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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.35 no.2 São Paulo  2017

 

Da natureza e do inconsciente coletivo

 

Of Nature and the Collective Unconscious

 

De la Naturaleza y del Inconsciente Colectivo

 

 

Zilda Gorresio*

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo traçar um paralelo entre o conceito de inconsciente coletivo da psicologia analítica e a concepção de natureza dentro da tradição filosófica. Tenta demonstrar a proximidade do pensamento analítico, no que se refere à concepção de Natureza e inconsciente, com a concepção de Natureza no Romantismo alemão e na filosofia grega.

Palavras-chave: Inconsciente coletivo, natureza, Phýsis, cosmos, arché.


ABSTRACT

This article aims to draw a parallel between the concept of the collective unconscious of analytical psychology and the conception of Nature within the philosophical tradition. It tries to demonstrate the proximity of analytical thinking, regarding the conception of Nature and unconscious, with the conception of Nature in German Romanticism and Greek philosophy.

Unitermos: Collective Unconscious, Nature, Phýsis, cosmos, arché.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo trazar un paralelo entre el concepto de inconsciente colectivo de la psicología analítica y la concepción de la naturaleza dentro de la tradición filosófica. Intenta demostrar la proximidad del pensamiento analítico, en lo que se refiere a la concepción de Naturaleza e inconsciente, con la concepción de Naturaleza en el Romanticismo alemán y en la filosofía griega.

Uniterms: Inconsciente colectivo, naturaleza, Phýsis, cosmos, arché.


 

 

O conceito de natureza é um dos conceitos fundamentais do pensamento filosófico e, mais ainda, da inteligibilidade humana. Nos Pré-socráticos, em Platão e Aristóteles e ao largo de toda a história do pensamento ocidental, a palavra "natureza" ocupou um lugar capital e tomou vários significados ao longo da história das ideias. Para compreendê-lo, é necessário por às claras o que é o principal nele e despojá-lo de conotações secundárias.

Tecendo comparações entre as várias tradições religiosas e filosóficas da cultura ocidental e oriental, e amplificando os símbolos, na tentativa de melhor compreender a alma humana, sempre dentro da prática empírica, Jung redescobriu a ideia muito antiga da correspondência entre o microcosmo humano e o macrocosmo divino. E foi dentro do conceito de Natureza pensada pelo romantismo alemão, que a noção de inconsciente na psicologia de Jung teve seu amparo histórico-filosófico. Foram os românticos os primeiros filósofos a pensar a interioridade humana como Natureza, como veremos.

Para Jung o inconsciente é o mesmo que Natureza, e o projeto da psicologia analítica é integrar a Natureza em nós, estabelecendo um profundo diálogo com ela, e não extirpá-la ou fazê-la calar. Isto fica claro ao lermos a seguinte passagem de sua obra:

Vivemos protegidos por nossas muralhas racionalistas contra a "eternidade da natureza". A psicologia analítica procura justamente romper essas muralhas, ao desencavar de novo as imagens fantasiosas do inconsciente que a nossa mente racional havia rejeitado. Essas imagens situam-se para além das muralhas; "são parte da natureza que há em nós" [...], e contra qual nos entrincheiramos por trás das muralhas da ratio (razão) (JUNG, 1991,§739[grifo nosso]).

No sentido de entendermos a nova aliança com a Natureza, estabelecida por Jung, teremos que percorrer história do conceito, sem a pretensão, no entanto, de exauri-lo, mas de trazer os marcos importantes da sua história.

Ao longo da história do pensamento, o termo Natureza (do grego, Phýsis, do latim, natura) foi definido dentro da Filosofia pelos seguintes conceitos principais: princípio de movimento e substância; ordem necessária ou conexão causal; exterioridade contraposta à interioridade da consciência; o macro e o microcosmo formando uma unidade, como também aquilo que singulariza algo existente, ou seja, seu princípio ou sua essência ou princípio diretivo.

A noção da natureza como princípio de vida e de movimento de todas as coisas existentes é a sua mais antiga e venerável noção, e os primeiros representantes dessa visão foram os pré-socráticos.

Os filósofos pré-socráticos, chamados mais costumeiramente de physiológoi ou kosmólogoi, foram os primeiros pensadores do Ocidente, que, a partir do século VI AC, iniciaram uma nova forma de explicação do universo, de maneira racional e não mitológica. Com eles o mito deixa de ser a forma de explicar a realidade e o logos passa a ser a nova forma de discurso.

Estes primeiros filósofos começaram a indagar sobre a arché da realidade. A palavra arché, por sua vez, designa não somente o início de algo, mas é a fonte inaudita de tudo que é, e de onde tudo brota incessantemente; é também o poder, a força, o princípio constitutivo, a matéria prima ou substância primeira, do que estes pensadores chamavam Phýsis. O interesse fundamental dos pensadores pré-socráticos foi pensar a arché da Phýsis. Neste sentido, Phýsis e arché não são conceitos que podem ser separados, antes disso, denominam dimensões de uma mesma realidade em perpétuo devir.

A palavra grega Phýsis, "é um derivado da raiz phy, que quer dizer brotar, crescer. O sufixo sis, em grego, corresponde ao tione, em latim, e ção, em português. [...] Podemos dizer, então, que Phýsis significa 'brotação', isto é, o ato dinâmico de nascer e de brotar" (MURACHCO, 1996a, p. 14). Phýsis carrega, portanto, o sentido de devir, de tornar-se, de vir a ser. Designa o crescimento espontâneo de algo não por um fator extrínseco, mas pela força que lhe é intrínseca. Designa a própria experiência do devir de tudo que existe. Por isso, a palavra Phýsis tem um sentido muito abrangente, pois abarca tudo que é em qualquer nível de ser: o céu, a terra, um animal, uma pedra, uma planta, o ser humano, mas também um sentimento, um deus, tudo que é, é uma expressão de Phýsis: "À Phýsis pertencem o acontecer humano como obra do homem e dos deuses, e os próprios deuses, como a expressão mais brilhante da Phýsis, sua ontofania" (UNGER, 2006, p. 26).

Poderíamos afirmar que a intuição essencial dos pensadores pré-socráticos é a unidade profunda e dinâmica de tudo que é, vale dizer, da Phýsis.

Outra palavra que se adere ao conceito de Phýsis dentro desse período na Grécia é a palavra kósmos. A concepção de Phýsis induziu os pré-socráticos a trabalhar a palavra kósmos, que significa ordenação e beleza. A Phýsis é um kósmos, isto é, a natureza é vida dotada de movimento e ordem intrínseca a ela mesma. E já que para os gregos o que é dotado de movimento próprio é divino, em sendo assim, a Phýsis ou Natureza é divina. Nesse sentido disse Heráclito: "Esta ordem do mundo (a mesma de todos) não a criou nenhum dos deuses, nem dos homens, mas sempre existiu e existe e há de existir: um fogo sempre vivo que se acende com medida e com medida se extingue" (KIRK; RAVEN, 1994, p. 205).

Outra definição de Natureza como substância ou essência necessária encontra-se na Metafísica de Aristóteles (384-322) que envolve o conceito de matéria e forma (essência-ousia). Duas ideias básicas dominam o conceito de Natureza em Aristóteles, a gênese das coisas e a substância (ousia), isto é, a essência das mesmas, bem como a de movimento. "Nisto se revela a dupla carga semântica da raiz Phy, da qual procede a palavra Phýsis, a do ser e a de tornar-se ou vir a ser" (PANNIKAR, 1972, p. 56).

A Natureza para Aristóteles, portanto, é "a substância das coisas que têm o princípio do movimento em si próprio em quanto tal" (1998, v.4 4, 1015a13).

Neste sentido, a Natureza não é só causal, mas causa final, ela é teleológica, ela tende a um fim. A tese do finalismo da Natureza compreende um princípio movimento teleológico inerente à Natureza, ao qual Aristóteles deu o nome de enteléchia: a realização plena e completa de uma tendência, potencialidade ou finalidade natural, em qualquer um dos seres animados e inanimados do cosmos.

A segunda concepção fundamental de Natureza é a de ordem e necessidade e finalidade. Se Platão e Aristóteles tinham já formulado uma concepção teleológica do cosmos, os estoicos vão mais além, pois acentuam a regularidade e a ordem do devir à qual a Natureza preside. "Trata-se do fato estoico, que é a necessidade absoluta da ordem cósmica estabelecida por Deus (Pneuma, ou Zeus). Essa concepção de natureza necessária para os estoicos levou-os a pensar a Natureza como destino, como necessidade inelutável, denominada de Hiemarméne" (REALE, 1994, v.3, p. 316).

Devemos esclarecer que durante a Idade Média, período que se estende entre o século V e o XV, culturalmente abarca filósofos árabes, judeus e cristãos como em nenhum outro momento da história da filosofia. Tal fato torna difícil enquadrar uma única posição a respeito da filosofia da natureza nesse período. Mas com certeza, a ideia de correspondência entre a ordem macrocósmica e a ordem microcósmica permanece. O homem ainda é parte de um macrocosmo divino, suas raízes ainda estão plantadas na Natureza que é divina, mesmo quando é compreendida como "exterioridade" do espírito e por isso imperfeita e descaracterizada, como é o caso de Plotino (2002) e de toda teosofia medieval.

Mais à frente na história das ideias, no período renascentista, o naturalismo renascentista recorreu ao sentido de Natureza como Deus mesmo, dado a virtude divina que se manifesta nas coisas, portanto, a Natureza é divina. A Natureza é compreendida como um sistema vital de conexões necessárias. Já o aristotelismo renascentista retoma o conceito de Natureza como ordem, como necessidade absoluta da ordem cósmica estabelecida por Deus. Essa noção de natureza fundamenta as primeiras noções da ciência moderna sem, no entanto, desenraizar o homem dela. Em Copérnico, Kepler e Galileu, a concepção da natureza é entendida ainda como ordem necessária, mas de caráter matemático, porém perde a noção finalista.

Esse sentido de Natureza atravessou todo o naturalismo renascentista até o século XVII, quando, nesse século mesmo, começou a contraposição entre o homem e a Natureza com René Descartes, ao dar início à filosofia moderna, processo que já havia sido iniciado um século antes com Roger Bacon, empirista inglês.

Desde a Grécia arcaica, os sábios e os filósofos elaboraram um modelo de cosmos, como podemos ver, no seio do qual prevaleceu a correspondência entre o microcosmo humano e o macrocosmo divino. Esse esquema teve sua autoridade no Ocidente até a ruptura instalada com o advento das primeiras manifestações da ciência moderna, com os empiristas ingleses, depois com Descartes e para finalizar com Kant.

René Descartes (1596-1650), filósofo francês do século XVII, foi o pensador que demarcou as bases do pensamento da ciência moderna. Sua filosofia teve profundo impacto no Ocidente. Suas ideias influenciaram muito a relação do homem com a natureza, pois Descartes foi o primeiro filósofo a romper com a tradição e a desenraizar-se de tudo que fosse história, como parte de seu método de conhecimento. Seu desenraizamento foi tanto que ele chegou a se pensar como apenas uma substância, cuja essência é "pensar", destituindo-se de toda materialidade (corpo) e espaço. Como disse em suas meditações: "De sorte que, esse eu, isto é a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo e de fato é mais fácil de conhecer do que o corpo, e, ainda que nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é" (DESCARTES,1983, p. 47).

Esta citação de Descartes marca a transformação da Natureza num mero espaço geometrizável, o lugar sem sacralidade e valor, além disso, marca a cisão entre a Natureza e o pensamento.

Com Descartes, a tradição da filosofia entra em um processo de aniquilamento e com ela a mais venerável noção de Natureza como divina, e do homem como parte da Natureza. A dessacralização da Natureza, agora compreendida como res extensa separada da res cogitans, é pensada como substância que não pensa, extensa, imperfeita, finita e dependente, passa a ser alvo de manipulação e especulação físico matemática, o que desencadeou um longo processo histórico de domínio e manejo da natureza, cujas consequências podemos sentir em nossos dias. Iniciou-se assim, a quebra da tradição milenar do cosmo estético-religioso da cultura ocidental.

O desenraizamento do homem da natureza ganha um plus com Immanuel Kant (1724- 1804). Kant é famoso, sobretudo, pela elaboração do denominado idealismo transcendental. A filosofia da natureza e da natureza humana de Kant é historicamente uma das mais determinantes fontes do relativismo conceptual que dominou a vida intelectual do século XX. Diferentemente de Descartes, Kant reduziu o ser à razão, negando totalmente existência da realidade exterior quando coloca a sua total dependência em relação ao sujeito conhecedor.

Como o grande crítico da metafísica parmanece dogmática, para Kant a ideia de alma, de mundo, unidade absoluta da experiência externa, e de Deus são conceitos necessários da Razão, e não realidades em si, pois deles não podemos ter conhecimento objetivo, isto é, que envolva sensibilidade e entendimento. Portanto, a cosmologia pensada pela metafísica permanece dogmática que culmina com a ideia de Natureza como cosmos, para Kant é uma das ilusões transcendentais (KANT, 1997, p. XVII).

Segundo ele, pela expressão natureza entende-se apenas o conjunto dos fenômenos que só existem segundo regras necessárias ou leis do pensamento. A natureza para Kant não é um princípio metafísico, um sistema vital divino de conexões necessárias, mas a possibilidade da Razão, ou das leis universais originárias da Razão, graças às quais é possível a experiência empírica.

Estava instalado assim, o paradigma moderno, leitura do ser, do conhecer e do homem. Dentro desse paradigma o homem agora centrado na Razão soberana, desintegrou-se da Natureza.

O movimento romântico, do final do século XVIII e início do século XIX, assinalou um momento decisivo na filosofia europeia. O movimento romântico foi um movimento contra iluminista, sendo assim, questionar o paradigma moderno foi a grande tarefa filosófica do Romantismo alemão. Um novo paradigma nasce com o Romantismo, em que o ser, o conhecer e o homem são pensados em novas bases filosóficas, escapando do empirismo experimental, sem consistência e sem fundamento, e do idealismo crítico incapaz de respeitar a autonomia da realidade.

O objetivo da Naturphilosophie, assim denominada pelos românticos, foi pôr em evidência o organismo total da Natureza. Para eles a Natureza existe por ela mesma, e este realismo é sincronizado com o idealismo, "dado que a natureza é o organismo visível correspondente àquele que existe invisivelmente no nosso entendimento" (GUSDORF, 1993, p. 419). Para os românticos, a totalidade, ou seja, a Natureza, este grande organismo ou sistema vivo, é um princípio ontológico, e não um produto lógico do pensamento, como pretendeu Kant. A tese de seus trabalhos é que a consciência não é homóloga à alma. Esta última possui uma expansão igual àquela do universo; ela emerge, das profundezas onde a vida se desdobra sem consciência da vida.

A primeira frase do livro Psyche de C. G. Carus (1789-1869), filósofo romântico alemão, revela: "[...] a chave para o conhecimento da essência da vida consciente da alma se encontra na região do inconsciente" (1846, 2ª ed. apud GUSDORF, 1993, v.2, p. 160).

Fica claro que, para estes filósofos, Natureza é o mesmo que inconsciente. Esta filosofia suprime, assim, a dualidade entre o res cogitans e a res extensa, afirmando como fez Schelling: "que a atividade consciente é primitivamente idêntica ao inconsciente" (1797, apud GUSDORF, 1993, p. 418).

Para F.W. Schelling (1775-1854), filósofo que sistematizou as concepções da filosofia romântica, o Absoluto é o princípio divino condicionando o real total, é a harmonia, a identidade, a unidade sintética dos contrários, unidade vivente onde se encontra o germe de toda a diversidade existente. Segundo ele, o real pensado como organismo é compreendido como um Todo preexistente às suas partes, dotado de sentido e movimento próprio. Compreendeu a Natureza como um sistema teleológico em processo, resultante de uma força inteligente criativa nela mesma. Sendo assim, a primitiva aliança do homem com a Natureza fora restaurada, o que Schelling chamou, de "estado de natureza da filosofia" (1797, apud GUSDORF, 1993, v.2, p. 460).

Para Schelling, o homem é um complexo de matéria e espírito, imerso nesse Organismo, a Natureza, inteligente em perpétuo devir. Para ele não há um fio misterioso que liga nosso espírito à natureza, ou um "órgão" intermediário através do qual a natureza fala ao espírito e o espírito à natureza, como pensou Descartes, mas: "A Natureza deve ser o Espírito visível, e o Espírito a Natureza invisível" (1797, pp. 45-46, apud GUSDORF, 1993, v.2, p. 460).

Portanto, a consciência e a razão humana foram vistas como a floração própria de sua estação, isto é, do seu momento histórico. A consciência humana representa um momento no devir da inteligibilidade da Natureza em busca da sua própria perfeição. Por isso, a respeito do conhecimento, se o espírito é Natureza e Natureza é espírito e, se a consciência humana é a revelação da inteligibilidade da Natureza, decorre daí que o espírito conhece a Natureza, pois é Natureza. E foi a partir da redescoberta da linguagem simbólica, a que se dá através da imaginação criativa e da intuição pura, que se percebeu que a Natureza fala de uma maneira tanto ou mais inteligente que o nosso pensamento reflexivo1.

Assim sendo, desta perspectiva, a nossa consciência pressupõe uma inteligibilidade unitária com aquilo que é seu fundamento ontológico. Essa unidade liga indissoluvelmente a consciência conhecedora e a realidade conhecida. Tal visão de mundo reconecta a humanidade a uma totalidade originária preestabelecida e restabelece o sentido da vida humana, na medida em que assegura a existência de sua vida interior pela eternidade. A humanidade: "[...] é uma força num sistema de todas as forças, um ser na imensa harmonia de um mundo de Deus" (1962 apud GUSDORF 1993, p. 423).

Esta visão da Natureza abrange o sentido grego de theós, "uma projeção, uma ideia, uma visão pela mente" (MURACHCO, 1996b, p. 75). Ou como disse Schelling, opondo-se ao criticismo, "[...] o verdadeiro sistema não pode ser inventado, pode apenas ser encontrado enquanto um sistema em si; a saber, no entendimento divino, já existente" (1985 apud SCHUNBACK, 1998, p. 130).

A hipótese de uma harmonia preestabelecida da Natureza e do espírito recobrou com os românticos aquela imagem tão antiga do divino como Phýsis. O mundo retomou, para os românticos, a antiga imagem de uma realidade preordenada, vital e infinita em perpétuo devir. Esta intuição se afirmou, parece-nos, em todos os tempos e lugares e, segundo Schelling:

[...] Esta ideia é tão antiga e se manteve sob formas as mais variadas até nossos dias de uma forma tão constante (nos tempos mais antigos, acreditava-se que o mundo inteiro estava penetrado por uma alma chamada alma do mundo, e na época de Leibniz atribuía-se uma alma a cada planta) que se é obrigado a supor que há no próprio espírito humano uma razão para essa crença de vida da natureza. E é realmente assim; [...] é por essa razão que o espírito humano concebeu a ideia de uma matéria organizando-se ela mesma e, como a organização só pode ser representada pelo relacionamento com um espírito, temos que admitir que o espírito e a matéria estão desde sempre indissoluvelmente unidos nas coisas (1797, apud GUSDORF, 1993, v. 2, p. 471).

Schelling, relembrando os físicos pré-socráticos e a cosmologia tradicional, descobriu o pressentimento dessa verdade permanente, ou seja, da ordem da Natureza. Então, pensamos que essa ideia permanente é uma expressão arquetípica pertencente à própria natureza humana, e que as ciências ditas positivas só mascararam a verdade essencial que habita o universo. A flor azul romântica, emblema do Romantismo, representou um novo valor de vida, pois, a seu modo, o romantismo retomou a Grécia, tentando restaurar a tradição milenar do cosmo estético-sagrado.

Como herdeiro do romantismo, formular uma visão unificada de mundo também foi preocupação de Jung, sendo grande sua contribuição para a psicologia nesse sentido, ao formular uma concepção mais ampla de inconsciente, vale dizer, como psique objetiva ou inconsciente coletivo.

Jung, aprofundando sua compreensão do inconsciente coletivo, em 1931, num artigo cujo título original é Die Entscheierung der Seele traduzido para o português como O problema fundamental da psicologia contemporânea, introduz o termo "psique objetiva", que é o equivalente a inconsciente coletivo, para mostrar que o inconsciente é uma realidade em si mesma, ou como ele diz: uma realidade objetiva. Cabe ressaltar que Jung, no entanto, como médico da alma, chegou a conceber o inconsciente como realidade autônoma e objetiva a partir de sua práxis como médico, e argumenta que pensar o inconsciente como fonte de vida parte da "experiência" de sua autonomia. Pois, "[...] De onde surgem o entusiasmo, e a inspiração e o exaltado sentimento de vida" (JUNG, 1911, §668)? Nós sentimos a presença desta realidade misteriosa e temível toda vez que "traímos" nossas intenções conscientes, e toda vez que subitamente somos tomados por um sentimento de medo ou de vida inspirador, e não sabemos de onde vem. Como disse nosso venerável mestre, Jung:

O psiquismo aparece como uma fonte de vida, um "primum movens" (motor primeiro), uma presença espiritual que tem objetiva realidade [...] o psíquico não é [...] a quintessência do subjetivo e do arbitrário; é algo objetivo, subsistente em si mesmo e possuidor de vida própria (JUNG, 1991, §666).

Fica evidente a aproximação, neste parágrafo, de inconsciente com o conceito romântico de Natureza, fonte inaudita de tudo que é e de onde tudo brota incessantemente, a prima matéria de tudo que existe. É o que os pensadores gregos chamavam de Phýsis, e os românticos, de Natureza, como já vimos.

Podemos ler o inconsciente coletivo desta perspectiva em várias passagens de sua obra. Recolhemos alguma delas no sentido de demonstrar sua aproximação com o romantismo alemão, em relação ao inconsciente como Natureza. Citando Jung, percebemos que o inconsciente:

É o mundo da água onde todo o vivente flutua em suspenso, onde começa o reino do "simpático" da alma de todo ser vivo [...].O inconsciente coletivo é tudo salvo um sistema pessoal fechado, é uma objetividade vasta como o mundo e aberta ao mundo inteiro. [...] Lá, no inconsciente coletivo, eu estou ligado ao mundo numa ligação tão mais imediata que eu esqueço muito facilmente quem eu sou em realidade (JUNG, 2000, v.1, §45 e 46).

Esse trecho mostra a viva ideia de que o inconsciente coletivo é muito mais que um legado histórico, a somatória da experiência da humanidade, ou seu legado filogenético. Jung, ao dizer que o inconsciente coletivo é uma "objetividade vasta aberta ao mundo inteiro", concebe-o como uma vida objetiva, como espécie de uma tessitura invisível onde todos os seres, e não só os homens têm seu ser. Assim compreendido, o inconsciente coletivo é o fundamento de toda espécie de existência, alma de tudo o que vive, ele é Natureza como pensaram os românticos.

Em outro trecho, em que o inconsciente coletivo aparece como a metáfora do oceano e dos peixes nele contidos, podemos ver a mesma ideia de Natureza como um sistema, a invisível interdependência de toda vida no cosmos. Leiamos:

Enquanto o não-ego (inconsciente) parece ser oposto a nós, naturalmente o sentimos como um oposto, mas depois entenderemos que o inconsciente coletivo é como um vasto oceano, com o ego flutuando sobre ele como um pequeno barco. Então, quando vemos isto, surge a questão se estamos contidos no oceano. [...] os peixes são unidades vivas no oceano; eles não são absolutamente como ele, mas estão contidos nele; seus corpos, suas funções, estão maravilhosamente adaptados à natureza da água, a água e o peixe formam um "continuum" vivente. [...] Quando aceitamos este ponto de vista temos que supor que a vida é realmente um "continuum" e destinado a ser como é, isto é, toda uma tessitura na qual as coisas vivem com ou por meio uma da outra. Assim, árvores não podem existir sem animais, ou animais sem plantas, e talvez animais não possam ser sem o homem, ou o homem sem animais e plantas, e assim por diante. E sendo a coisa inteira uma tessitura, não é de admirar que todas suas partes funcionem juntas [...] porque são partes de um continuum vivo" (JUNG, 1976, p. 180).

Não podemos deixar de ver aqui presente ideia de um organismo, de um todo orgânico, de um grande sistema em que cada ser individual está mergulhado, é onde nos movemos, vivemos e temos nosso ser. Este relato traz a ideia de que entre a vida do grande todo e a vida humana existem uma relação de englobamento ou de pertença, tônica distintiva da Naturphilosophie.

A compreensão do inconsciente coletivo como continuum vivente reúne o subjetivo com o objetivo, o indivíduo com o mundo, o fato exterior com a imagem interna, o corpo com a alma, matéria com o espírito, o múltiplo com o uno, em outras palavras, é onde os opostos se anulam e fazem parte de um círculo intacto.

Esta ideia exprime que as coisas são em conjunto e evidencia a qualidade do inconsciente coletivo como Natureza. Nós estamos na psique e não ela em nós; nossas raízes estão mergulhadas na Natureza, o que vale dizer, no inconsciente.

Ainda em outro texto, aproximando inconsciente à ideia grega de arché, Jung descreve o inconsciente coletivo como origem de toda manifestação de vida, como a prima matéria de toda vida. Cito a passagem em que essa perspectiva aparece:

E talvez seja apenas o modo pelo qual ele é destacado (o indivíduo), apenas o tamanho ou a forma como é talhado, que indica o indivíduo particular, um tendo mais desta substância e menos da outra, esta forma ou aquela forma. Mas todos são sempre feitos da matéria do inconsciente coletivo... (JUNG, 1976, p. 180).

Diante de tais textos, a compreensão de inconsciente coletivo não pode ficar restrita à compreensão de um substrato filogenético e experiencial, como colocamos, mas tem que ser entendida como a harmonia preestabelecida ou arché de toda individualidade, bem como da totalidade. O inconsciente coletivo, portanto, é a misteriosa ordem do mundo, compreendida como Phýsis pelos gregos, e Natureza pelos românticos. Sendo assim, não seria demais pensarmos que o inconsciente tenha uma inteligência nele mesmo, o que Jung irá afirmar quando, em seu estudo Sincronicidade: um Princípio de Conexões Acausais, de 1952, refere-se à qualidade de conhecimento absoluto do inconsciente coletivo. Conforme Jung:

O conhecimento absoluto, que é característico dos fenômenos sincronísticos [...] serve de base à hipótese do significado subsistente em si mesmo, ou exprime sua existência. Esta forma de existência só pode ser "transcendental" porque, como no-lo mostra o conhecimento de acontecimentos futuros ou espacialmente distantes, situa-se em um espaço psiquicamente relativo e num tempo correspondente, isto é, em um contínuo espaço-tempo irrepresentável (JUNG, 1991, §938).

O fenômeno da sincronicidade atesta a autonomia do inconsciente capaz de organizar e dar forma aos acontecimentos exteriores, bem como, ao nível das imagens internas tem o poder de organizar e ordená-las significativamente. Demonstra ainda a atemporalidade do inconsciente, pois ao situar-se "num contínuo espaço-tempo irrepresentável", vive num tempo eterno.

Pensando ter demonstrado a relação entre Natureza e inconsciente, no sentido romântico, na psicologia analítica, gostaria de terminar citando Vernant, que resumiu tão magnificamente o que abordamos até agora:

A alma humana é um pedaço da natureza, talhado no estofo dos elementos. O divino é o fundo da natureza, o tecido inesgotável, a tapeçaria sempre em movimento onde, sem fim, se desenham e apagam-se as formas (VERNANT, 1973, p. 300, n. 20).

 

Referências bibliográficas

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Recebido em: 1/8/2017
Revisão: 13/11/2017

 

 

* Psicóloga, psicoterapeuta. Especialização em Psicoterapia de Orientação Junguiana pela Pontifícia Universidade Católica - PUC. Ex-professora de psicologia analítica do Instituto Sedes Sapientiae. Mestre em Filosofia pela PUC, São Paulo. E-mail: <zgorresio@uol.com.br>
1 Aqui estão os pressupostos junguianos da análise do sonhos e dos mitos, como linguagem da própria natureza.

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