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versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

Erotismo e crítica social em O que será, de Chico Buarque

 

Eroticism and social criticism in O que será, by Chico Buarque

 

 

Daniel Röhe

Psicólogo pela Universidade de Brasília (2011). Doutor em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília, com publicações no International Forum of Psychoanalysis: "Oedipus goes to the opera" e "Oedipus returns to the opera". Apresentou em 2018 o trabalho Oedipus goes to the opera Psychoanalytical inquiry in Enescu's OEdipe and Stravinsky's Oedipus Rex, em conferência psicanalítica na Islândia. Participou de conferências musicológicas na Finlândia, no Reino Unido e na Grécia, para discutir pesquisa clínica e ópera com estudiosos de musicologia. Seu foco de pesquisa inclui óperas como fontes de insights clínicos. Oferece, desde 2013, serviços psicológicos voltados para o público adulto em Brasília/DF. Iniciou seus estudos em clarinete em 1998. Em 2017, apresentou-se no Theatre of Apollo, Ilha de Syros/Grécia, executando obras do cancioneiro popular brasileiro. Desde 2014 realiza networking com o Prof. Dr. Eero Tarasti, musicólogo e semiólogo da Universidade de Helsinki. E-mail: psicologo.rohe@gmail.com

 

 


RESUMO

Chico Buarque compôs o tríptico O que será para o filme de Bruno Barreto a partir do texto de Jorge Amado. Observamos questões psicanalíticas no triângulo amoroso, composto por Vadinho, Dr. Teodoro e Dona Flor. A versão cinematográfica de 1976 foi analisada em relação ao parricídio e a crítica sociopolítica. Por fim, apresentamos temas musicológicos para entender o enigma proposto por Chico Buarque, que esconde o significado do amor desde Camões, além da sua preocupação com a resistência política durante os seus contemporâneos governos militares.

Palavras-chave: Psicanálise, MPB, Erotismo, Política.


ABSTRACT

Chico Buarque composed the triptych O que será for Bruno Barreto's movie based on a novel by Jorge Amado's, We gathered psychoanalytic comments about love triangle between Vadinho, Dr, Teodoro e Dona Flor, Further, we have interpreted the 1976 movie as a metaphoric parricide with its underlying social criticisms, In the end, we have discussed musicological aspects of Chico's enigmatic song, which hides the meaning of love as it were in Camões's poetry and in the composer's political concerns about resistance against his contemporaneous military government in Brazil.

Keywords: Psychoanalysis, MPB, Eroticism, Politics.


 

 

Introdução (Psicanálise à flor da pele)

A partir do comentário breve de Marilena Chauí (1984) acerca da repressão [sexual] na canção O que será de Chico Buarque, pensamos como desvendar essa composição psicanaliticamente. Trata-se da trilha sonora da primeira adaptação cinematográfica do romance Dona Flor e seus dois maridos, cujo enredo envolve o triângulo amoroso criado pela pena de Jorge Amado ([1966] 2000), composto por Dona Flor, Vadinho e o Dr. Teodoro.

Pensamos em Vadinho desde Freud ([1928] 1961), no seu vício pelo jogo e no ciclo de humilhações no qual ele insere a esposa com "um complexo de culpa". (Amado, [1966] 2000, p. 239). O excesso do primeiro marido de Dona Flor, guiado pelo princípio do prazer, não apenas arruína a possibilidade de seu estabelecimento moral como homem. No seu desequilíbrio, ele acaba encontrando a morte em um domingo de Carnaval.

Dona Flor dirige uma escola de culinária. É preciso pensá-la não enquanto adúltera com grande apetite sexual. Isso porque ela se diferencia de outras personagens da obra amadiana, que foram punidas pelas suas imoralidades. (Silva, 2015).

Ocorre que Dona Flor representa uma reinvenção do feminino que só se satisfaz na integração da jouissance fálica, vivida com o seu segundo marido, o parceiro vivo (Dr. Teodoro), e na jouissance do Outro, que representa aquilo que ela ama além do cotidiano com ele. (Morel, [2000] 2011).

Acostumada por Vadinho a uma dieta rica em calorias, a viúva não se contenta com pouco. Ela precisa de dois remédios: descaramento e casamento, paixão e segurança, desejo e virtude. Tais dualidades remetem "à famosa pergunta de Freud: o que quer uma mulher?". (Silva, 2015, p. 85).

Segundo Vadinho:

Quando era eu só, tinhas meu amor e te faltava tudo, como sofrias! Quando foi só ele, tinhas um tudo, nada te faltava, sofrias ainda mais. Agora, sim, és Dona Flor inteira como deves ser. (Amado, [1966] 2000, p. 435).

A imposição da dupla jouissance e da inserção do segundo marido é posta pela importância de viver uma tranquila "felicidade fálica, mas sem paixão". (Morel, [2000] 2011, p. 150, tradução nossa). Entretanto, como ela não está interessada em morrer de tédio, não é de estranhar o retorno do falecido, com o qual ela desfruta da jouissance do Outro, marcada pela "metáfora da ausência". (Morel, [2000] 2011, p. 150, tradução nossa).

Vadinho, então, representa a recusa em aceitar o falo simbólico (a lei). Pensamos que por esse motivo Morel ([2000] 2011) destaca que o gozo no Outro deve permanecer em segredo, porque se trata de um amor clandestino. Se a lei toma conhecimento dos atos de Vadinho e a condescendência de Dona Flor, ocorre uma ameaça de castração que reativa ansiedades ligadas ao gozo autoerótico da prática do onanismo realizada pelo ludômano. (Freud, [1928] 1961).

Segundo Musolino (2010, p. 188), Vadinho joga com "[...] o manejo do gozo fora do corpo mortal, para ser um corpo encarnado no mental que implementa na mulher desejada", mantido vivo pelo canto da fala na linguagem e pela via do desejo de Dona Flor. Ele é esse som que representa algo além da linguagem. E caso não haja a lei simbólica do falo, o tipo de gozo que ele oferece perde parte significativa do prazer que pode conceder.

 

O filme e a trilha sonora

Segundo Gomes (2018, p. 237),

Dona Flor obteve o posto, por mais de trinta anos, do filme mais visto da história do cinema nacional desde sua estreia em 1976.

Em seu estudo sobre a recepção do filme, Gomes (2018) assinalou críticas incluídas na seção de "dossiês críticos" da revista filme cultura.1 Nela o acadêmico grapiúna elogiou:

Acho o filme belo e denso, creio que está à altura das melhores criações do cinema nacional. (Amado, 1979, p. 110).

Segundo o diretor, o roteiro foi apresentado ao acadêmico, que afirmou ter gostado

[...] muito do trabalho, considerando que a essência de seu livro havia sido captada pelo roteiro. (Serran, 1979, p. 111).

O filme de Bruno Barreto tem relação com a

[...] comédia popular dos anos 40 e 50 construída sobre canções [...] atualizada por um tom desabusado e um pouco de sexo. (Il Giorno, 1979, p. 101).

Houve, assim, um rompimento com o paradigma criado pelo Cinema Novo, da década de 1960, deixando de lado o apelo à dureza da vida do brasileiro, para fazer uma apologia à alegria baiana. (Gomes, 2018).

É neste ponto que pensamos no parricídio metafórico cometido por Bruno Barreto. Isso porque seu pai, Luiz Carlos Barreto, foi um dos expoentes do Cinema Novo. A recepção do filme na Itália foi colocada desta maneira:

O Cinema Novo morreu para sempre? O sucesso [...] de Bruno Barreto [...] parece feito de propósito para demonstrá-lo. (Il Giorno, 1979, p. 100).

Assim, se há um parricídio, ele está atrelado ao desejo de ocupar o lugar simbólico do pai. Ao se coroar como um cineasta famoso, Bruno Barreto realiza o desejo de ser amado pela mãe, simbolizado pelo prestígio do público.

Se pensamos no caso a partir de Freud ([1928] 1961), Bruno Barreto matou o pai e se tornou como ele, mas uma versão morta dele, porque desprovido da vivacidade crítica do Cinema Novo. Essa morte era necessária no contexto histórico de produção do filme Dona Flor.

Em 1975, o governo militar instituiu o Plano Nacional de Cultura, que favoreceu a indústria cinematográfica, não sem a censura operada pelo Estado.

Assim, Dona Flor

[...] encampava o projeto do nacional popular e deixava de lado o projeto [...] inspirado no modernismo político-estético. (Gomes, 2018, p. 238).

Assim como o filme, a trilha sonora foi aclamada com grande sucesso. O próprio grapiúna destacou "a música inigualável de Chico Buarque de Hollanda". (Amado, 1979, p. 110). Ademais, se destacamos que o filme Dona Flor esteve alinhado com a ideologia do governo militar, a trilha sonora canta um desmentido (Verneinung).

Segundo Zizek ([2012] 2013), quando se renuncia a uma verdade, aquele que a detém não a perde. Ele pode desmenti-la inclusive com a finalidade de mantê-la. Foi o que supostamente fez Galileu, em 1633, na sua resposta sussurrada para a Inquisição: "Eppur si muove [E, no entanto, ela se move]". Para não ser torturado, ele desmente a sua compreensão (Zizek, [2012] 2013). Pensando no filme, ele nega a crítica social e escapa à censura. Já no sussurro da trilha sonora, ocorre um desmentido sobre o que (não) foi dito.

Certa vez, o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) realizou uma análise de O que será. Após se tornar ciente daquela interpretação, Chico Buarque declarou que

[...] nem ele mesmo sabe 'o que será', e se soubesse não haveria sentido em explicar, uma vez que a letra em si é uma pergunta. (Homem, 2009, p. 149).

No entanto, o baião cubano2 buarquiano, mesmo sem explicitar a resistência contra a ditadura militar, não deixa de ser uma referência ao país de Fidel Castro. Pensamos ainda que Chico esconde não apenas uma crítica ao período militar, mas também um elogio à figura da mulher e à mudança do seu papel na sociedade, além de oferecer uma ressignificação acerca da vida amorosa. (Cyntrão, 2013).

Freire e Queiroz (2011, p. 690) destacaram que:

A composição [...] caracteriza-se por um instigante jogo de adivinhação sem solução expressa, deixando, assim, a marca de uma resolução invisível.

Nesse jogo que faz referência ao que é e ao que não é, o enigma oculta a resposta e permite ao intérprete uma miríade de interpretações. No dito enigma, tonalidades eróticas e políticas são interpretáveis a partir da elipse que habita na integração entre o nível verbal e o melódico da canção. (Perrone; Ginway; Tartari, 2009).

Em meio à era da censura, Chico consegue conceber

[...] um plano melódico para que o texto pudesse transmitir significações bem além de seus recortes. (Tatit, [1995] 2002, p. 251).

A música, de posse do "seu poder de penetração nas massas, através da conjugação poesia-melodia" (Fontes, 2003, p. 6), só acrescenta à capacidade de entendimento.

Segundo Lopes (1995, p. 98),

[...] quanto mais literária, também maior a musicalidade da prosa. Muito menos subsiste qualquer poesia sem o ritmo da sonoridade das palavras.

Nesse sentido, a canção de Chico Buarque poderia inclusive ser pensada a partir da herança lírica de Camões. (Cyntrão, 2013).

 

Análise

O tríptico,3 tal como o conhecemos, não está exatamente distribuído em três momentos do filme. Logo no início, quando chega a hora de Vadinho, Simone canta estrofes da Abertura, a primeira parte do tríptico. Contudo, ela não canta os versos iniciais da versão original, que deveriam começar por um tom maior4 em "E todos os meus nervos estão a rogar". (Hollanda, [1976] 1999, p. 160).

Pensamos que a cena de morte envolve uma tristeza, melhor representada por uma tonalidade menor, o que pode justificar o porquê de Simone começar o seu canto pela segunda estrofe, "o que será que lhe dá" (Hollanda, [1976] 1999, p. 160), acompanhada pelo Sol menor.5

Na análise da versificação da Abertura, observamos associações entre desafiar/ descanso, seguidos por cansaço, todas terminadas em Si bemol,6 com uma variação de estrutura melódica no último termo, que desloca a repetição silábica para o início do termo a partir da sílaba central de descanso. (Hollanda, [1976] 1999).

Quando pensamos na ligação melódica e semântica entre esses termos, lembramos do desafio ao falo simbólico que a jouissance do Outro promove, levando à exaustão do ludômano observada por Freud ([1928] 1961).

Na segunda estrofe notamos uma rima interna disfarçada na repetição da sílaba ver em governo e vergonha, ambas acompanhadas pelo acorde de Fá menor (com apenas um acréscimo de sexta no segundo termo),7 sugerindo uma aproximação semântica no nível sonoro e nos remetendo à crítica ao Estado. Ocorre, portanto, já na Abertura, a transição de sentido, desde o nível erótico até o descontentamento social. (Tatit, [1995] 2002).

E se a primeira estrofe da Abertura foi deslocada para outra cena, é preciso notar que, antes dela, observamos a presença do motivo instrumental8 de O que será em alguns trechos do filme. Primeiramente, o motivo aparece junto a uma cena que ilustra os prazeres da mesa e o "compromisso importante" de Vadinho, a jogatina. Aqui, escutamos um instrumento de palheta,9 a flauta, e um acompanhamento no piano. Um segundo instrumento de palheta aparece ao final do motivo, antes da próxima cena.

A segunda aparição do motivo aparece quando Dona Flor suspeita que está sendo traída. Aqui, o motivo de O que será aparece ao piano numa variação melancólica criando sensação de tristeza. Ela se explica para a personagem Dionísia, que eventualmente revela que o seu Vadinho é outro. Assim, um novo arranjo para o motivo instrumental expressa o alívio de Dona Flor. Esse trecho é executado por sopros e cordas10 acompanhados por um contorno delicado ao piano.

Mas a alegria da nossa heroína dura pouco. Seu marido está sumido há dias, e ela se encontra desolada numa cena acompanhada por uma melodia distante do motivo de O que será, enquanto Vadinho está, em segredo, numa casa de raparigas. O contraste dos dois espaços se resolve pelo motivo instrumental com o retorno de Vadinho, que desmaiou na calçada próxima à residência do casal. Dona Flor recolhe o marido e o leva para cama. Lá, ele repete frases que indicam sua ludomania. Na sua "obsessão patológica [...] ele não descansava até que tivesse perdido tudo" (Freud, [1928] 1961, p. 190-191, tradução nossa), no caso até a própria saúde mental.

A quarta aparição do motivo instrumental ocorre na última cena com Vadinho vivo, com o casal numa cena erótica. Aqui, escutamos notas pesadas e insistentes ao piano, acompanhadas por uma atmosfera melancólica no naipe de cordas. Pensamos se tratar de uma ruptura com as aparições anteriores do motivo instrumental. Nessa cena, o contorno melódico diferenciado, com notas lentas, envolve ruptura, ligada à ideia de uma interrupção dos ciclos vitais, já que o motivo constantemente retorna, criando a ideia de um ciclo.

A voz de Simone então reaparece -Dona Flor está de luto levando um maço de saudades ao túmulo do falecido. Mãe Balbina toma, com gentileza, da mão de Dona Flor o maço de saudades e amarra-o em uma "fita". Ato contínuo, Mãe Balbina pede que a viúva o desamarre sobre a sepultura do falecido. O feitiço deve fazer com que Vadinho descanse.

A primeira estrofe é composta por versos de À flor da pele. Aqui, podemos notar a associação entre partes do corpo em troqueus:11 "Pele [...], faces [...], olhos [...], peito". (Hollanda, [1976] 1999, p. 164). No último verso, fala-se de uma receita.

A partir daí, Dona Flor declama o método de preparo de um quitute divino, seguido por um prato mais cruel "uma viúva, bonita e moça". (Amado, [1966] 2002, p. 324). A récita, que remete tanto aos prazeres da mesa como aos da cama, é interrompida pelo retorno da voz de Simone com versos oriundos da Abertura, retomando as partes do corpo em troqueus nos termos "nervos [...] [e] órgãos". (Hollanda, [1976] 1999, p. 159).

Nesse trecho deslocado da Abertura, notamos a associação semântica entre os termos medonha e vergonha, ambos cantados em Lá e em versificação trocaica. Aqui, pensamos não somente na crítica ao governo, mas também à instituição do casamento, já que a dupla jouissance de Dona Flor não tem vergonha de se enamorar dos dois homens de sua vida.

Ademais, pensamos que os versos da canção se articulam com um detalhe técnico do motivo instrumental. O motivo é, por vezes, executado por instrumentos de sopro e mesmo de palheta. Ora, não é um instrumento de palheta que o Dr. Teodoro estuda? Pensamos que o seu fagote estava lá na insatisfação de Dona Flor com Vadinho. E que tal insatisfação só se realiza na integração com a jouissance fálica das regras musicais e do saber do apotecário.

O filme segue e Dona Flor está casada com o Dr. Teodoro. Mas Vadinho retorna na forma de um fantasma, para se dedicar ao vício pelo jogo e para investir na sua ligação erótica com Dona Flor. Num primeiro momento, ela pede a ele que vá embora de sua casa - é quando uma melodia no sopro introduz o Dr. Teodoro no quarto. Vadinho a deixa, mas, como era de costume, ela o recebe de volta para alimentar o ciclo vicioso do marido jogador. (Freud, [1928] 1961).

O motivo instrumental aparece, então, com flauta, violão, piano e já com acompanhamento percussivo, com uma sonoridade mais completa, o que pensamos ser uma representação da questão erótica já atravessada pela moral social da instituição do casamento. Assim, pensamos que é esse motivo instrumental que melhor se aproxima da dupla jouissance feminina.

Contudo, mesmo usufruindo dessa dupla jouissance, Dona Flor está aflita com esse desejo desgovernado. Ela encontra, na religião do bastão de Ojé, o recurso para triunfar sobre isso que a perturba. Mas ela não encontra salvação, já que quando o babalaô está para efetivar o seu poder mágico, o motivo instrumental surge uma última vez, agora no trompete: o desejo erótico triunfa sobre a autoridade religiosa porque é ingovernável. Na primeira frase musical o instrumento de metal é acompanhado pelo piano e outras cordas. Na segunda, as cordas são mais expressivas.

O filme termina com uma variação da cena ilustrada na capa do disco da trilha sonora: trata-se do declive do Largo do Pelourinho visto da Fundação Casa Jorge Amado. No filme, Dona Flor e os seus dois maridos saem da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos quando o trecho À flor da terra é cantado.

Segundo Fontes (2003), Chico Buarque tem a intenção de ser reconhecido não enquanto poeta, mas como um compositor. Entretanto, a qualidade de sua escrita é digna da técnica de um Camões, cujo Soneto LXXXI fala do estabelecimento de uma representação de amor paradoxal que responde à pergunta: O que será que é o amor? (CyntrÃo, 2013).

Dona Flor sofre de um mal que o lusitano descreve "He hum contentamento descontente/He dor que desatina sem doer". (Camões, 1880, p. 81). Há um paradoxo também entre "não tem juízo" (Hollanda, [1976] 1999, p. 159-173), que é sempre acompanhado pela tônica, implicando o ajuizamento do compositor para com a regra do tonalismo.

A redefinição do amor paradoxal coloca Dona Flor no papel de uma mulher diferente de outras heroínas da literatura que tiveram um final infeliz, como a adúltera Luísa, de O primo Basílio (Queirós, 1878). Se Dona Flor não é punida, é porque ela vive esse paradoxo incontrolável que, por um lado, a deixa com nervos à flor da pele e, por outro, faz com que ela tenha uma satisfação ligada à jouissance fálico-simbólica. (Morel, [2000] 2011). Essa possibilidade amorosa não existiria caso não houvesse a invenção do feminismo. (CyntrÃo, 2013).

Em sua breve análise psicanalítica de O que será, Chauí (1984, p. 15) fala do isso que é irreprimível e "nunca é nomeado", o que nos faz pensar no Soneto XV camoniano, e sua nova lógica existencial do amor: "amor hum mal, que mata e não se vê [...] Hum não sei que, que nasce não sei onde" (Camões, 1880, p. 15), cuja incompreensibilidade pela razão nos remete a Freud (1923). Há algo que, por ser irreprimível, não é passível de ser domado. Como não tem acesso ao isso que habita nela e que a governa (Freud, 1923), Dona Flor aceita os seus dois maridos, porque ela precisa casar e não se tornar uma histérica, e porque ela não pode enganar isso que habita nela e que inflige sensações que a deixam à flor da pele.

Como Tatit ([1995] 2002) observou, o contorno melódico de O que será descreve duas cenas. Primeiro, uma cena erotizada que fala do desejo no corpo e que se expressa pela circularidade dos acordes menores e de descendências cromáticas.

Também a variação das alturas exprime a tensão e o "transtorno íntimo provocado pela falta de algo" (Tatit ([1995] 2002, p. 257), a jouissance plena que imprescinde da jouissance fálica e a do Outro. Num segundo momento, ocorre um deslocamento do anseio comum para o inimigo comum. O enigma precisa, então, ser decifrado a partir das pistas negativas de um antiobjeto, sem virtude eufórica, que não tem censura ou governo. (Tatit, [1995] 2002).

Pensamos que é possivelmente nesse ponto que o baião, que só poderia ser cubano, faz a sua crítica desde uma perspectiva política que resiste ao totalitarismo. Ademais, são projetadas no desgoverno todas as qualidades de algo sem conserto, vergonha ou decência, expressas na primeira cena enunciativa. Trata-se de uma sutileza do compositor que, desde uma retórica escondida tão bem por um diretor alinhado com os mandos e desmandos dos militares, faz o seu apelo social.

O chiste buarquiano, quando confrontado pelo DOPS, poderia ser inclusive pensado como uma pista para decifrar o enigma da canção. Chico não pode dar a resposta, porque ela é indizível: do ponto de vista afetivo, porque é apenas vivível, e do ponto de vista sociológico, em virtude da censura.φ

 

Referencias

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Recebido em: 19/10/2020
Aprovado em: 16/04/2021

 

 

1. Citado tal como em Gomes (2018), mas optamos pela publicação original de 1979.
2. Chico batizou O que será de "'cubaião', baião cubano" (Homem, 2009, p. 149) a partir das fotografias de Cuba feitas por Fernando Morais, expostas na residência do compositor. (Homem, 2009).
3. O termo é usado no contexto da pintura. G. Puccini o utilizou no contexto musical para designar composições distintas que devem ser executadas em um mesmo programa. (Apel, 1944).
4. O tom maior é oposto ao menor em virtude do terceiro grau da escala ou do acorde, que se encontra um semitom abaixo no acordo menor, em relação ao acorde maior. (Apel, 1944).
5. Acorde formado pela nota Sol na tônica (também chamada de baixo, ou primeiro grau). Por ser um acorde menor, o terceiro grau, a nota Si, deve ser bemol, que diminui um semitom da nota.
6. Trata-se do terceiro grau da tonalidade do trecho.
7. Trata-se do acorde de Fá menor com o sexto grau, a nota Ré, aumentada. (Apel, 1944).
8. Música instrumental deve ser executada sem o uso da voz (Apel, 1944).
9. Objeto, que pode ser feito de cana (no caso das palhetas heterofônicas), usado para fazer o instrumento de sopro vibrar (Apel, 1944).
10. Os instrumentos de sopro são aqueles cujo som é gerado pelo sopro. São também chamados aerofones. O trompete e a tuba compõem o naipe de instrumentos de sopro de metal. O clarinete, a flauta e o oboé compõem o naipe das madeiras. Os instrumentos de corda, ou cordofones, são aqueles cujo som é produzido por meio de uma corda esticada (Apel, 1944). O piano, assim como o violino e a harpa, é um instrumento de corda. Contudo, destacamos o piano ao final do trecho em virtude de sua diferenciação melódica em relação aos outros cordofones.
11. Trata-se de um termo emprestado dos estudos em métrica poética grega. Os termos são todos cantados por meio de uma primeira sílaba longa, seguida de uma sílaba curta, caracterizando um troqueu. (APEL, 1944).

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