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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

TEORIA E CLÍNICA PSICANALÍTICA

 

Que violências nos habitam? Um percurso em que a história tem efeitos de corrosão

 

What types of violence inhabit us? A path where history has effects of corrosion

 

 

Scheherazade Paes de AbreuI; Breno Ferreira PenaII

IPsicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Mestranda em Estudos Psicanalíticos pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: scheherazade_abreu@yahoo.com.br
IIPsicólogo. Psicanalista. Pós-graduado em gestão de pessoas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Doutor e mestre em psicologia pela PUC Minas. Professor da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da Residência Multiprofissional, Complexo Hospitalar UFPA-EBSERH, Unidade João de Barros Barreto. E-mail: brenopena@hotmail.com

 

 


RESUMO

Que violências nos habitam? Qual é a sua relação na cisão do sujeito contra si mesmo? A guilhotina realiza um efeito de corte: separa a cabeça do corpo. O que se propõe como ponto de insurgência é o texto de Freud Psicologia das massas e análise do Eu. A psicanálise se encontra em relação com o mundo no qual se vive; assim, a clínica não é desenraizada das estruturas normativas da sociedade. Sabe-se que, ao procurar a determinação, é importante ter em conta o imprevisível que nos constitui. A incidência do supereu está onde emerge o esquartejamento do sujeito. É a instância para se entender o modo de funcionar "destrutivo que habita todo ser falante". Portanto, o analista não deve recuar diante da pulsão de morte. Por fim, narrar a história tem efeitos de corrosão no sujeito.

Palavras-chave: Violência, Psicologia das massas, Supereu, Pulsão de morte, História.


ABSTRACT

What types of violence inhabit us, and what is its relation in the split between a subject against himself? The guillotine performs a cutting effect: it separates the head from the body. This text proposes a point of insurgency in Freud's text "Psychology of the masses and analysis of the Self". Psychoanalysis finds itself in relation with the world where we live, thus, the clinic is not uprooted from the normative structures of society. It is known that when looking for determination, it is important to take into account the unpredictable that constitutes us. The incidence of the superego is where the dismemberment of the subject emerges. It is the instance that enable to understand the "destructive" way of functioning that inhabits every speaking being. Therefore, the analyst must not retreat from the death drive. Finally, telling the history has effects of corrosion in the individual.

Keywords: Violence, Mass Psychology, Superego, Death Drive, History.


 

 

Quando um texto começa? A pergunta é quase tão difícil de responder quanto responder com precisão cirúrgica qual é a violência que nos habita, como indicava Virginia Woolf (2018, p. 118) sobre a palestra decapitada:

Quando cortamos o cabeçalho de uma palestra, ela fica como uma galinha decapitada. Corre em círculos até cair morta - é o que dizem os que já mataram alguma galinha.

Freud ([1921] 2020, p. 168-170) descreve através de uma paródia uma situação na qual o pânico irrompe: um soldado grita: "O general perdeu a cabeça" e imediatamente todos disparam em fuga. A perda da crença no líder irrompe em pânico e desvanece ligações afetivas. Cada um se preocupa consigo mesmo, e uma angústia sem sentido é liberada. Por que o medo se tornou incalculável? As ligações afetivas que antes apaziguavam o perigo deixam de existir.

Decapitar uma palestra é necessário, caso contrário de que maneira é possível nascer um texto já na iminência de uma cisão? Por cisão entende-se o ato ou efeito de corte, ou ser alvo de corte, divisão, falta de acordo.

O último rei da França morre em 21 de janeiro de 1793. O corpo de um rei é duplo, ou seja, ao corpo mortal corresponde o corpo inviolável e símbolo da nação. Entretanto, é contra esse princípio que a guilhotina desfere o golpe: separa a cabeça do corpo do Estado. Através de um jorro de sangue, ocorre a degola de Luís XVI.

A guilhotina passou a ser uma realidade representada no cotidiano. Desenhistas tentam capturar a expressão diante da morte. Outros retratam o carrasco que segura a cabeça degolada. Não se diz mais ser "guilhotinado", mas, por exemplo "pôr a cabeça na ratoeira". Perdem-se em média cinco cabeças por dia, de modo que são quase três mil pessoas guilhotinadas por ano, na Paris de 1794. (Murat, 2012, p. 50-53).

É Joseph Guillotin, deputado da assembleia constituinte, que propõe em 1789 a nova forma de execução: o criminoso será decapitado pelo efeito de um simples mecanismo. A França não inventou essa forma de execução, mas a aprimorou e fez a morte entrar na era técnica: a regulagem da báscula à qual o condenado é preso, a criação da luneta que mantém a cabeça imóvel, a lâmina oblíqua que torna o efeito infalível.

Entretanto, resta a incerteza sobre a possibilidade de que a consciência sobreviva após a decapitação. Intervêm aqui algumas questões: Deve a morte ser indolor? A consciência sobrevive à carne? O que é um "eu" dividido?

Há testemunhos de cabeças que rangiam dentes depois de separadas do corpo. Porém, o ser humano, cuja cabeça foi secionada na medula espinhal, não pode de maneira alguma sofrer assim como a galinha que, decapitada, sai correndo, não sente nada. (Murat, 2012, p. 55-57).

Por vários anos, na França, a guilhotina se torna um delírio comum entre os alienados. Pacientes hospitalizados afirmam que foram decapitados. Em 1802, um homem internado no hospital afirmava ter sido decapitado e estava portando a cabeça de outrem. A pesquisadora e historiadora Laure Murat (2012) parte da questão de como a política poderia influenciar o delírio, e qual era o papel na eclosão. Que inquietações sociais os delírios trazem por dentro?

Para Murat (2012, p. 319), o delírio e a vida onírica têm muito a dizer sobre a violência política e social. O horror das cabeças cortadas conduz à expressão "perder a cabeça", que é também metáfora do enlouquecer. Qual é a relação da cabeça com o corpo? De que maneira responde à integridade do eu e da consciência?

É necessário ressaltar que este artigo parte de uma questão que o alicerça: que violências nos habitam, e assim, vagam ao mesmo tempo pela vida, pelos sonhos, pelos devaneios diurnos, e os tornam pesadelos?

O que se propõe como ponto de partida surge através da leitura de Psicologia das massas e análise do Eu (Freud, [1921] 2020), mas desde já se adianta que se pretende manter vivas a instauração da pergunta e a força com a qual a leitura de um texto de Freud sempre inaugura algo naquele que o lê.

A psicanálise se encontra em relação com o mundo em que se vive assim como o sujeito que se escuta no privado do consultório está em uma relação com o social. Freud ([1921] 2020, p. 137) afirma que a psicologia individual é também psicologia social, pois, na vida psíquica do sujeito, o eu se constitui tomando o outro como modelo, objeto, auxiliar e adversário.

Na psicologia das massas, é necessário considerar as relações nas quais se recebe influência apenas de uma única pessoa ou de um número bastante reduzido de pessoas, pois dois fazem uma massa. Com efeito, é também entre os mais íntimos, nas relações com familiares, com a pessoa amada, com o amigo, com o professor que os inícios de uma psicologia social podem ocorrer.

Nota-se que os territórios da clínica psicanalítica nunca estiveram desenraiza-dos das estruturas normativas da sociedade, da cultura e da religião. Nesse sentido, os textos sociais se expandem no horizonte de Freud, ao passo que grandes narrativas clínicas parecem perder força.

A forma de apresentar a clínica é reinventada, a escrita será inseparável da reflexão metapsicológica, bem como da reflexão social e cultural, não mais a grande narrativa, mas o fragmento clínico. A prática clínica é atravessada pelo que se precipita das formas de vida social na vida psíquica do sujeito, o que torna impróprio definir uma divisão entre textos clínicos, textos metapsicológicos e textos sociais. (Iannini, 2020, p. 11-35).

O que Freud inventou sobre a política, nos diz Brousse (2018, p. 38), foi a ideia expressa em sua práxis de que tratar um sintoma é contestar um discurso, é ir mais longe do que uma tentativa frustrada, que se rende à impotência. O que é monstruo-so em Freud é o fato de ele ter desnudado aquilo que era segregado.

O analista, tendo ou não uma participação coletiva, não pode esquecer que o fato de agir como analista já é político. Lacan apud Brousse (2018, p. 38) dizia que a análise é "a irrupção do privado no público". Portanto, não é nem privado, nem público. É assim a irrupção, uma espécie de tempo sem duração, ou seja, um ato. Vale lembrar que o lugar mais trágico de toda civilização é a pulsão de morte.

 

Uma parcela pulsional inclinada para um modo destrutivo

De que maneira entra a violência neste texto? "Como o elefante que fiz entrar outro dia na sala por intermédio da palavra elefante", dirá Lacan ([1955] 1998, p. 315).

No Dicionário Houaiss (2009), consta que violência é a ação ou efeito de empregar força física ou intimidação moral; exercício injusto ou discriminatório ilegal de poder; força súbita que se faz sentir com intensidade; fúria; constrangimento físico ou moral exercido sobre alguém para obrigá-lo a submeter-se à vontade de outrem; coação; opressão; tirania.

Quem estabelece e diz o que é violência? Quem diz que é violência? Uma leitura da definição poderia nos levar a crer que todas as violências são iguais.

Em Žižek (2014, p. 161-166), estigmatizar a violência, condená-la como má é uma operação ideológica por excelência. Diante disso, qualificá-la como "boa" ou "má" cria um impasse que, ao estabelecer critérios que definem uma violência como boa, incorreríamos em desvio, ao fazer uso desses critérios para justificar os próprios atos de violência.

Assim, a violência não seria uma propriedade exclusiva de certos atos. O mesmo ato pode parecer violento ou não violento. Sofrer uma violência fornece a permissão necessária para agir com signo da autodefesa? Diversas atrocidades são praticadas por autodefesa; porém, se houver justificativa moral para a retaliação, até que ponto isso se torna infindável? De que maneira é possível frente à violência recusar-se a retornar a ela? pergunta Butler (2017, p. 131).

Neste ponto, o que é negado de bom grado, dirá Freud, é que o ser humano não tem natureza pacata e ávida de amor, mas uma poderosa parcela pulsional inclinada para a agressão.

Um grande poeta pode se autorizar a expressar verdades psicológicas severamente proibidas. nos diz Freud ([1930] 2020, p. 362, nota de rodapé) citando Heinrich Heine, que confessa:

Eu tenho um modo de pensar dos mais pacíficos. Meus desejos são: uma modesta cabana, um teto de palha, mas uma boa cama, uma boa comida, leite e manteiga bem frescos, flores na janela, belas árvores na frente da porta, e se o bom Deus quiser me fazer bem feliz, ele irá me permitir experimentar a alegria de que nessas árvores estejam enforcados, digamos, seis ou sete de meus inimigos. Com o coração compadecido diante de sua morte, eu os perdoarei por toda a injustiça que me infligiram na vida - é verdade que temos de perdoar nossos inimigos, mas não antes que sejam enforcados.

"O que ela [a massa] exige de seus heróis é a força, até mesmo a violência", escreve Freud ([1921] 2020, p. 148), pois na reunião dos indivíduos na massa, as inibições serão suspensas, e todos os instintos cruéis, brutais, destrutivos que estavam dormentes são despertados para a livre satisfação pulsional. Nas massas as ideias mais opostas podem coexistir e tolerar-se, sem que o resultado seja o conflito, assim como na vida anímica inconsciente. Além disso, a massa está submetida ao poder realmente mágico das palavras, capazes de provocar na alma as mais terríveis tormentas. (Freud, [1921] 2020, p. 148-149).

As injúrias do cotidiano dizem: "você sabe que o fulano é um...", devem ser pensadas em uma estrutura que Lacan dirá que todo significante faz injúria ao sujeito, isto é, todo juízo que atribui um significante a um sujeito exerce uma violência sobre esse sujeito.

Por isso, a injúria não depende tanto do sentido do significante quanto da própria predicação, a predicação que vem do outro, um Outro que elabora "você é isso ou aquilo" - seja isso bom ou mau. O "isso ou aquilo", o significante predicado faz injúria ao sujeito. Assim, há uma violência da predicação, as palavras que nos imputam também nos violentam. (Soler, 2018, p. 43).

Na massa, no grupo, experimenta-se através de influência uma alteração profunda da atividade anímica. Freud ([1921] 2020, p. 155), dirá que a intensificação da afetividade é algo que ocorre. Nesse sentido, os participantes se entregam às paixões, a ponto de perder a própria delimitação individual. Tal contágio de sentimentos ocorre através de um estado de afetos que foram percebidos e despertam o mesmo afeto naquele que os percebeu. Como uma compulsão automática se torna cada vez mais forte quanto mais o mesmo afeto for perceptível para mais pessoas. É inegável, afirma Freud ([1921] 2020, p. 155), que se pode observar algo como uma compulsão a fazer o mesmo que os outros e permanecer em sintonia, o que configura o contágio.

Por que, então, cedemos regularmente ao contágio? pergunta Freud ([1921] 2020, p. 160-161). A influência sugestiva do grupo nos obriga a obedecer e imitar, e isso, por sua vez, induz o afeto. Esse é um ponto importante, pois veremos que Freud afirma que, a sugestão é também capacidade de ser sugestionado. Assim, é um fenômeno originário, não mais passível de redução, um fato fundamental da vida anímica.

Gabriel Tarde apud Safatle (2020, p. 97) dirá sobre o comportamento imitativo das massas que "o ser social, enquanto social, é por essência um imitador". No entanto, essa imitação, fundamental para a reprodução do vínculo social, seria um fenômeno inconsciente.

Nesse sentido, o homem social é um verdadeiro "sonâmbulo", como alguém em estado constante de hipnose, já que em todos os três casos, sonambulismo, hipnose e ação social, encontra-se a ilusão de ter ideias espontâneas, entretanto elas são sugestionadas.

Podemos nos perguntar sobre as aproximações entre o conceito de robô de analista e o sonâmbulo. Para Lacan ([1953] 1998, p. 360), a psicanálise é uma prática subordinada ao que há de mais particular no sujeito, pois Freud afirma em o Homem dos Lobos que a ciência analítica deve ser recolocada em questão na análise de cada caso assim como a formação do analista.

Notemos que o analista reconhece no seu saber o sintoma de sua ignorância. Assim, a função dos mestres é formá-lo "nesse não saber, sem o que ele nunca será nada além de um robô de analista". (Lacan ([1953] 1998, p. 360). Em outras palavras, um robô é uma máquina automática de aspecto humano capaz de movimentar e de agir; efetua operações repetidas, que, por sua vez, não faz uso do livre arbítrio.

Até que ponto uma análise é destinada a restituir a capacidade do sujeito a realizar valores normativos no trabalho, na família e na polis? Para Safatle (2018, p. 80-85), Lacan, ao afirmar que "não há razão alguma para fazermos o papel de fiadores dos devaneios burgueses", explica a aposta de retirar da psicanálise toda a sua condição terapêutica e adaptativa, para transformá-la em experiência capaz de nos levar a confrontar um ato.

O sujeito só é sujeito quando for capaz de experimentar em si mesmo algo que o ultrapassa, algo que faz com que ele nunca seja um exato igual a si mesmo. Segundo Brousse (2018, p. 41), existem perdas de identificação, mas não significa que se finda uma análise sem ideais, porém não se tem mais a mesma posição em relação aos ideais.

Além disso, nesse contexto de relação entre o privado e o público, até que ponto tal relação pode incorrer em um tratamento orientado por ideais normativos? "Apenas violência" dirá Freud ([1919] 2019, p. 199), pois, a psicanálise não pode estar a serviço de determinada visão de mundo [Weltanschauung] colocada ao paciente com a finalidade de enobrecimento.

Quero dizer que isso é apenas violência, mesmo que encoberta pelas mais nobres intenções. (Freud, [1919] 2019, p. 199).

A formação do analista, pela qual ele próprio é o responsável, é inseparável desse fundamento, pois a psicanálise não pode ser um dispositivo de controle. Assim, Freud ([1919] 2017) dirá que recusamos enfaticamente a transformar o paciente em nossa propriedade, a formar para ele o seu destino, a impor-lhe os nossos ideais e, com a altivez do Criador, formá-lo a nossa semelhança, para a nossa satisfação.

Além disso, Freud ([1919] 2017, p. 198-199) afirma que foi possível ajudar pessoas com as quais não tinha nenhum laço, sem incomodá-las em suas peculiaridades. O paciente não se torna semelhante a nós, mas se trata da libertação e da concretização de sua própria essência. A propósito, a teoria e a técnica podem ser aperfeiçoadas, ao contrário da premissa da ética.

Ao escrever sobre o ideal do eu, Freud ([1921] 2020, p. 184) dirá de um eu dividido decomposto em duas partes, uma das quais se enfurece com a outra. A outra parte é aquela que é modificada pela introjeção e inclui o objeto perdido.

Mas não desconhecemos a parte que age de maneira cruel: é uma instância crítica do eu. Esse é o "ideal do eu", ao qual são atribuídas funções de auto-observação, consciência moral, censura onírica e a influência do recalque. Esses são alguns fundamentos da cisão do sujeito contra si mesmo, da autonomia de uma instância, e um meio de encontrar elaborações para a crueldade. O amparo que a cultura oferece impõe ao sujeito que pague um tributo de infelicidade e submissão, sob a pretensão de domesticar a pulsão de morte.

Entretanto, a ideia de supereu será formulada por Freud em O ego e o id, de 1923, como representante do isso, lado pulsional e herdeiro do complexo de Édipo, portanto entrelaçado ao ideal do eu. Mas Freud também demarca o lado severo dos imperativos superegoicos, que são fomentados através da pulsão de morte.

Pena (2020, p. 3) esclarece que, no ensino de Lacan, o supereu jamais será considerado herdeiro do complexo de Édipo. O supereu em Lacan é concebido de forma a não deixar dúvidas sobre o seu funcionamento. E tem a sua função definida com uma única diretriz: goze, a qualquer custo. Assim, pensar o supereu, demarcar sua gula estrutural e seu modo de funcionar é um ponto importante, pois essa instância é responsável por gerenciar a pulsão de morte e seus efeitos sobre a vida. Nesse sentido, o supereu é uma instância fundamental para entender o modo de funcionar "destrutivo que habita todo ser falante". (Pena, 2020, p. 15).

Nota-se que a incidência do supereu está onde emerge o esquartejamento do sujeito, uma intromissão capaz de fazer divisão (tu és [...]), o externo se faz íntimo, são mandatos insensatos contra si mesmo que irrompem no mais "uniforme" dos humanos, compulsões irrefreáveis, coerções inexplicáveis, obediências masoquistas, traços de caráter permanentes, práticas autodestrutivas, atos expiatórios e sacrificiais ligados a culpas infundadas, fracassos como resposta ao êxito, estranhas pioras em momentos de melhora, delitos cometidos para obter castigos, sentimento de culpa obscuro, crimes sem motivação; esse é o "arsenal nuclear" do supereu, esclarece Gerez-Ambertín (2009, p. 20).

O eu nem sempre é um bom nadador. Pode naufragar entre o isso e o supereu, em um espaço não orientável, no qual se encontram em continuidade o dentro e o fora, esclarece Gerez-Ambertín (2020, p. 21). Apesar dos sacrifícios, sempre haverá outra coisa que o divida, pois a pulsão de morte é força constante. Lembremo-nos de que não podemos retroceder diante da pulsão de morte, ou seja, elaborar o supereu de modo benevolente.

Em Lacan ([1948] 1998, p. 104-108), a agressividade na experiência é dada como intenção de agressão e imagem de fragmentação corporal, e a violência se encontra em uma convenção de diálogo. Nessas experiências há vetores eletivos, tais como imagens de castração, mutilação, desmembramento, desagregação, devoração, explosão do corpo, ou seja, imagos de um corpo fragmentado. Para isso, basta estar atento ao brincar das crianças, pois arrancar a cabeça e furar a barriga são temas recorrentes, e a experiência de desmantelar a boneca só faz satisfazer. É possível reencontrar esses fantasmas nos sonhos, por sinal, de um modo particular, no momento em que uma análise parece refletir o fundo das fixações mais arcaicas.

Para Campos (2015, p. 213-214), ao percorrer a via do significante, do simbólico e do sentido, a análise se faz infinita, pautada no paradigma do ideal. Portanto, a via do significante não basta para concluir uma análise, tampouco perseverar com o supereu. Lacan apud Campos propõe um final de análise pautada na ética de Freud: "Lá onde o isso estava eu [como sujeito] devo advir". Nesse sentido, faz-se necessário um devir da pulsão, é assentir com a pulsão em detrimento da demanda. O sujeito não busca mais permissão no supereu, mas se autoriza, o que é sinal de que há um mais além do supereu, uma aposta radical. No final de análise, quando se esgotam os sentidos do supereu, há a possibilidade de levar em conta as forças da pulsão a favor do sujeito. Uma nova responsabilização de cada um por seu desejo.

A violência, o desamparo e a cisão são peças constituintes dos sujeitos, mesmo que com diferentes pontes. Sabe-se que, ao procurar a determinação, é importante ter em conta o imprevisível, que também nos constitui. Assim, cada analista não deve recuar diante do horror, considerando que evitar a pulsão de morte também pode ser um meio de recuar. Que violências o habitam? Como perseverar com o supereu? Qual solução original você encontrou na experiência analítica? Como pode transmitir?

A aventura é sempre um evento de palavra, e ocorre no curso da narrativa. Para Agamben, (2018, p. 53), a aventura é indissociável da palavra que a conta, e aquele que está implicado e convocado à aventura está também implicado, enquanto ser falante, e deverá fazer a experiência de narrar sua aventura. Ou seja, "a aventura que o chamou na palavra, é dita a partir da palavra daquele que chamou e não existe antes dela". Mas isso não é tudo. É preciso, ao narrar a aventura, sentir a escrita da história como um acontecer.

Para Abreu (2020, p. 180), narrar a história tem efeitos de corrosão no sujeito. Pois, a escrita da história é um fator que pode favorecer o desgaste de sentido. Ou seja, a história matéria-prima de uma análise causa efeito de sentido, entretanto faz o desgaste desse mesmo sentido. Isto é, trata-se do centro de gravidade do sujeito.

Sendo assim, como a sugestão é um fenômeno originário e capacidade de ser sugestionado, isso permite trazer ao leitor um conselho para se tornar poema, e é de Anton Tchekhov ([1887] 2019, p. 41) para inventar a escrita textual: "Pega alguma coisa da vida, de todos os dias, sem trama e sem final".

Note-se que o método psicanalítico propõe tratar o real pela letra.φ

 

Referências

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Recebido em: 29/07/2021
Aprovado em: 24/09/2021

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