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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.36 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

 

Música: uma possível ampliação de recursos no setting analítico

 

Music: a possible expansion of resources in the analytical setting

 

Música: una posible ampliación de recursos en el setting analítico

 

 

Julio César Nunes Ito*

 

 


RESUMO

Num movimento de resgate do valor terapêutico da música, este artigo procura ampliar as possibilidades de recursos a serem trabalhados no setting clínico junguiano. Através de uma revisão de literatura da psicologia analítica, percebeu-se uma carência de material relacionado à música como um recurso terapêutico. A partir deste ponto, são apresentadas algumas reflexões de como a música e o inconsciente podem se relacionar pela perspectiva da psicologia analítica. A experiência pessoal de C. G. Jung com a música, as relações entre música e imaginação ativa, música e neurociências, assim como algumas implicações da utilização desta arte no setting analítico são discutidas neste trabalho. Inserindo a música na clínica junguiana, ela apresentou-se propícia a: estimular a função transcendente, favorecendo a evocação de imagens da psique; rebaixar as defesas egoicas; complementar o trabalho como uma linguagem não verbal e a induzir ao relaxamento, auxiliando a passagem para um estado alterado de consciência, enriquecendo assim o trabalho terapêutico com material simbólico-musical.

Palavras-chave: Música, psicologia analítica, inconsciente, imagem, Jung.


ABSTRACT

In a movement to recover the therapeutic value of music, this article seeks to expand the possibilities of resources to be worked in the jungian clinical setting. Through a literature review of analytical psychology, it was perceived a lack of material related to music as a therapeutic resource. From this point on, some reflections are presented on how music and the unconscious can be related from the perspective of analytical psychology. C. G. Jung's personal experience with music, the relationships between music and active imagination, music and neurosciences, as well as some implications of the use of this art in the analytical setting are discussed in this paper. Inserting the music in the jungian clinic, it was propitious to: stimulate the transcendent function, favoring the evocation of images of the psyche; to lower egoic defenses; to complement the work as a non-verbal language and to induce relaxation, aiding the transition to an altered state of consciousness, thus enriching the therapeutic work with symbolic-musical material.

Keywords: music, analytical psychology, uncounscious, imagem, Jung.


RESUMEN

En un movimiento de rescate del valor terapéutico de la música, este artículo busca ampliar las posibilidades de recursos a ser trabajados en el setting clínico junguiano. A través de una revisión de literatura de la psicología analítica, se percibió una carencia de material relacionado a la música como un recurso terapéutico. A partir de este punto, se presentan algunas reflexiones de cómo la música y el inconsciente pueden relacionarse por la perspectiva de la psicología analítica. La experiencia personal de C. G. Jung con la música, las relaciones entre música e imaginación activa, música y neurociencias, así como algunas implicaciones de la utilización de este arte en el setting analítico se discuten en este trabajo. Insertando la música en la clínica junguiana, la misma se presentó propicia a: estimular la función trascendente, favoreciendo la evocación de imágenes de la psique; rebajar las defensas egoístas; complementando el trabajo como un lenguaje no verbal y a inducir al relajamiento, ayudando al paso a un estado alterado de conciencia, enriqueciendo así el trabajo terapéutico con material simbólico-musical.

Palabras clave: música, psicología analítica, inconsciente, imagem, Jung.


 

 

1. Introdução

A palavra música em sua etimologia faz menção à arte das musas gregas. Musas que se movem e comovem a humanidade desde a antiguidade. Na mitologia grega, Orfeu era filho da musa Calíope, a mais importante entre as musas. Sua habilidade e excelência musicais faziam com que os animais selvagens o seguissem e também conseguiam abrandar a ira de homens revoltados (BRANDÃO, 1997). Através de sua música, "a roda de Ixíon deixa de girar, a pedra de Sísifo equilibra-se por si própria imobilizando-se, Tântalo esquece a fome e a sede, as Danaides já não tentam encher de água o tonel perfurado" (GRIMAL, 2014, p. 341). Dessa forma, nota-se o poderoso papel da música na mitologia grega, possibilitando a alteração do destino - até então imutável - dos seus mitos.

Sendo uma parte inseparável da vida, os sons já estão presentes desde a concepção do ser humano: pulsações, coração batendo, ritmos nos fluídos corpóreos em movimento, pulmões respirando sincronicamente, a voz da mãe e do ambiente reverberando no espaço intra e extracorpóreo.

"A música conecta corpo e alma, e indo além, ela liga o ctônico com o espiritual" (ASHTON, 2010, p. 10, tradução nossa).

Na literatura junguiana brasileira, encontram-se alguns artigos e textos abordando letras de canções com suas respectivas análises, porém, há dificuldade em encontrar informações sobre a utilização desta arte como um recurso terapêutico no setting junguiano.

Este artigo visa resgatar o valor terapêutico da música e sua utilização na clínica junguiana, ampliando assim a gama de possíveis recursos a serem utilizados. Seja em atendimentos individuais, em grupo ou alguma derivação destes, o elemento musical que, para algumas culturas foi a primeira forma de comunicação, sempre esteve à disposição dos terapeutas.

Empiricamente, é possível observar e sentir a facilidade que a música tem de mobilizar a psique, intensificando a sensibilidade. Quando se ouve uma música, pode-se perceber o despertar de uma pluralidade de emoções que reverberam e estimulam uma variada gama de sensações e percepções. É como se ela fosse uma linguagem emocional - cujo conteúdo é composto por melodia, timbre, ritmo, harmonia, tempo etc. - capaz de alcançar áreas da psique onde outros estímulos apresentam maior dificuldade para tal ou mesmo não conseguem produzir efeito similar (VON BARANOW, 1999).

Ou seja, a música possui uma propriedade que transcende o intelecto e favorece o contato com o desconhecido, como Freud em O Moisés de Michelangelo ressaltara na sua experiência com o fenômeno musical:

Não obstante, as obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las, à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito. Onde não consigo fazer isto, como, por exemplo, com a música, sou quase incapaz de obter qualquer prazer. Uma inclinação mental em mim, racionalista, ou talvez analítica, revolta-se contra o fato de comover-me com uma coisa sem saber porque sou assim afetado e o que é que me afeta (FREUD, 1995, p. 213).

Em Re-vendo a psicologia, Hillman (2010) observa a similaridade entre alma e música: por meio de temas recorrentes e em múltiplas roupagens, ambas falam incessantemente de si mesmas.

Nas seções abaixo serão apresentadas algumas relações da música com a psicologia analítica de Carl Gustav Jung: um breve histórico do relacionamento de Jung com a experiência musical; (neuro)imaginação musical; o caráter simbólico da música; e algumas implicações da utilização da música como recurso terapêutico no setting analítico.

 

2. Jung e a experiência musical

No final de sua vida, Jung (2002) escreveu:

É certo que a música, bem como o drama tem a ver com o inconsciente coletivo; [...] De certa forma, a música expressa o movimento dos sentimentos (ou valores emocionais) que acompanham os processos inconscientes. O que acontece no inconsciente coletivo é por sua natureza arquetípico e os arquétipos têm sempre uma qualidade numinosa que se manifesta na acentuação do emocional. A música expressa em sons o que as fantasias e visões exprimem em imagens visuais (p. 150).

E foi em 1956 que ocorreu o encontro entre Jung e a pianista e musicoterapeuta Margaret Tilly. O psiquiatra suíço havia convidado Tilly depois de ter recebido suas correspondências relatando seus estudos sobre a utilização da música e seus efeitos terapêuticos. Jung disse a ela que sempre achou a musicoterapia sentimental e superficial, porém, que seus casos eram totalmente diferentes do que ele imaginava (TILLY, 1977). Neste encontro, Jung solicitou à Tilly que o tratasse exatamente como se ele fosse um de seus pacientes e, após um tempo, disse:

Isto abre novos caminhos de pesquisas que eu nunca sonhei. Por causa do que você me mostrou nesta manhã - não só o que você disse, mas o que eu senti e experienciei - sinto que, a partir de agora, a música deva ser parte essencial de toda a análise. Isto alcança o profundo material arquetípico que nós só podemos às vezes alcançar em nosso trabalho analítico com pacientes. Isto é muito notável (TILLY, 1977, p. 275, tradução nossa).

O encontro relatado parece ter sido significativo para Jung. O fundador da psicologia analítica demonstrou surpresa e entusiasmo ao vivenciar a terapêutica através da música. Percebeu que a forma como foi tratado por Tilly permitiu o contato com conteúdos profundos da psique, abrindo assim novas possibilidades na psicoterapia junguiana que até então não haviam sido vislumbradas.

Dessa forma, inaugurou-se um grande marco para a música dentro da psicologia analítica através da importância que Jung conferiu à esta arte após sua experiência pessoal, chegando a imaginar a sua inclusão no processo analítico. Mobilizando a imaginação num cenário onde realmente a música seja um elemento indispensável na análise, é possível que futuramente os institutos junguianos venham a oferecer algum tipo de treinamento necessário para utilizar esse recurso no setting terapêutico, assim como a arteterapia e outros recursos expressivos conquistaram seu espaço no campo da psicologia analítica.

Emma Jung (2006) também teceu algumas observações sobre a música, relacionando-a com o espírito:

A música, portanto, pode ser entendida como uma objetivação do espírito, que nem expressa conhecimento no sentido usual, lógico-intelectual, nem se realiza materialmente, mas significa uma representação manifesta dos contextos mais profundos e da mais inabalável regularidade. Neste sentido, a música é espírito, e espírito que leva a lugares escuros e remotos, não mais acessíveis à consciência, e cujos conteúdos praticamente não podem mais ser concebidos com palavras - mas sim através de números, por estranho que pareça - e também ao mesmo tempo e sobretudo através de sentimento e sensibilidade. Este fato aparentemente paradoxal mostra que a música tem condições de permitir o acesso a profundezas onde o espírito e a natureza são ainda ou novamente um [...] (p. 48-49, grifo do autor).

O espírito, como um guia que pode ser representado pela música, possibilita o acesso aos conteúdos latentes da psique, ampliando o material a ser elaborado. Estes conteúdos parecem dispensar o uso de palavras e de conhecimento intelectual - apontando para o campo do indizível - e, antagonicamente, configuram-se com números e sensibilidade -, ideia que remete à totalidade, na qual um não exclui o outro.

 

3. (Neuro)Imaginação musical

De uma maneira geral, a música tende a evocar sentimentos e intensificar atividade no hemisfério direito do cérebro que é responsável pela criatividade, reconhecimento de padrões e sentimentos (ASHTON, 2010).

Aleixo, Santos e Dourado (2017) realizaram uma revisão sistemática sobre a eficácia da musicoterapia nos sintomas neuropsiquiátricos (como ilusões, alucinações, agitação, disforia, ansiedade, apatia, irritabilidade, euforia, desinibição, comportamento motor aberrante, distúrbios de sono, apetite e anormalidades alimentares) de pessoas com quadro de demência, em que foram selecionados 12 de 257 artigos. A musicoterapia de relaxamento receptiva foi avaliada como um método que provavelmente obtém melhores resultados nos sintomas neuropsiquiátricos quando comparada à musicoterapia ativa. Embora tenha havido uma heterogeneidade de intervenções, desenho metodológico e instrumentos de avaliação, os estudos indicaram que a musicoterapia individual ou grupal apresentou ser eficaz na diminuição da depressão, agitação e ansiedade.

Tratando-se de casos severos de demência, em 2013, foi realizada uma pesquisa com 39 idosos diagnosticados com Alzheimer de grau severo que foram distribuídos de forma randomizada e cega entre três grupos, nos quais foram comparados os efeitos de diferentes intervenções musicais individualizadas: dois grupos com intervenção musical - a passiva, em que os pacientes apenas ouviam músicas selecionadas através de entrevistas prévias e a interativa, em que, além de ouvirem as músicas selecionadas, participavam de atividades interativas, como bater palmas, cantar e dançar, acompanhados de um facilitador musical - mais um grupo controle. A curto prazo, o grupo que recebeu intervenção musical - independentemente se foi passiva ou interativa - obteve uma redução no nível de stress e aumento de relaxamento; além disso, a intervenção interativa gerou uma melhora na condição emocional. A longo prazo, a intervenção musical passiva reduziu o nível de stress, induziu ao riso e evocou emoções positivas; já a intervenção musical interativa gerou uma maior redução dos sintomas comportamentais e psicológicos da demência quando comparada à intervenção musical passiva e ao grupo controle (SAKAMOTO; ANDO; TSUTOU, 2013).

Em Musicophilia: tales of the music and the brain (Musicofilia: contos da música e do cérebro), o neurologista Oliver Sacks (2007) relaciona a música aos estudos da neurologia. São citados os achados de estudos realizados em meados da década de 1990, através de técnicas de neuroimagem, por Robert Zatorre e seus colegas, nos quais foi verificado que o ato de imaginar música - além de estimular o córtex motor - é capaz de ativar o córtex auditivo com aproximada intensidade da ativação que ocorre quando se ouve música. Além disso, descobriram que imaginar o ato de tocar música também estimula esse mesmo córtex. Neste sentido, a imaginação de um ato pode ativar e estimular as mesmas áreas que a própria ação oferece. A imagem mental, que antigamente se referia quase que exclusivamente ao campo visual, também pode ser inscrita na dimensão musical.

Num outro estudo realizado por Kraemer et al. (2005) foram utilizadas músicas familiares e desconhecidas. Confirmou-se através de imagens de ressonância magnética que, enquanto os participantes ouviam uma música familiar, havia um preenchimento automático por imagens mentais musicais involuntárias quando uma lacuna de silêncio - de dois a cinco segundos - substituía uma parte sonora da música. Era como se, mesmo com a lacuna de silêncio inserida no meio da música, os participantes ouvissem a música sem interrupções.

Na obra A Natureza da Psique, Jung (2011a) observa como um estímulo acústico é capaz de evocar imagens da psique, explicando que, quando se ouve um som indefinido, esse estímulo sonoro ativa e provoca uma série de representações que se desdobram em imagens acústicas, visuais e sensoriais. Neste sentido, para Jung (2011a) a psique é composta por imagens. Considerando que "imagem é alma" (JUNG, 2011b, § 75) e que a dimensão da ótica é insuficiente para sustentar toda a complexidade que abarca uma imagem psíquica (BARCELLOS, 2012), a musicalidade pode se tornar uma imagem por si só (imagem acústica-sonora-musical), complementar à ideia que se faz de imagem ou ainda evocar outras dimensões dela, como a visual ou sensorial. Além disso, a imagem está além dos processos perceptivos:

A imagem interna é uma grandeza complexa que se compõe dos mais diversos materiais e da mais diversa procedência. Não é um conglomerado, mas um produto homogêneo, com sentido próprio e autônomo. A imagem é uma expressão concentrada da situação psíquica como um todo e não simplesmente ou sobretudo dos conteúdos inconscientes. É certamente expressão de conteúdos inconscientes, não de todos os conteúdos em geral, mas apenas dos momentaneamente constelados. Essa constelação é o resultado da atividade espontânea do inconsciente, por um lado, que sempre estimula a atividade dos materiais subliminares relevantes e inibe os irrelevantes. A imagem é, portanto, expressão da situação momentânea, tanto inconsciente quanto consciente. Não se pode, pois, interpretar seu sentido só a partir da consciência ou só do inconsciente, mas apenas a partir de sua relação recíproca (JUNG, 1991, § 829, grifo do autor).

Em 2004, Leão e Silva publicaram um estudo realizado com uma amostra de 90 mulheres, cuja idade média foi de 45,5 anos, com diagnósticos de fibromialgia e lesão por esforço repetitivo/doenças osteoarticulares (LER/DORT), e observaram que, além da redução estatisticamente significativa da intensidade da dor, imagens foram produzidas durante a audição musical. Neste estudo, foram utilizadas três músicas: o Bolero de Ravel, o Prelúdio Lohengrin de Wagner e um Mix (não estruturado, desordenado propositalmente), em que se verificou que as músicas estruturadas apresentaram maior potencial de evocação de imagens mentais que o Mix não estruturado e que a evocação destas ocorreu independentemente de preferências musicais, reforçando assim a propriedade evocativa de imagens que a música possui.

Espontânea e repentinamente, como uma experiência universal, um fragmento de música pode vir a emergir. Sacks (2007) questiona este fenômeno - considerando os casos em que a música em questão não tenha sido ouvida recente ou repetidamente - perguntando-se se há alguma razão para que determinada música tenha se apresentado subitamente e também se algo fez com ela surgisse.

Pela perspectiva da psicologia analítica, uma das possíveis respostas para os questionamentos de Sacks poderia ser: "O inconsciente encaminhou esta música". É interessante perceber que este fenômeno também se estabelece na prática clínica, nos discursos dos pacientes: "Estou com essa música na cabeça..."; "Sonhei que, no ambiente em que eu me encontrava, estava tocando tal música". Este tipo de comentário pode ser a oportunidade para se investir na dimensão simbólico-musical da psique, sendo possível a formulação de alguns questionamentos como: "Para que esta música veio agora?"; "Qual a mensagem que o inconsciente deste paciente está tentando comunicar à consciência trazendo esta música?"; "Que símbolo é este que espontaneamente emergiu de sua psique?"; "Qual é o significado desta música para esta pessoa?".

 

4. O caráter simbólico da música

A partir da consideração de que o ato de fazer música é arquetípico - na qual ela se torna um instrumento de expressão, assim como a linguagem - pode-se conceber que as obras e produções musicais são passíveis de serem apreendidas como manifestações simbólicas dos mais variados arquétipos. Logo, toda produção musical é passível de ser considerada um símbolo. Nesta perspectiva, a música é capaz de constelar temas arquetípicos quando da sua criação/execução, visto que ela propicia a manifestação correlata deles: músicas sobre amor, felicidade, família, amizade, saudade, existencialismo, sagrado, morte etc.:

O processo criativo consiste (até onde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada. De certo modo a formação da imagem primordial é uma transcrição para a linguagem do presente pelo artista, dando novamente a cada um a possibilidade de encontrar o acesso às fontes mais profundas da vida que, de outro modo, lhe seria negado (JUNG, 2011c, § 130).

Como toda obra de arte, a produção musical possui uma natureza polissêmica e multifacetada, ou seja, possibilita a manifestação de múltiplos significados para quem a ouve. Considerando que a polissemia também é a característica fundamental de um símbolo, reforça-se o caráter simbólico da música. Para Jung (1991), o símbolo é a melhor expressão possível de algo parcialmente desconhecido, envolvendo aspectos conscientes e inconscientes.

No processo criativo de uma obra de arte, é a qualidade de síntese que possibilita o surgimento de um símbolo no qual o pessoal e o transpessoal se fusionam (BARCELLOS, 2004).

Assim como a escrita, a pintura e a dança, a música também se torna elegível a ser um possível canal de comunicação simbólico que visa ampliar o espaço para a elaboração das questões que se apresentam. No setting analítico, é importante que o paciente encontre este canal de comunicação simbólico a fim de favorecer a expressão da sua condição emocional (MATTA, 2007).

A necessidade de se investigar outros métodos de exploração do inconsciente já fora apontada por Jung (2011a, § 166): "Quando não há produção de fantasias, precisamos apelar para a ajuda artificial". Diante deste chamado, a música é resgatada como uma possível resposta.

 

5. Algumas implicações musicais no setting junguiano

Quando se pensa sobre as possíveis utilizações da música como recurso terapêutico, é comum imaginar o par de opostos tocar - escutar. Caminhando em direção ao tocar uma música, pode-se pensar na composição ou na improvisação dela pelo paciente ou terapeuta - levando em consideração que este recurso exigiria uma formação extra do terapeuta, seja ela formal ou não, o que de fato enriqueceria o trabalho. Por outro lado, é vital reconhecer que a vertente do escutar também possui um rico potencial para propiciar um campo frutífero no trabalho com o material da psique.

Como um exemplo sobre as diversas formas do trabalho com a música, Ashton (2010) explica que, quando comparados, alguns caminhos adotados por terapeutas podem ser até contraditórios: enquanto um espera que a escolha musical emerja espontaneamente da psique do paciente, outro se utiliza de seu conhecimento intuitivo musical para realizar a escolha da música que acredita ser útil em uma determinada situação.

Em 1997, a analista junguiana Patricia Skar realizou um estudo no qual verificou na musicoterapia que o método Guided Affective Imagery with Music (GIM), desenvolvido por Helen Bonny - técnica que evoca imagens, sentimentos profundos e símbolos através da escuta de música num estado de relaxamento profundo -, é muito próximo à ideia de imaginação ativa de Jung. Skar (1997) acredita que um "potencial modelo de escuta de música terapêutica no setting junguiano poderia ser chamado de 'imaginação ativa através da música'" (p. 397, tradução nossa).

A imaginação ativa é um método que encoraja o indivíduo ao contato com as imagens de fantasias, permitindo assim estabelecer um diálogo com o inconsciente e a vivência com seus símbolos (JUNG, 2011d).

Segundo Jacobi (1986), a capacidade da psique de formar símbolos, chamada função transcendente, é uma função complexa, operada pela psique por meio do mecanismo de autorregulação, que une os pares de opostos numa síntese e cria uma comunicação entre consciente e inconsciente. Observou-se que a música favorece a ativação da função transcendente ao mobilizar os conteúdos mais profundos da psique e trazê-los à consciência através da exploração do material psíquico levantado, oferecendo um terreno propício para a elaboração simbólica (SKAR, 1997; BUSH, 1999; KROEKER, 2013).

Em relação à tipologia junguiana, Hillman (1990) acredita ser importante desmistificar o clichê de que músicos, no geral, são do tipo sentimento. Talvez essa tendência a enfatizar a função sentimento na tipologia dos músicos provenha de uma crença que associa o intelectual (pensamento) ao verbal. A música instrumental não é verbal, porém, isso não significa que ela seja desprovida de atributos da função pensamento. A grande maioria das músicas são pautadas por regras métricas, por tempo, ritmo, escala etc. Neste sentido, qual seria a função que rege toda esta organização? Há um respeito a esses elementos quando da composição ou mesmo execução de uma música. No âmbito da execução musical, pode-se fazê-la de uma maneira mais improvisada, no "feeling" - como habitualmente é encontrada no blues e no jazz; planejada com atenção minuciosa às partituras e com rigor de vestimenta e postura adequadas - como numa orquestra sinfônica; e por que não com uma fusão de ambos, como se entre esses dois polos houvesse um dégradé de possibilidades de composição, de execução e de performance musical, apenas para citar alguns exemplos. Examinando cuidadosamente este tema, pode-se afirmar que a música mobiliza as quatros funções psíquicas, pois em última análise, é uma forma de arte e esta pode se manifestar por meio de qualquer que seja a função, não havendo uma função de uso preferencial pela música.

Mario Jacoby (2010), analista junguiano e violinista profissional, corrobora a afirmação acima, destacando que, na música, as quatro funções psíquicas são utilizadas e necessárias nos mais diversos graus. É importante que a música, como uma ferramenta terapêutica, seja considerada como possibilidade para o trabalho com todos os tipos psicológicos, uma vez que as quatro funções entram em movimento quando da sua utilização.

Para Bush (1999), a música tem o potencial de servir como uma tela de projeção caso o indivíduo esteja receptivo a ela, permitindo que ela adentre o seu interior e reverbere uma série de respostas e imagens espontâneas.

Outro ponto em que a música pode desempenhar um papel importante no processo de análise são as defesas. As palavras empregadas podem ser utilizadas como defesa contra o acesso aos problemas-chave dentro de um processo psicoterapêutico. Avaliando esse possível obstáculo, uma das vantagens da utilização da música é que, como uma forma de expressão não verbal, ela tende a transpassar com maior facilidade os bloqueios ao mundo interior das emoções e sentimentos (KROEKER, 2013). Sendo assim, a música - assim como outras formas de arte - possibilita o rebaixamento das defesas egoicas, tornando possível o trabalho com um material mais espontâneo da psique.

Como alternativa ou combinação possível, pode-se também utilizar a música como um indutor para um estado de relaxamento, visando assim atingir um estado alterado de consciência ou mesmo reproduzi-la após feita a indução, a fim de facilitar o fluxo imagético. Em um estado alterado de consciência, o material inconsciente mais relevante e emocionalmente carregado para o indivíduo é selecionado automaticamente, como se um radar interno buscasse tais conteúdos (GROF; BENNETT, 1992). Nesta dinâmica, os conteúdos mais significativos para o indivíduo são convidados a entrar no campo da consciência, favorecendo o trabalho terapêutico.

 

6. Considerações finais

Embora tenham sido realizadas algumas reflexões a respeito da relação entre música e psicologia analítica, é fato que ainda há muito que se investigar e explorar sobre este tema e seus resultados no ambiente psicoterapêutico. O desafio está no aprofundamento desta relação que ainda apresenta pouco material. Faz-se necessário enfatizar que a dimensão sonora se inscreve durante toda a vida do ser humano que, portanto, pode ser compreendida e significada por um viés simbólico-musical.

Torna-se evidente que há múltiplas possibilidades para a utilização da música no setting analítico, no qual, da díade tocar-escutar, ocorrem outros desdobramentos, como a composição, o improviso, o processo de escuta ativa ou receptiva, a possível discussão simbólica, entre outros. Conforme observado, a música é dotada de diversos potenciais: desde a facilitação para a indução de um estado de relaxamento até a evocação de imagens numa jornada interior para o trabalho com material inconsciente por meio de uma possível imaginação ativa através da música.

Como poética do indizível, a música pode ser símbolo e também facilitadora de um processo de formação deste. Como a água, ela pode penetrar entre as defesas egoicas e as dissolver, favorecendo a evocação de imagens latentes da psique. A música se apresenta viável para o trabalho com todos os tipos psicológicos e, é possível que, através de futuras pesquisas, seja verificada a antiga ideia de que cada tipo de música possuiria uma tendência a evocar uma propriedade específica para cada caso, como impulsionar a função inferior de um determinado tipo, amenizar a ansiedade, propiciar expressão emocional, favorecer o contato com a sombra etc. Ainda, ela se faz disponível como uma linguagem complementar: uma oportunidade para transcender as limitações verbais. Seja utilizando um instrumento musical como ferramenta de expressão ou mesmo elaborando uma música já existente que o paciente atribua como significativa para a situação em que se encontra.

A música demonstra o potencial de um universo paralelo a ser examinado cautelosamente na dimensão da alma humana. Portanto, espera-se que as ideias aqui apresentadas sejam apenas sementes para que mais estudos acerca desta arte sejam realizados no campo junguiano. Psicoterapia, em seu sentido mais amplo, visa a mudança; musicalmente falando, em toda a mudança, inicia-se uma nova música que, por conseguinte, requer uma nova dança.

 

Referências

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Recebido em: 30\01\2018
Revisão: 27/04/2018

 

 

* Psicólogo, psicoterapeuta de orientação junguiana. Graduado em Psicologia pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU). E-mail: julioitou@gmail.com

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