SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.34 número2Uma explicação arquetípica da crucificação de Jesus pela teoria arquetípica da história índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.34 no.2 São Paulo dez. 2016

 

RESENHA

 

A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japoneses

 

The Japanese psyche –major motifs in the fairy tales of Japan

 

KAWAI, Hayao. São Paulo: Paulus, 2007. 278 p.

 

 

Ludmila da Silva Pires*

ONG Espaço Mãos Dadas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe-se a analisar criticamente o livro A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japoneses, escrito pelo psicólogo analítico japonês Hayao Kawai. Após uma contextualização do autor e de sua obra, que objetivou transformar a psicologia analítica em um corpo de pensamento e práxis que pudesse se apropriar da mente japonesa, realiza-se um breve exame crítico da obra do psicólogo japonês e de sua formulação teórica.

Palavras-chave: psicologia analítica, contos de fadas japoneses, Hayao Kawai, cultura japonesa.


ABSTRACT

This article is a review of the book The Japanese Psyche – Major Motifs in the Fairy Tales of Japan, written by Hayao Kawai. After a brief contextualization about the author and his work, which aimed to transform analytical psychology in a body of thought and practice that could grasp the Japanese mind, there is a critical analysis of the Kawai's work and his theoretical formulation.

Keywords: analytical psychology, Japanese fairy tales, Hayao Kawai, Japanese culture.


 

 

Enquanto primeiro psicólogo junguiano do Japão, Hayao Kawai (, 1928-2007) influenciou consideravelmente o campo da psicologia clínica e dos estudos culturais e religiosos japoneses. Ele introduziu o conceito do jogo de areia (sandplay) à psicologia japonesa, além de participar do Círculo de Eranos, em 1982. Um de seus trabalhos mais conhecidos, A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japoneses, propõe-se a examinar a alma japonesa por meio da interpretação dos contos de fadas nipônicos, além de realizar comparações com suas contrapartes ocidentais. A obra apresenta, ao longo de seus nove capítulos, os esforços de Kawai em transformar a psicologia analítica em um corpo de pensamento e práxis que pudesse se apropriar da mente japonesa, isto é, que se baseasse na estrutura da psique oriental e não apenas em uma simples transposição de pressupostos e práticas ocidentais para o Japão.

A proposta geral do autor é fornecer uma compreensão entre os japoneses e os "povos do Ocidente", tanto em suas semelhanças como em suas propriedades distintivas. Entendendo o folclore e a mitologia enquanto fontes de compreensão das profundezas da mente humana, Kawai faz uso dos (mukashi banashi), os "contos de antigamente", que compõem o folclore nipônico, frutos do imaginário japonês. Posteriormente, ele sublinha a importância da figura feminina presente no universo da psique japonesa – que compreende uma variedade de personagens, como a deusa-sol Amaterasu, a rainha Pimiko, até as poderosas mulheres xamãs dos templos xintoístas (KAWAI, 2007, p. 11-12).

Na introdução, Kawai apresenta sua justificativa para a escolha dos contos em seu livro. Seu enfoque se dá na força das figuras folclóricas femininas e como essas podem ser consideradas enquanto representantes do ego japonês. Para embasar suas comparações e o desenvolvimento de seu pensamento, o autor faz referência aos trabalhos de James Hillman e sua psicologia arquetípica e à teoria de desenvolvimento do ego de Erich Neumann. Porém, ele vai além ao destacar as peculiaridades das histórias japonesas, gerando uma rica compreensão acerca da cultura e da personalidade nipônicas. Propõe um ponto de vista "desenvolvimental" do ego que seja apropriado à psique japonesa.

O primeiro capítulo, intitulado "O tema do quarto proibido", dedica-se ao estudo de um conto popular conhecido como "A casa do rouxinol" (, Uguisu No Sato), uma narrativa que transita visivelmente entre os espaços cotidiano (consciência) e não cotidiano (inconsciente). Os pontos principais abordados por Kawai, em relação ao conto, são a transgressão de uma proibição que não é punida e o nada primordial, um conceito comum nas narrativas orientais. O autor também introduz dois elementos fundamentais para a compreensão das histórias nipônicas: (urami), que representa o ressentimento, e (, aware), uma espécie de leve tristeza sem esperança, uma ideia de pathos dos contos de fadas japoneses. Sendo assim, ele revela que o "nada e a tristeza" fazem parte da corrente principal da cultura japonesa (KAWAI, 2007, p. 39-44).

O conto elencado pelo autor permite aclarar o que se compreende como o nada primordial, ou o nada absoluto, uma instância comumente presente tanto nos escritos zen-budistas como nas obras de filosofia da Escola de Kyoto. Segundo Kawai, a presença do nada ou do vazio não é sinônimo de que não aconteceu nada em uma histó- ria, mas que simplesmente "o nada aconteceu" (KAWAI, 2007, p. 41-42). Portanto, o nada não representa a negatividade, mas algo que está para além do positivo e negativo, para além das palavras e que expressa em si uma potencialidade.

No primeiro capítulo de A psique japonesa, em particular, pode-se notar uma distinção cultural levantada por Kawai e que também foi abordada por filósofos, psicólogos e outros autores estudiosos do pensamento oriental. Para o filósofo Nishida Kitaro, por exemplo, a distinção cultural entre Oriente e Ocidente é baseada na ideia de que o fundamento da realidade, para o Ocidente, é o ser, ou seja, a forma. Enquanto que, para o Oriente, é o nada, o sem forma (KITARO apud HESIG, 2013, p. 101). Isso remete à concepção das formas de pensamento oriental e ocidental, que foram identificadas por Jung, em termos de características psicológicas e atitudes psíquicas, como formas completamente distintas. De modo geral, o homem ocidental é extrovertido, ou seja, é aquele que se orienta a partir do mundo externo, das condições objetivas. Por outro lado, o pensamento do tipo introvertido, predominante no Oriente, seria aquele que se norteia para fatores subjetivos (JUNG, 2011, p. 17-18). Para Jung, "O homem ocidental procura sempre a exaltação e o oriental, a imersão ou o aprofundamento" (JUNG, 2011, p. 113). É essa diferenciação que sustenta o trabalho de Kawai, permitindo que o autor prossiga em sua construção de uma imagem do ego nipônico.

No segundo capítulo, intitulado "A mulher que não come nada", Kawai discorre acerca do lado negativo da mulher e da maternidade. Assim como a madrasta aparece nos contos de fadas para enfatizar os aspectos negativos da maternidade, (Yama-Uba) – figura do folclore japonês e uma espécie de mulher devoradora – surge nesse capítulo como uma representação do aspecto devorador da grande mãe, de onde tudo nasce e para onde tudo retorna. Os capítulos subsequentes de A psique japonesa apresentam uma série de figuras femininas oriundas do imaginário japonês, tais como: esposas não humanas, mulheres persistentes, insistentes ou determinadas, dentre outras.

As histórias escolhidas pelo autor têm o intuito de demonstrar a extrema força de atração que o inconsciente exerce na mente japonesa. Desse modo, ele sugere que os olhos pelos quais os japoneses enxergam o mundo e a realidade estão localizados no inconsciente e não na superfície da consciência. É o que se chama de ter os "olhos semicerrados" (KAWAI, 2007, p. 187-191).

Ao longo da obra, o autor destaca que uma das características do povo japonês é a ausência de uma distinção clara entre os mundos interno e externo, ou seja, entre os campos consciente e inconsciente. Essa característica, segundo Kawai, pode ser representada pelas figuras do (fusuma) ou (shouji), respectivamente a "janela corrediça" e a fina "porta de papel", símbolos presentes no cotidiano e na cultura oriental que, metaforicamente, apontam para uma maior permeabilidade entre consciente e inconsciente.

Torna-se nítido que Kawai, no decurso de sua obra, esboça detalhes a fim de criar um perfil de ego que não somente se destaca do modelo ocidental, mas que também ressalta determinadas características culturais típicas do povo japonês. Para sustentar sua teoria, ele lança mão de numerosas comparações e metáforas, para além da realizada entre os contos populares ocidentais e orientais. É digno de nota que o autor introduz um novo ponto de vista acerca da consciência e do ego orientais, embora pareça deixar de lado conceitos importantes da psicologia junguiana, tal como a figura feminina interior do ego masculino: a anima.

É especificamente no nono capítulo, "As mulheres determinadas", que Kawai sistematiza o que é sua figura feminina do ego, que ele vem a nominar de "mulher determinada". Essa figura feminina, que possui marcantes características de passividade e força para enfrentar as dificuldades, seria quem melhor traduz o ego japonês, estando mais conectada com o modo de vida geral dos homens e mulheres no Japão (KAWAI, 2007, p. 173). Trata-se de uma consciência que busca a totalidade, que procura aceitar de volta o que foi cortado ou excluído. Portanto, ela aceita o que vier, até mesmo a imperfeição ou as contradições internas, tratando-se de um ego multifacetado, diverso e que pode incluir a totalidade (KAWAI, 2007, p. 238).

Tal como Jung e seus seguidores assinalaram, o folclore e a mitologia são uma fonte rica de compreensão da mente humana, dos seus símbolos e de suas nuances (HENDERSON apud JUNG, 2008, p.137). Assim, desenvolveu-se um método de análise desse material folclórico e mítico que revela, pouco a pouco, os elementos e a dinâ- mica da psique. Kawai, ao utilizar esse método, inova ao trazer um olhar específico para o folclore japonês e sua diversidade cultural, além de realçar a força da figura feminina enquanto protagonista no processo de desenvolvimento do ego. Cabe considerar que as diversas figuras femininas incluí- das nos capítulos do livro de Kawai não compõem estágios sequenciais de desenvolvimento do ego, mas aparecem, supostamente, como camadas múltiplas de uma totalidade.

Em suma, o livro é um convite para que o leitor se aprofunde nas histórias japonesas e na riqueza cultural do Oriente, pela ótica da psicologia analítica. É uma obra abrangente que, com uma abordagem irreverente e provocativa, instiga o leitor a imergir na complexidade do pensamento japonês. Ademais, A psique japonesa é o retrato e componente histórico de um dos primeiros passos da psicologia junguiana em solo japonês.

 

Referências bibliográficas

HENDERSON, J. L. Os mitos antigos e o homem moderno. In: JUNG, C. G. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro:. Nova Fronteira, 2008. p. 137.         [ Links ]

HEISIG, J. W. Filósofos de la nada: un ensayo sobre la Escuela de Kyoto . Barcelona: Herder Editorial, 2013. p. 410.         [ Links ]

JUNG, C. G. Psicologia e religião oriental . Petrópolis: Vozes, 2011. p. 165.         [ Links ]

KAWAI, H. A psique japonesa – grandes temas dos contos de fadas japoneses. São Paulo: Paulus, 2007. p. 278.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Ludmila da Silva Pires
E-mail: pires.ludmila1@gmail.com

 

 

* Graduada em psicologia pela Faculdade de Estudos Administrativos de Minas Gerais (2014). Atua profissionalmente nas áreas de políticas públicas, desenvolvimento de projetos no terceiro setor e código de ética do psicólogo. Atualmente, ministra cursos de práticas corporais orientais e é coordenadora de projetos na ONG Espaço Mãos Dadas.

Creative Commons License