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Reverso

Print version ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte July/Dec. 2021

 

EDITORIAL

 

Editorial

 

 

Marília Brandão Lemos de Morais Kallas

 

 

A Reverso se abre com uma homenagem póstuma à nossa querida colega do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, a psiquiatra e psicanalista isabela Santoro Campanário, falecida em maio de 2021, vítima da covid-19. Mãe de André e Antônio, isabela era formada em medicina pela UFMG, tinha especialização em psiquiatria da infância e adolescência, mestrado e doutorado pela UFMG, e pósdoutorado recém-concluído na USP. Em 2003, implantou o projeto Intervenção a Tempo (atendimento psicanalítico mãe-bebê em risco de constituição do sujeito) na Rede Municipal de Saúde de Belo Horizonte e, em 2008, publicou o livro Espelho, espelho meu: a psicanálise e o tratamento precoce do autismo. Foi coordenadora da Comissão de Publicação da revista Reverso entre jun. 2008 e set. 2011, dos números 55 a 62. nesta edição, publicamos o texto de Juliana Marques Caldeira Borges, que lhe reverencia a memória e faz jus ao seu legado.

Somos seres de fala. E a linguagem é o que nos humaniza. Pela escuta transformamos os sons em signos acústicos formados por significantes que remetem a outros significantes, propiciando a transmissão e a comunicação da cadeia significante através das palavras. Por meio da escrita, o psicanalista grava, imobiliza palavras e ideias num momento fugidio e flutuante, e as lança à brancura da página, que espera pacientemente os hieroglifos das teclas de um computador. A escrita, em psicanálise, necessita muitas vezes se utilizar da arte e da poesia para bordejar o inefável e indizível que a clínica psicanalítica nos apresenta.

O quadro que ilustra nossa Reverso 82 é A origem do mundo [L'Origine du monde, 1866], do pintor do Realismo Gustave Courbet. Essa tela permaneceu escondida e clandestina grande parte do tempo, desde seu primeiro proprietário, o diplomata egípcio Khaliu-Bey, e ficava pendurada na salle de bain encoberta por um pequeno véu. Passou depois a ser parte de espólio de guerra da união Soviética que, quando invadiu a Hungria, a retirou do seu novo proprietário.

A obra esteve desaparecida até 1954, quando chegou às mãos do psicanalista Jacques Lacan e permaneceu escondida em sua casa de campo atrás de outra tela, a do pintor surrealista André Masson (Terra erótica, de 1954). o interdito que a cercou e o impacto que provocava nas poucas pessoas que tiveram o privilégio de vê-la, se davam em função da sociedade e da arte do seu tempo (séculos xix e xx) e do equilíbrio das categorias que as constituíram naquele momento, de modo que A origem do mundo diz muito sobre elas. Lacan foi o último proprietário da pintura. Em 1981 o quadro foi passado para o patrimônio cultural francês e está em exposição permanente no Museu D'orsay, em Paris. A psicanálise foi criada na segunda metade do século xix, através da escuta da histérica, cujos sintomas velavam e desvelavam os véus da sexualidade, assim como hoje a história descortina os véus da "moral sexual civilizada" daquela época.

O trabalho Queerizar: "o que não cessa de não se inscrever" com Derrida, de Fabrice Bourlez, autor convidado desta edição, faz a proposta de pensar a desconstrução de um ponto de vista psicanalítico, a partir de uma releitura de Derrida, a fim de circunscrever as implicações éticas e políticas de uma clínica contemporânea, na escuta da não relação sexual lacaniana, daquilo "que não cessa de se inscrever" e das teorias queer. Agradecemos ao colega Carlos Mello pelo convite ao autor mediado pelo psicanalista Benoît Le Bouteiller.

"Inimiga" da moral sexual civilizada e dos bons costumes: reflexões sobre um estranho retrato de mulher é o trabalho apresentado pelos autores Elizabeth Fátima Teodoro e Wilson Camilo Chaves, que se utilizam de textos freudianos e da proposição de Assoun sobre a mulher, que, sob as vestes da histeria, assume posição de sintoma e destino da civilização. Se a histeria pode ser vista como efeito do conflito entre a sexualidade feminina e as imposições de uma moral sexual, a histérica expressaria, no seu próprio corpo, o mal-estar do processo civilizatório, apontando para o mundo contemporâneo, onde a mulher quer ser reconhecida não apenas pela sua natureza biológica mas também pela conquista de uma identidade profissional.

Em Considerações sobre a divisão do sujeito e do objeto nas escolhas amorosas, Guilherme Henderson e Daniela Chatelard examinam as dificuldades impostas ao sujeito pelas suas escolhas amorosas, não necessariamente sintomáticas, mas que possuem uma lógica inconsciente. Além disso, analisam dois exemplos do texto O mito individual do neurótico (Lacan, 1952) e, à luz dos trabalhos de Freud e Lacan, propõem uma compreensão dos sintomas e das fantasias que podem criar essas dificuldades.

Que violências nos habitam? Essa é a pergunta que dá o título ao trabalho de Scheherazade Paes de Abreu e Breno Ferreira Pena, baseado no texto de Freud Psicologia das massas e análise do Eu. o Supereu é a instância para se entender o modo de funcionar destrutivo presente no âmago de todo ser humano. Frente à pulsão de morte, o analista não deve recuar, afirmam os autores.

No artigo O sujeito, seu corpo e o adoecer, Marcos de Moura oliveira dialoga com diversos psicanalistas, desde Freud e Lacan até Lou Andreas-Salomé, Balint, Ferenczi, Laplanche, Pontalis e Melanie Klein, a respeito do adoecimento do sujeito e seu corpo, da psicossomática, ressignificando as diversas formas de adoecer como traços do desenvolvimento histórico e a psicanálise como possibilidade de reescrita dessa história.

Alexandre Patricio de Almeida, em seu trabalho A transmissão da psicanálise em tempos de pandemia: um olhar para a saúde do analista, nos fala sobre a transmissão da psicanálise baseada na teoria psicanalítica e na importância da experiência analítica que advém da análise pessoal e da supervisão. Das dificuldades e facilidades da psicanálise on-line destes novos tempos, dialoga com Ferenczi sobre uma ética do cuidado (de si e do outro), da necessidade de cuidado do próprio profissional analista, pois só pode se dispor a cuidar quem um dia recebeu tais cuidados.

Eliana Rodrigues Pereira Mendes, em Criando filhos no século XXI, discute a formação e a evolução da família através dos tempos, as novas configurações familiares do nosso século e aquilo que pode interferir na criação dos filhos. Discute também o que levou à desigualdade dos papéis femininos e masculinos, às questões da sobrevivência da família e como essa sobrevivência pode se dar. Ressalta que, do ponto de vista psicanalítico, a família tem que ser considerada em sua particularidade e que pais e filhos possam, o quanto possível, respeitar a subjetividade de cada um.

Ana Paula Paes de Paula nos fala sobre O encontro entre as epistemologias freudiana e frankfurtiana: bases para a construção do pensamento crítico. A Escola de Frankfurt foi uma escola de análise e pensamento filosófico e sociológico, criada em 1923, na universidade de Frankfurt, Alemanha. Recorrendo principalmente aos trabalhos de Paul-Laurent Assoun, Hilton Japiassu e Sergio Rouanet, a autora salienta que a epistemologia freudiana é intrinsicamente constitutiva da epistemologia frankfurtiana e mostra que a compreensão da teoria crítica passa por uma leitura atenta da metapsicologia e epistemologia de Freud.

Daniel Röhe nos apresenta Erotismo e crítica social em "O que será", de Chico Buarque. o romance de Jorge Amado Dona Flor e seus dois maridos foi levado ao cinema pelo cineasta Bruno Barreto em 1976, filme para o qual Chico Buarque compôs o tríptico O que será. o autor propõe questões psicanalíticas para o trio Dona Flor, Vadinho e Dr. Teodoro, analisa o parricídio, a crise sociopolítica e apresenta temas musicológicos para entender o enigma proposto por Chico Buarque, que esconde o significado do amor, desde Camões.

Helena Machado Lara nos brinda com O sonho de Líbia Moirã: uma interpretação freudiana, baseado no conto Líbia Moirã, da escritora mineira Conceição Evaristo. o artigo aborda os conceitos de trauma, fixação no trauma, sonhos de angústia e repetição embasados especialmente na teoria de Freud e de Lacan.

Temos ainda o discurso de Guiomar Antonieta Lage, no término de sua gestão como presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, entre 2017 e 2021, com o tema Bordejar, bordando, andando.

A atual presidente do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, Maria Auxiliadora Toledo Garcia Freire, nos apresenta seu discurso de posse para a diretoria do triênio 2021-2023.

A elas, nosso reconhecimento.

Gostaria de agradecer aos colegas da Comissão de Publicação da Revista Reverso, Maria Mazzarello Cotta Ribeiro, coordenadora, Ana Boczar, Carlos Antônio Andrade Mello, Eliana Rodrigues Pereira Mendes e Paulo Roberto Ceccarelli, pela leitura primorosa e seleção dos trabalhos.

A revisão dos textos é feita por Dila Bragança de Mendonça, a quem agradecemos, assim como à secretária do CPMG Adriana Dias Bastos e à bibliotecária Marta Aparecida Almeida e Almeida e ao Valdinei do Carmo, pelo projeto gráfico e diagramação.

E por último, e mais importante, somos gratos aos autores e aos nossos leitores, para quem esta edição foi cuidadosamente preparada.

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