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Reverso

versão impressa ISSN 0102-7395

Reverso vol.43 no.82 Belo Horizonte jul./dez. 2021

 

PSICANÁLISE E ARTE

 

O sonho de Líbia Moirã: uma interpretação freudiana

 

Líbia Moirã's Dream: a freudian interpretation

 

 

Helena Machado Lara

Aluna do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. E-mail: helena.mlara@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo aborda os conceitos de trauma, fixação no trauma, sonhos de angústia e repetição, especialmente com base em Freud e Lacan. Ao final, é apresentado o conto Líbia Moirã, de Conceição Evaristo, para localizar nessa obra cada um dos conceitos mencionados.

Palavras-chave: Trauma, Fixação no trauma, Sonhos de angústia, Repetição.


ABSTRACT

The article approaches the concepts of trauma, fixation to the trauma, dreams of anguish and repetition, especially from Freud but also from Lacan. At the end, the story "Libya Moirã", by Conceição Evaristo, is presented to locate in this work each one of those mentioned concepts.

Keywords: Trauma, Fixation to the trauma, Dreams of anguish, Repetition.


 

 

O trauma e o caso Emma

Em Projeto para uma psicologia científica, Freud ([1895] 1996) afirma que a compulsão histérica se origina a partir do movimento da formação simbólica e que a observação clínica dá a ele uma forma de explicar esse determinante psíquico partindo das características da sexualidade. Para ilustrar, ele inicia o relato sobre sua paciente Emma.

Emma apresenta uma resistência inexplicável a entrar sozinha em lojas de comércio. No processo de análise, Emma se lembrou de que, quando estava em uma loja de tecidos, saiu assustada por ver dois homens rindo de suas roupas. Um deles a atraia sexualmente. Com a continuação do trabalho em consultório, ela se recorda de dois episódios ocorridos na infância, quando esteve em uma confeitaria. Da primeira vez, o dono da loja a agarrou tocando sua genitália por cima da roupa. Acontece que Emma voltou à loja. Ela se culpa por esse retorno, como se tivesse provocado a reincidência. Ela mesma traça o "riso" como um ponto comum entre o fato ocorrido mais recentemente e os episódios na confeitaria. O riso dos vendedores da loja de tecido faz Emma se lembrar do riso do dono da confeitaria. Tomada pela angústia, ela temeu ser tocada pelos vendedores da mesma forma como foi tocada na infância.

Freud estabelece o elemento "tecido" como um gatilho para sua resistência a visitar as lojas. A associação é feita a partir do toque no tecido sobre a genitália e os tecidos das lojas de roupas. Assim, Freud narra o retorno do recalcado que aparece no sintoma de Emma adulta como a impossibilidade de ir a lojas de roupas.

E conclui:

Ora, esse caso é típico do recalcamento na histeria. Constatamos invariavelmente que se recalcam lembranças que só se tornaram traumáticas por ação retardada. A causa desse estado de coisas é o retardamento da puberdade em comparação com o resto do desenvolvimento do indivíduo. (Freud, [1895] 1996, p. 273).

 

A fixação no trauma

Na Conferência XVII: O sentido dos sintomas, Freud (1916/1917) estabelece um sentido para os sintomas neuróticos relativos aos sonhos e aos atos falhos. Ele ressalta que os sonhos guardam também uma relação com a experiência de vida das pessoas. Abordaremos, rapidamente, casos de duas pacientes de Freud relatados no capítulo imediatamente seguinte A fixação no trauma.

No primeiro, uma mulher de 30 anos tocava a sineta para chamar a empregada remontando a ação de mostrar o lençol sujo de tinta da noite de núpcias, em que seu marido se mostrou impotente. No segundo, uma mulher presa a um enorme ritual para dormir. Sobre o primeiro caso, uma rápida descrição da conclusão de Freud é que o casamento estava "efetivamente" desfeito. Portanto, manter esse ritual fazia com que ela se mantivesse presa ao que restava de seu casamento. Sobre o segundo caso, a repetição do ritual era acompanhada de uma incapacidade enorme de cumprir tarefas importantes para que a paciente pudesse seguir a vida, conhecer alguém e, finalmente, se casar. Na conclusão de Freud, a paciente mantinha essa situação para não abandonar o pai.

Nesse texto, Freud cita também Anna O, a primeira paciente histérica de Breuer, fixada no tempo em que cuidava de seu pai enfermo. De acordo com Freud, esses casos têm em comum características análogas às neuroses traumáticas, recorrentes à época das guerras. Freud destaca que as neuroses traumáticas são diferentes das comuns, que ele chama, nesse contexto, de espontâneas, porque as neuroses traumáticas têm origem em uma fixação no momento do acidente traumático.

Nesses casos, os doentes revivem as situações traumáticas como se voltassem repetidamente a elas. Para a expressão "traumática", Freud confere um sentido "econômico". Para o trauma, um sentido de vivência que, devido ao curto espaço de tempo em que ocorre, não dá margem à elaboração, o que desenc adeia uma perturbação no funcionamento da energia pulsional.

Desenvolvendo o raciocínio, Freud atribui ao adoecimento neurótico uma equivalência ao adoecimento pelo trauma, ambos originários da incapacidade do sujeito de suportar determinada experiência carregada de uma dose muito intensa de afeto.

Como veremos a seguir, Freud ([1920] 1996) reformula sua teoria a respeito da realização de desejo nos sonhos a partir do conceito de trauma no texto Além do princípio de prazer. Porém, é importante ressaltar que, em A interpretação dos sonhos, publicada mais de vinte anos antes, Freud já tratava dos sonhos de angústia de uma forma coerente com o que viria a expor posteriormente:

O que cria o trauma é a surpresa do acontecimento, que chega sem avisar, sem nem mesmo que a angústia prepare o sujeito para tal. Com o sonho de angústia e com a repetição é possível dar forma àquilo que não descrevemos com palavras. (Freud, [1900] 2014, p. 601).

 

O trauma pós

Além do princípio de prazer

A partir da explicação do trauma em Além do princípio de prazer, Freud ([1920] 1996) aponta para as relações entre prazer e desprazer e considera, a partir daí, mais uma função dos sonhos. Afinal, nas neuroses traumáticas, os sonhos levam o paciente a voltar repetidas vezes à situação que ocasionou o trauma. Freud observa que a tendência natural das pessoas que sofreram um trauma seria tentar esquecê-lo. Sendo assim, os sonhos, enquanto realização de desejos, deveriam levar o paciente às situações em que eles se veriam livres dos traumas.

Estaria mais em harmonia com a natureza destes [dos sonhos], se mostrassem ao paciente quadros de seu passado sadio ou da cura pela qual espera. Se não quisermos que os sonhos dos neuróticos traumáticos abalem nossa crença no teor realizador de desejos dos sonhos, teremos ainda aberta a nós uma saída: podemos argumentar que a função de sonhar, tal como muitas pessoas nessa condição, está perturbada e afastada de seus propósitos, ou podemos ser levados a refletir sobre as misteriosas tendências masoquistas do ego. (Freud, [1920] 1996, p. 24).

 

A repetição pós

Além do princípio de prazer

Um ano antes da publicação de Além do princípio de prazer, Freud ([1919] 2019) já anunciava em O infamiliar descobertas sobre o conceito de repetição quando narra o episódio em que buscava um lugar específico em uma cidade da Itália e repetia, sem se dar conta, o mesmo trajeto errado, entrando sempre na mesma zona de prostituição. Na narrativa, Freud associa essa compulsão à repetição a um sentimento de estranheza e de desamparo para, finalmente, associá-lo à sexualidade.

Nesse texto, Freud ([1919] 2019) retoma o estudo das experiências de fracasso da primeira infância apontando o despertar sexual infantil como responsável por sentimentos dolorosos, já que essa etapa da vida é incompatível com a satisfação de seu desejo. Isso, de acordo com ele, contribui para o recorrente sentimento de inferioridade dos neuróticos, comum em queixas como "não consigo ter sucesso em nada". A criança se vê desapontada em relação às suas expectativas de satisfação com o genitor de sexo oposto ou quem exerça essa função.

De acordo com o mesmo texto, as resistências se fazem pelas instâncias do Eu coerente e do Eu reprimido, e não entre o consciente e o inconsciente. A compulsão só se expressa a partir do momento em que o trabalho de análise avança e o recalque se afrouxa. Para compreendermos a compulsão à repetição que vem à tona durante o processo de análise, Freud ([1919] 2019) propõe que se abandone a ideia de que o inconsciente é o responsável por ocultar o material reprimido. Ao contrário, o inconsciente nos mostra esse material a partir de suas formações.

Os conceitos de compulsão e de repetição são relacionados ao processo inconsciente e, por isso, tornam-se difíceis de conter, fazendo com que o sujeito repita sequências, ideias, pensamentos, atitudes e sonhos que trouxeram sofrimento reproduzindo o caráter de conservação desse estado de dor. Freud relaciona a compulsão à pulsão de morte a partir de duas características: conservação/restituição e repetição. O caráter de conservação parte do princípio de que todas as pulsões caminham para um estado anterior das coisas, o estado inorgânico.

É importante dizer que, em Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano, Lacan ([1960] 1978) interpreta essa referência de Freud à biologia como uma metáfora teórica. Para ele, Freud não fala de uma volta ao inanimado como uma sentença de morte e, sim, da vivência e do intercâmbio humano. Fala da intersubjetividade. Lacan diz que é preciso reconhecer isso na metáfora "a margem para além da vida", o que é possível a partir da capacidade de falar.

O biologismo de Freud nada tem a ver com essa abjeção pregatória que nos chega por baforadas da oficina psicanalítica. E era preciso fazer-lhes viver a pulsão de morte que aí se abomina, para metê-los no tom da biologia de Freud. Pois eludir o instinto de morte de sua doutrina é desconhecê-la absolutamente.

Do acesso que lhes preparamos, reconheçam na metáfora do retorno ao inanimado com o qual Freud afeta todo corpo vivo, essa margem para além da vida que a linguagem assegura ao ser pelo fato de que (ele) fala. (Lacan, [1960] 1978, p. 285).

No seminário 11: Os quatro conceitos fundamentais à psicanálise, Lacan ([1964] 1985) trata a repetição inconsciente não como uma reprodução idêntica, mas observa que a novidade é a condição para o gozo e que a repetição se dá pela busca de algo que está situado além daquilo que se busca (das Ding).

Então, Lacan aponta duas ordens de repetição: o Autômaton, vinculado ao Simbólico, e a Tiquê, vinculada ao Real.

A Tiquê está além do automatismo de repetição. Está associada ao trauma e só pode ser simbolizada pela fala. A repetição desse trauma se justifica pela busca constante de uma simbolização que se torna, então, necessária. Portanto, a Tiquê é o encontro com o que falta ao sujeito no Real, é o que está por trás do automatismo do significante.

[...] a Tiquê, que tomamos emprestada, eu lhes disse da última vez, do vocabulário de Aristóteles em busca de sua pesquisa de causa. Nós a traduzimos por encontro do real. O real está para além dos Autômaton, do retorno, da volta, da insistência dos signos aos quais nos vemos comandados pelo princípio do prazer. O real é o que vige sempre por trás do Autômaton, e do qual é evidente, em toda pesquisa de Freud, que é do que ele cuida. (Lacan, [1964] 1985, p. 56).

A compulsão à repetição implica o significante, no qual a repetição é a produção de uma sequência que não se fixa a uma identidade, mas produz uma diferença.

 

O sonho de Líbia Moirã

Insubmissas lágrimas de mulheres é um livro em que Conceição Evaristo (2016) publica contos a partir de depoimentos de treze mulheres. Como ela relata, exatamente no conto de que vamos tratar, as histórias foram criadas a partir do que as mulheres lhe contam.

Eu invento, Líbia, eu invento! Fale-me algo de você, me dê um mote, que eu invento uma história como sendo a sua. (Evaristo, 2016, p. 87).

Em todos os contos desse livro, percebe-se uma semelhança com fatos do cotidiano e histórias de vida que conhecemos. São evidentes, na obra, a naturalidade e o senso de realidade de uma grande escritora. Porém, é bom lembrar que estamos tratando de uma ficção.

A personagem de Líbia Moirã diz à narradora que quer lhe contar sobre um sonho que se repetia desde que ela tinha cinco anos. Sonhava com uma coisa grande, que ela não conseguia definir, saindo de um buraco pequeno. Esse movimento acontecia fora de seu corpo e ela estava na cena sempre como expectadora. Mas sempre vinha também uma profunda sensação de dor. Os sonhos se repetiram seguidas vezes e, em todas elas, Líbia acordava assustada e chorando. Quando ainda era criança, corria para o quarto dos pais, mas era obrigada a voltar para o seu quarto, onde se juntava ao irmãozinho caçula, dois anos mais novo. Esse era o conforto de Líbia, já que as irmãs mais velhas também se aborreciam e debochavam dos pesadelos.

Líbia seguiu boa parte da vida com o mesmo sonho atormentando suas noites. Não podia viajar nas férias, não podia dormir fora de casa, pois sabia que o sonho se repetiria. Tentou suicídio duas vezes, aos dez e aos doze anos. Quando se tornou adulta, o mesmo sonho persistiu e ela tentou se matar mais uma vez. Não conseguia manter relacionamentos, não se sentia capaz de ter uma vida íntima, de constituir uma família, pois não via uma maneira de colocar um fim no incômodo. Procurou fazer ioga, hipnose, práticas de relaxamento e análise, sem nenhum sucesso. O convívio no trabalho também ficou comprometido, pois ela precisou se expor em algumas ocasiões.

Quando já tinha mais de cinquenta anos, reuniu-se com a família para comemorar o aniversário do irmão caçula. Na hora de cortar o bolo, o irmão ofereceu o primeiro pedaço para a esposa, que ofereceu à filha. A filha ofereceu à tia Líbia, que deu o pedaço para o irmão. Nesse momento ela sentiu, pela primeira vez, vontade de ter um filho. A imagem do irmão se confundiu com a de um filho que ela nunca teve, e imediatamente recuperou uma lembrança: ela tinha visto o irmão nascer.

A mãe havia entrado precocemente em trabalho de parto, em casa, e Líbia, com dois anos, estava no berço. A família acudiu a mãe de Líbia esquecendo-se de que a criança estava lá, assistindo a tudo. Líbia confirmou a história com uma tia e, finalmente, pôde entender o sonho que a perseguiu por todos esses anos. Uma coisa grande, que ela, agora, conseguia definir, saindo de um buraco pequeno, fora do corpo dela. Mas que lhe trazia uma profunda sensação de dor.

 

Líbia Moirã: do trauma ao sonho e à significação

Seguindo uma ordem linear, começo apontando o acontecimento traumático a que Líbia foi exposta. Assistir ao nascimento do irmão, sem conseguir significar a imagem do bebê rompendo o corpo da mãe, criou em Líbia Moirã uma situação traumática, sem margem alguma para elaboração. E o retorno do que foi recalcado aparece em forma de sonhos, por muito tempo, indecifráveis.

A fixação no trauma, abordada no início deste trabalho, a partir de dois casos de rituais de neurose obsessiva, tem também um sentido observado a partir dos sonhos. No caso de Líbia Moirã, o mesmo sonho se repete, ao longo de boa parte da sua vida, como uma volta à situação que originou o trauma, uma tentativa de criar um significado para aquela situação. Podemos observar também em Líbia a inibição travando o desenrolar de sua vida, já que o infortúnio causado pelos sonhos a impediam de ter uma vida social mais completa. A repetição do sonho de Líbia acontece aí para reproduzir o caráter de conservação do estado de dor.

Fixada em seu trauma da primeira infância, ela se vê atormentada por um sonho que se repete na tentativa de dar nome, de significar uma imagem que ela só pôde decifrar a partir de um encontro com o irmão. Esse encontro, marcado por um pedaço de bolo, traz à tona a cena traumática que, enfim, é decodificada. E traz, inclusive, pela primeira vez, o desejo de ter um filho. Desejo que, até o momento do aniversário do irmão, não tinha vindo à tona.φ

 

Referências

EVARISTO, C. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro, RJ: Malê, 2016.         [ Links ]

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Recebido em: 10/05/2021
Aprovado em: 24/09/2021

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