurídicas como causa dos infortúnios daqueles que as praticam. Virtuoso é aquele que não cede aos sentimentos de compaixão e de benevolência para com o outro, destinando suas ações e suas energias à realização de crimes e atos disruptivos contra a civilização. Sade, porém, não descreve o simples rebaixamento do mundo sensível em prol do caos. Ele o faz em Nome da Natureza, para ele, o único Nome a ser respeitado.

Nota-se que o sujeito de Sade é aquele que toma o objeto sensível como nulo, de modo que o empírico se torna perfeitamente adequado ao imperativo do gozo. Ele não concebe a possibilidade de que tenhamos qualquer resistência dos objetos frente à lei da natureza/Outro imperativo. Há absoluta indiferença em relação ao mundo fenomênico, que apenas serve para satisfazer a natureza sadiana.

A prova de que existe apenas a necessidade de uma substituição combinatória, na qual o objeto é nulo, sem alienação ao empírico, é apresentada por Lacan quando ele sugere que nem mesmo a exigência de uma beleza esplendorosa para as vítimas (o que poderia servir como uma espécie de resistência ao puro imperativo, em que o desejo é capturado por um objeto fenomênico), serve para capturar o desejo de Sade, já que tal exigência de beleza para todas as personagens se mantém sempre "inalterável" (Lacan, [1963] 1998, p. 787). Eis o valor de Justine para a trama do Marquês.

Tal compreensão permite ao escritor se desfazer dessas mulheres sem que o objeto, de fato, apreenda o desejo do narrador. Em outras palavras, o que vale uma moça esplendorosa se há outra para substituí-la? Isso permite a Sade tomar essas mulheres como um objeto nulo.

Portanto, é possível interpretar que, na fantasia sadiana, o objeto que aliena não opera como resistência à apatia/rejeição do patológico, o que faz com que, nos romances do escritor, a morte das mulheres apareça como algo

[...] motivado pela necessidade de substituí-las numa combinatória, a única que exige sua multiplicidade. (Lacan, [1963] 1998, p. 787)

Assim, entende-se que um pai perverso em Lacan não se refere a um pai abusador, mas a um significante que representa a rejeição radical do mundo fenomênico, sem que nenhum objeto possa captar o desejo do sujeito. Esse significante, sim, deve ser posto como inerente à fantasia do sujeito neurótico.

Para pensarmos numa saída não transgressiva, veremos que Lacan dá um passo adiante, distinguindo a neurose e a perversão pela pluralização dos Nomes-do-Pai (objeto a).

Nós, porém, deixaremos tal percurso para um próximo trabalho.φ

 

Referências

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Recebido em: 05/06/2020
Aprovado em: 18/09/2020

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