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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.34 no.2 São Paulo dez. 2016

 

ARTIGOS

 

Me dê uma mão?, ou, quando a ajuda é dizer "não"

 

Give me a hand?, or, when helping is saying "no"

 

 

Sylvia Mello Silva Baptista*

Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica (MiPA)-SBPA
Areté – Centro de Estudos Helênicos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe uma reflexão sobre o conceito de ajuda no espaço clínico a partir do mito de Eros e Psiquê, chamando atenção à piedade ilícita e à necessidade de dizer "não" no processo individual de ampliação do conhecimento de si.

Palavras-chave: Ajuda, discriminação, piedade ilícita, Eros, Psiquê.


ABSTRACT

This article presents some thoughts on the concept of help in a clinical setting by reflecting on the myth of Eros and Psyche. It focuses on the notion of illicit pity and the necessity of saying "no" during the individual process of a greater self-discovery.

Keywords: help, discrimination, ilicit piety, Eros, Psyche.


 

 

Sei lá

vai pela sombra, firme,
o desejo desespero de voltar
antes mesmo de ir-me
antes de cometer o crime
me transformar em outro
ou em outro transformar-me
quem sabe obra de arte,
talvez, sei lá, falso alarme
grito caindo no poço,
neste pouco poço nada vejo nem ouço,
mais mais mais
cada vez menos

poder isso, sinto, é tudo que posso,
o tão pouco tudo que podemos

(Paulo Leminski)

 

Introdução

Tenho refletido em minha prática clínica sobre o conceito de ajuda que surge na fala dos pacientes quando se envolvem em uma situação de sofrimento, principalmente com familiares ou companheiros amorosos. São muitas as tentativas das pessoas de oferecer "ajuda" a quem acreditam precisar, num evidente e flagrante mecanismo de projeção, aliado à assunção do papel de salvador – mecanismo que afasta o ego da descida necessária aos ínferos pessoais para um enfrentamento com as próprias questões. Vejo-me, invariavelmente, citando – e muitas vezes repetindo – a passagem do conto deApuleio de Madaura, do século II d.C., na qual a jovem Psiquê tem como tarefa negar ajuda a um velho que lhe estende a mão durante sua travessia pelo rio Estige, o rio da morte. Esse gesto o autor alertou tratar-se de uma piedade proibida e Junito Brandão (2002, p. 218) nomeou "piedade ilícita".

Apuleio cita mais duas passagens em que Psiquê precisa negar ajuda, mas a imagem do rio da morte sempre foi a que ficou mais viva na minha memória. Curiosa por entender melhor esse fragmento do conto, voltei a ele e à interpretação de Marie-Louise von Franz, e trago, aqui, luz a essas ideias, que espero que ampliem a compreensão do sempre infinito mistério que é a alma humana.

 

Relembrando a história

O conto sobre Eros e Psiquê é longo e repleto de detalhes aos quais não me aterei, convidando à leitura na íntegra, inclusive como material literário de prazer indubitável. É parte do romance O asno de ouro (1985), introduzido como uma história contada por uma velha, em uma das situações de fuga vividas pelo personagem central Lúcio, transformado, por um feitiço, em asno. Von Franz entende que essa inserção poderia ser vista como um sonho do autor/personagem e assim interpretada. De modo que mergulhamos no simbolismo da história, que pode ser encarada tanto como uma expressão do processo de individuação feminina, como trabalhou Erich Neumann (1973), como da anima do protagonista, como sugere Von Franz, revelando muito da psique de Apuleio, banhada pelo inconsciente norte-africano e pela sua consciência romana.

O enfoque que darei será no mitema da travessia no momento da catábase, pois creio estar ali a ampliação do tema da "ajuda" que desejo discutir. Mas vamos a um panorama da história.

Psiquê era uma princesa de tão grande beleza que todos os habitantes de seu país, e mesmo estrangeiros, a admiravam e lhe rendiam homenagens em quantidade e devoção tão grandes quanto, ou até maiores que, à própria deusa Afrodite. Sua fama correu mundo, a ponto dos altares dedicados à deusa ficarem esvaziados e abandonados. Era como se Afrodite tivesse descido ao reino dos mortais e se fizesse humana em Psiquê. Tal situação tornou-se insustentável e a deusa convocou seu filho Eros para vingá-la. Ordenou que flechasse a mortal e fizesse com que caísse apaixonada pela mais ignóbil das criaturas. Enquanto isso, a pobre Psiquê sofria com o excesso. Sua beleza era tamanha que nada além da contemplação era ousado por seus devotos, e vivia, assim, dias de abandono e solidão. Seu pai foi, então, consultar o Oráculo de Delfos e obteve como resposta que sua filha caçula deveria ser exposta num rochedo em núpcias de morte. E assim se deu, com a comoção de todos e a entrega ao sacrifício da virgem. Eros, cumprindo a tarefa imposta pela mãe, vai em busca de sua vítima mas, num ato de desobediência, faz de Psiquê sua esposa, com a condição de que a jovem não o visse à luz do dia. Gozava de sua presença no breu da noite e, assim que os primeiros raios de sol apontavam no céu, ele partia. Ela permanecia e usufruía de toda sorte de confortos e prazeres da mesa, até o reencontro na noite seguinte.

Eros, antevendo um desejo da esposa, caso se encontrasse com suas irmãs, advertiu-a sobre um possível envenenamento por parte destas, movidas pela inveja. E, de fato, Psiquê pediu para encontrar as duas irmãs, finalmente conduzidas ao palácio. A reação não foi outra: maravilharam-se com o que viram. Maledicentes, instruíram Psiquê a desobedecer a ordem marital – essa é a segunda desobediência da história, a primeira de Psiquê, indicando já que, simbolicamente, a individuação e a ampliação da consciência implicam na curiosidade e na transgressão (haja vistos Eva e Adão no mito cristão e sua queda do paraíso). Ao erguer a lâmpada e descobrir que dormia com um deus e não com um monstro, como confabularam as irmãs, deixa cair uma gota de óleo e fere Eros no ombro. Abandonada por seu amor, que foge para longe, vinga-se de morte das irmãs.

Começa aí o suplício da jovem, que, depois de tentar atirar-se no rio mais próximo e ser convencida pelo deus Pan (um deus também rejeitado pela mãe) a não fazê-lo, sai em busca do amado. Afrodite fica sabendo do encontro do filho com a odiada mortal e anseia encontrá-la. Enquanto vagava, Psiquê passa pelos templos e encontra Deméter e Hera. As deusas vêm ter com ela, que suplica por proteção e ajuda. Ambas falam desde o campo do poder, não de eros. Reforçam a própria obediência à deusa Afrodite e negam ajuda a Psiquê. Deméter e Hera representam os aspectos mãe e esposa, instituições conservadoras a serviço da manutenção do status quo. Psiquê, ao contrário, precisa se transformar; deixar morrer a menina e tornar-se mulher. Mais uma vez, entrega-se. É recebida na casa da mãe de Eros por uma serva de nome Consuetude – o hábito – e supliciada por outras duas, Inquietação e Tristeza. O simbolismo desses nomes na recepção de Psiquê diz muito!

Afrodite, depois de humilhá-la ao máximo, dá-lhe tarefas impossíveis, intencionando sua morte. Em todas elas, a pobre princesa de fato desejou esse fim, mas foi acudida por criaturas da natureza. A primeira das tarefas foi a separação dos grãos no espaço de uma noite, para a qual Psiquê contou com a ajuda das formigas. A segunda foi apanhar chumaços do tosão de ouro de carneiros enfurecidos e recebeu o conselho de um caniço à beira do rio, onde, novamente, quis se atirar. A terceira tarefa foi recolher, num delicado vaso de cristal, um pouco da água do Estige em sua fonte, tendo sido ajudada pela águia de Zeus. A quarta e última tarefa dizia respeito àquilo que unia a deusa e a mortal: a beleza. Afrodite ordena a Psiquê que vá aos ínferos pedir a Perséfone que lhe conceda uma porção de um dia de beleza, desgastada que ficara por ter cuidado do filho enfermo. Psiquê faz então a sua catábase e, como uma verdadeira heroína, desce à terra dos mortos. É nesse ponto que gostaria de iniciar a nossa reflexão. Vamos, junto com Psiquê, fazer esse percurso rumo ao mais profundo de si mesma.

 

A descida

Psiquê é instruída por uma torre, de onde iria se jogar, a não fazê-lo. Se ia mesmo ao Tártaro, porque não tentar trilhar o caminho pedido e, quem sabe, ser bem-sucedida na volta? Ela concorda com a ponderação e ouve, atenta, as instruções. Deveria encontrar o lugar de acesso ao Hades e levar consigo em cada uma das mãos um bolo de farinha de cevada amassado com vinho e mel para o cão Cérbero, guardião das portas do mundo das almas, além de duas moedas na boca para a paga do barqueiro Caronte na travessia do rio Estige.

A primeira advertência diz respeito a um burriqueiro e um burro, ambos coxos, a quem ela terá de negar ajuda quando ele lhe pedir que apanhe umas toras caídas da carga levada pelo burro. Deve também manter-se em silêncio e continuar. Em seguida, chegará ao rio da morte, pagará a moeda pela travessia de ida a Caronte – sendo ele quem a retirará de sua boca com as próprias mãos – e negará estender a mão a um ancião morto boiando próximo ao barco quando este lhe pedir para ser içado. A terceira negativa deverá ser dada a três tecelãs que lhe pedirão ajuda com seu trabalho. Foi lhe dito não ter o direito de tocá-lo e, ainda por cima, deverá cuidar, uma vez mais, para não perder o bolo de cevada, vinho e mel.

A torre ainda lhe adverte da mais importante das recomendações: evitar a curiosidade e não abrir, em nenhuma hipótese, a caixinha da beleza dada por Perséfone – essa será a terceira desobediência da história, a segunda de Psiquê e a mais significativa, por ser uma ação genuína, expressão de seu próprio desejo, como veremos. Mas vamos às negações.

 

As negativas

O senhor coxo e seu burro igualmente claudicante indicam a identidade dos personagens na sua deficiência, dificuldade que provoca no próximo a piedade, como acontecerá nos encontros seguintes. Von Franz salienta que o apelo é ainda maior para o feminino maternal na mulher, tornando a tarefa especialmente difícil para a jovem. Quem não se sente impelido a ajudar um ancião naquilo que ele não mais possui, a força física e o vigor, atributos da juventude? Os cinco personagens das negativas, aliás, são velhos, contrastando com Psiquê, na flor da idade.

A primeira negativa implica também em seu cuidado para não deixar de estar atenta ao alimento para Cérbero, única possibilidade de saída do mundo dos ínferos. Isso nos aponta para o fato de que a distração com a ajuda movida pela piedade ilícita tem uma decorrência fatal.

Psiquê não sabe quem é o velho coxo e o que ele fará na sequência de sua possível ajuda. A velhice e a debilidade física provocam a projeção de conteúdos que nublam a consciência. Penso, pela leitura simbólica do conto, que o caminho de Psiquê é o caminho da discriminação, da diferenciação, anunciado em sua primeira tarefa de separação dos grãos. Antes disso mesmo, a faca que segura quando suspende a lâmpada de óleo para desmascarar seu marido também pode ser entendida como um elemento de discernimento. A luz e o corte.

A individuação passa pelo treino dessa capacidade. Por mais que se trate de um velho coxo, com seu animal também coxo, Psiquê não pode se desviar de sua meta primeira, que é chegar à presença de Perséfone (a saber, confrontar-se com o feminino profundo), uma deusa que igualmente fez uma descida aos ínferos e se transformou.

Cabe a Psiquê resistir à tentação da falsa bondade para não cair na armadilha de Afrodite. Sim, pois lembremos que a deusa do amor propõe à mortal feitos que a levam a um fim letal. A irmã das Erínias, vingadoras do sangue derramado, é ela própria também uma vingadora, dentro do campo do amor erótico. No seu aspecto maternal, Afrodite sente-se ameaçada por Psiquê na dupla mãe-filho, na ruptura da endogamia. A armadilha é provocar a tentação de esvaziar uma mão para estender ao outro e assim deixar de focar o processo pessoal, crendo que cuidar do processo alheio se configure "ajuda" efetiva, quando, na verdade, cada um tem seu caminho individual a cumprir. Há de se manter as mãos ocupadas! Se a jovem cai na sedução da bondade proibida, psique/alma e amor se separam em definitivo.

Além disso, há o detalhe do silêncio. O velho lhe pede explicitamente para que apanhe a tora e Psiquê deve permanecer impassível. Nem mesmo uma resposta a lhe ser concedida. O silêncio é um sinal poderoso de permanência consigo mesmo. Em algumas comunidades religiosas, faz-se retiros de silêncio com o intuito de colocar a pessoa em contato profundo com o interior e afastar falas e ruídos exteriores que alheiem a atenção da alma. O calar-se de Psiquê é um sinal inequívoco de que é preciso guardar-se do que está fora. Recordemos também que esse momento acontece em sua ida em direção ao Estige e lhe prepara para as negativas subsequentes.

Rafael López-Pedraza (2009) sublinha, citando Karl Kerényi, que a raiz da palavra Estige – stygein – está ligada a ódio. Psiquê já teve que conter a água da fonte desse rio num pequeno e delicado vaso, ou seja, conter seu ódio. Psiquê necessita conter o ódio destrutivo que a acompanha nas tarefas impostas, silenciar sua ideia errônea de morte e sacrifício, discriminar a piedade ilícita de compaixão – con-pathos, compadecer-se de si, conectar-se com sua alma, raiz de seu próprio nome.

Para Von Franz, Estige em grego refere-se à deusa feminina das águas que rege todas as coisas, e seu aspecto mortal aponta para o terrível do inconsciente coletivo. A psique criativa é o único vaso, segundo a autora, capaz de conter as águas do Estige.

Ela não cita o personagem coxo, mas Ocno, um homem que fabrica e torce uma corda, cujo nome significa hesitação. Creio ser particularmente interessante esse detalhe, uma vez que tal situação, o hesitar, equivale a claudicar, a não pisar com determinação, e assim as duas expressões, aparentemente distantes, ganham semelhança.

À imagem de Ocno, acrescento uma ampliação quanto à figura da corda. No estudo da mitologia grega, é patente que a forma de suicídio das mulheres se fazia por enforcamento. Nicole Loraux (1988) explorou o tema em seu livro Maneiras trágicas de matar uma mulher. O personagem fabricante de cordas faz recordar essa associação com a sempre iminente morte de Psiquê. Ela deve ignorá-lo para não cair no "canto de sereia" da saída suicida e permanência naquele mundo de eidola.

A segunda negativa, de força imagética inegável, diz respeito a nova discriminação e consequente firmeza para não estender a mão a quem lhe pede. Pela segunda vez, o pedido é explícito e a aproximação, dramática. O ancião implora para compartilhar do espaço protegido que a separa das águas da morte. Cabe a ela entender que, naquele contexto, a alma moribunda já é parte do mundo dos mortos (novamente a discriminação) e, mais uma vez, o momento pede resistência e persistência na meta primeira.

O numeral 3 é dotado de uma força mágica, já bastante explorada por Jung e Von Franz, entre outros. Representa o transcendente, a resposta que vem a partir da experiência de suportar a tensão dos opostos, das oposições que nos puxam em direções antagônicas. Serão três tentativas de desvio, sendo a terceira constituída por três personagens. As fiandeiras remetem imediatamente às três Parcas ou Moiras: Cloto, Láquesis e Átropos. Psiquê não deve tocar em seu trabalho e, como nas outras situações, o pedido explícito de ajuda deve ser ignorado. Von Franz chama atenção para o sentido de não se deixar tentar por determinar o destino, uma vez que as Moiras atribuem a cada um de nós um quinhão de vida. Cabe à jovem, portanto, aceitar. Ou ainda, con-fiar.Terá que tecer o seu próprio tecido, compor a sua própria trama. É o feminino ancestral quem lhe sinaliza. O trabalho de discriminação que vem acontecendo desde o início tem aqui seu ápice. Há que saber a que urdidura se refere esse contexto.

 

As reflexões

Podemos depreender das tarefas executadas nos ínferos por Psiquê um denominador comum: a espera ou o suportar, o aguardar, o não agir. Se pensarmos novamente nas negativas que fez aos pedidos dos anciãos, vemos que, além de discriminar, como apontado acima, Psiquê teve que suportar os sentimentos movidos pelas situações apresentadas a ela e fiar-se numa certeza interna de que estava fazendo o melhor do que lhe era pedido. Foi preciso silenciar, seguir em frente, imobilizar-se, não se aproximar em demasia para chegar até Perséfone e conseguir sua encomenda.

Com a rainha do Hades, Psiquê terá que treinar a humildade. Há uma nova recusa, agora de aceitar os luxos que Perséfone lhe oferece. Tem que sentar-se no chão duro, pedir um pão grosseiro como alimento e dizer "não" ao banquete e ao conforto. São novas seduções que ocorrem como tentativas de desnorteamento e mostram que mesmo a uma deusa é possível negar. Ela deve saber onde é seu lugar e ali permanecer com humildade e fidelidade a seu propósito.

O mitologema da história, a meu ver, traz a questão da morte e do renascimento no âmbito da escolha – dentro do campo daquilo que é escolhido pelas Moiras, claro. Psiquê trilha a saída da condição de puella tendo que deixar morrer o velho, abandonando as hesitações e escolhendo, assumindo riscos e acreditando no sentido.

Ao fim do conto, Psiquê, tendo cumprido todas as requisições de Afrodite, abre a caixa da beleza e acredita que se fará mais bela aos olhos de seu amado – que, julga, irá encontrar como prêmio. A beleza de um dia é a beleza efêmera, palavra que em grego é atribuída à vida do homem. Perto dos deuses, o humano não passa de um ser de duração efêmera, de um único dia, como a existência de uma borboleta. Psiquê almeja a permanência com seu amado imortal mas sucumbe à efemeridade da beleza literal. Cai na última armadilha de Afrodite. Mas agora, depois de todo um trajeto heroico, é resgatada por Eros e levada ao Olimpo com o consentimento de Zeus. Eros, portanto, também escolhe e age numa direção diferente da esperada pela mãe e passa da condição de filho para a de esposo, com as bênçãos do maestro olímpico.

 

As tessituras e os arremates

A curiosidade e a desobediência são condições obrigatórias para alcançar o conhecimento e, portanto, a consciência, como já dito anteriormente. As ajudas que Psiquê recebeu para realizar os propósitos de Afrodite parecem expressar os sinais que nos surgem ao longo do nosso caminho pessoal, sinais advindos da natureza animada. Recebeu ajuda e foi impedida de ajudar. Há uma discriminação aqui. E essa diferenciação, a meu ver, é do que mais carecem aqueles pacientes que citei no início da apresentação dessas ideias mas que, na verdade, somos todos nós. Caímos na tentação de – e uso aqui uma expressão da linguagem ordinária – dar uma mão aos que nos pedem, projetando neles nossa piedade ilícita, nos acreditando potentes o suficiente para salvarmos o outro, aliviar-lhes a carga ou modificar-lhes o destino. Colocamos em uma mesma palavra, ajuda, sentimentos distintos. Ousamos tocar no tecido das Moiras/tecelãs e tentar dar à vida do outro um rumo distinto que vislumbramos melhor, mais interessante, mais saudável, mais certo.

O trabalho da discriminação é o primeiro, como nos aponta o mito, mas também o constante e infindo. Parece-me que as negativas de Psiquê acontecem em um ponto no qual ela já entendeu que deve permanecer numa posição passiva. Todo seu processo implicou no receber. Cada tarefa exigiu dela uma capacidade de acolhimento do que era proposto. As ajudas que obteve vieram todas de elementos da natureza, demonstrando que a sua atenção precisou ser constantemente atraída para dentro, para a descoberta de uma percepção interna, uma vez que essas interferências tinham como efeito principal recolocá-la em seu caminho. A armadilha maior que se desprende da história está na atitude de Afrodite, enquanto irmã das Erínias que tenta evitar o acesso da alma ao eros: a sedução de prestar "ajuda" sem levar em conta o próprio processo. O mito traz como bordão a ideia de suportar: discriminar e persistir, tendo como guias internos a confiança na própria alma animada por Eros. Dizer não, não e não!

Na vida de meus pacientes, sou testemunha de inúmeras situações em que a ajuda surge como armadilha. Uma paciente endivida-se para emprestar dinheiro ao irmão, cujo comportamento na vida até o momento é de continuidade do imutável. Ela imagina que o ajuda e que é capaz, com a dita "boa ação", de fazê-lo dar-se conta da sua desorganização financeira, de sua incapacidade de arcar com responsabilidades, de seu lado claudicante, de sua falta de limites, enfim, de tocar no seu destino. Auxiliar os pacientes a discriminar do que se trata o pedido e o que de fato aquela situação carece e, além disso, a refletir sobre como eles poderiam se envolver com seus conhecidos de modo a respeitar seus caminhos, mesmo que isso implique negar-lhes a mão, é uma tarefa enorme. Parece-me que o papel do analista é de permanecer firme como a torre a lembrar a alma que será preciso aguentar as seduções, dizer não às tentações e suportar as incertezas do trajeto para construir a rua que leva a eros, ao prazer, ao encontro sagrado.

De forma quase invisível, há outro requisito para esse encontro final: o não julgamento. Não prestar ajuda literal atinge o âmago da atitude cristã de nossa era, que é a piedade. Apiedar-se do outro em sofrimento é algo praticamente automático dentro do contexto judaico-cristão em que fomos forjados no Ocidente. Mas o mito ensina que a psique exige relatividade. E assim como será importante a alma/psique crer no sentido interno que a guiará, também ela deverá suportar os julgamentos daqueles que a virem como insensível. Muitas vezes, o paciente não permanece na não-ação e no silêncio, e age mais para não ser chamado de omisso. Estar a seu lado para que permaneça e resista, com as mãos ocupadas, com a atenção voltada para o processo, sem distrações, sem piedades ilícitas, sem julgamentos, para que possa ter olhos na escuridão da descida, para que pague os preços necessários, para que volte à luz transformado, se fazendo merecedor da coniunctio Psiquê-Eros dentro de si, eis o desafiador papel do analista.

Viver é um descuido prosseguido.
(João Guimarães Rosa)

 

Referências bibliográficas

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VON FRANZ, M.-L. O asno de ouro – O romance de Lúcio Apuleio na perspectiva da psicologia analítica junguiana. Tradução Inácio Cunha. Petrópolis: Vozes, 2014.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Sylvia Mello Silva Baptista
E-mail: ssylviamellobaptista@gmail.com

 

Recebido em: 2/3/2015
Revisão: 17/8/2015

 

 

* Psicóloga, membro analista da SBPA/IAAP, mestre em psicologia clínica (PUC-SP), professora, supervisora clínica e coordenadora do Núcleo de Mitologia e Psicologia Analítica (MiPA) na SBPA e no Areté – Centro de Estudos Helênicos. Autora de O arquétipo do caminho (Casa do Psicólogo) entre outros.

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