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Junguiana

Print version ISSN 0103-0825

Junguiana vol.36 no.1 São Paulo Jan./June 2018

 

A relação professor-aluno o arquétipo puer-senex

 

The teacher-student relationship: the puer-senex archetype

 

La relación profesor-alumno: el arquétipo puer-senex

 

 

Vivian de Freitas Bandeira*; Ivelise Fortim**

 

 


RESUMO

Este artigo objetivou realizar uma revisão de literatura junguiana sobre a relação professor-aluno e as suas interfaces com o arquétipo puer-senex. O estudo se faz relevante na medida em que a qualidade da relação professor-aluno interfere no processo de ensino-aprendizagem. Percebe-se uma modificação na figura do professor como central, assim como na do aluno, para a ênfase na relação que ocorre entre ambos no processo educacional. Observou-se que, quando ocorre uma polarização do arquétipo em que o senex está associado ao mestre-instruído e o puer ao aprendiz-ignorante, existe uma cisão do arquétipo implicando em um professor que cessou o aprender e está livre de imperfeições e um aluno que depende totalmente do mestre para obter conhecimento. Por fim, sugere-se um aumento no número de estudos neste campo, tendo em vista que as pesquisas que estabelecem uma interlocução entre a psicologia analítica e a educação são escassas, e quando existentes, são pouco sistematizadas e consistentes.

Palavras-chave: Relação, professor-aluno, Mestre-aprendiz, Puer-senex, Educação.


ABSTRACT

This article aimed to perform a review of Jungian literature on the teacher-student relationship and its interfaces with the puer-senex archetype. The study becomes relevant as the quality of the teacher-student relationship interferes in the teaching-learning process. We noticed a change in the figure of the teacher as central, as well as in that of the student, towards greater emphasis of the relationship that occurs between them in the educational process. We observed that when a polarization of the archetype occurs, in which the senex is associated with the learned teacher and the puer is associated with the apprentice-ignorant, there is a split of the archetype implying in a teacher who has ceased learning and is free from imperfections, and a student who depends entirely on the master to gain knowledge. Finally, we suggest an increase in the number of studies in this field, since research that establishes an interlocution between analytical psychology and education is scarce, and when it exists, it is poorly systematized and consistent.

Keywords: Professor-student relationship, Professor-apprentice, Puer-senex, Education.


RESUMEN

Este artículo objetivó realizar una revisión de literatura Junguiana sobre la relación profesor-alumno y sus interfaces con el arquetipo puer-senex. El estudio se hace relevante a medida que la calidad de la relación profesor-alumno interfiere en el proceso de enseñanza-aprendizaje. Se percibe una modificación en la figura del profesor como central, así como en la del alumno, para el énfasis de la relación que ocurre entre ambos en el proceso educativo. Se observó que cuando ocurre una polarización del arquetipo, en que el senex está asociado al maestro-instruido y el puer al aprendiz-ignorante, existe una escisión del arquetipo implicando en un profesor que cesó el aprender y está libre de imperfecciones y un alumno, que depende totalmente del maestro para obtener conocimiento. Por último, se sugiere un aumento en el número de estudios en este campo, teniendo en cuenta que las investigaciones que establecen una interlocución entre la psicología analítica y la educación son escasas, y cuando existen, son poco sistematizadas y consistentes.

Palabras clave: Relación profesor-alumno, Maestro-aprendiz, Puer-senex, Educación.


 

 

1. Introdução

A relação professor-aluno foi historicamente marcada pela ocupação, por parte do professor, da posição de saber total, enquanto o aluno atuava como seu dependente, no lugar de não saber total. Os modelos de educação mais modernos, entretanto, procuram modificar esse formato tradicional de educação em que professor transfere conhecimento, para um modelo dialético de educação, em que o professor desempenharia um papel de facilitador do processo de aprendizagem do aluno, estimulando sua ânsia pelo conhecimento. O objetivo deste artigo é realizar uma revisão de literatura junguiana sobre a relação professor-aluno e suas interfaces com o arquétipo puer-senex.

O estudo se faz relevante na medida em que a qualidade da relação professor-aluno interfere no processo de ensino-aprendizagem. Como aponta Byington (1996), este processo não se centraliza nem no professor, nem no aluno, mas na sua relação, que é primordial e absoluta no processo educacional. Sendo assim, a forma como esta relação se estabelece influencia significativamente tanto a experiência do aluno, quanto do professor.

Muito embora o estudo acerca da relação professor-aluno se mostre pertinente, referências sistematizadas são escassas, especialmente na perspectiva junguiana. Jung escreveu pouco sobre o tema, sendo "O Desenvolvimento da Personalidade" (1981) e "Tipos Psicológico" (2013a) os livros em que mais tratou do assunto.

No primeiro livro, o autor discute a educação em sua relação com o psiquismo infantil, como uma forma de auxiliar a criança no processo de formação da consciência. O professor é visto como substituto dos pais e a escola seria o primeiro ambiente fora do contexto familiar. Ademais, Jung (1981) examina a importância de o professor investir primeiramente na educação de sua própria personalidade, a qual irá refletir na educação psíquica da personalidade do aluno.

Em "Tipos Psicológicos", Jung (2013a) traça um paralelo entre as atitudes extrovertida e introvertida, com os tipos clássico e romântico de Ostwald, respectivamente.

Na teoria junguiana clássica, a tipologia consiste em duas atitudes básicas e quatro funções da consciência. As atitudes estão relacionadas a como o sujeito observa e concebe os fatos. O indivíduo com atitude introvertida se volta para o sujeito; enquanto que o indivíduo com atitude extrovertida se volta para o objeto externo. Em relação às quatro funções da consciência, temos: sensação, intuição, pensamento e sentimento (JUNG, 2013a).

Para Ostwald, a atitude extrovertida-clássica pode favorecer o exercício da docência, quando comparada à atitude introvertida-romântica. Embora Jung (2013a) ressalte as importantes contribuições de Ostwald à psicologia dos tipos, entende que o professor introvertido-clássico é compreendido de uma maneira reducionista. Como aponta Byington (1996), a atitude introvertida e as funções sentimento e intuição foram preteridas com a hegemonia da pedagogia racional, a qual privilegiou a atitude extrovertida e as funções pensamento e sensação.

Podemos considerar que não há um tipo psicológico ideal para a prática do ensino, mas sim a necessidade de um conhecimento, por parte do professor, da tipologia do aluno e de sua própria tipologia (LESSA, 2003; ANDRADE, 2011; ANJOS, 2013). Nesse sentido, Byington (1996) atribui ao professor a responsabilidade de desenvolver sua própria criatividade para apresentar aos seus alunos o conteúdo da melhor forma, sem priorizar o racional em detrimento do vivencial.

Certamente seria de desejar que os professores tivessem conhecimento desses métodos; mas esse conhecimento seria desejável não no sentido de ser aplicado na educação das crianças, mas no de ser aproveitado para a própria educação do professor. A educação do próprio professor, porém, reverterá indiretamente em benefício das crianças (JUNG, 1981, p. 61).

Em estudos mais atuais sobre o tema, o pós-junguiano Guggenbühl-Craig (2008) entende que o professor-mestre necessita que o aluno-aprendiz seja constelado, ou seja, ativado, dentro de si. Isto porque, segundo Jung (2014), a velhice e a juventude estão contidas uma na outra.

Para Araújo (2013), quando o professor-mestre não constela seu aluno-aprendiz dentro de si, ele não aprende com suas próprias restrições, o que gera um mestre que deixou de se renovar. Ele permanecerá estagnado, dogmático, rígido e inalcançável, em uma posição que impossibilita o intercâmbio de novos saberes.

Isto o afasta do potencial de aprendizado que pode adquirir com o aluno, que também possui saberes que lhe são próprios. É somente a partir desta dialética que, segundo Araújo (2013), viabilizam-se a assimilação e a descoberta daquilo que é novo por parte do mestre e a possibilidade de o aprendiz iluminar as vias desconhecidas pelo mestre.

Aprender e ensinar são experiências arquetípicas, que podem se dar por meio das polaridades puer-senex, as quais contêm dinamismos antagônicos associados à figura do jovem e velho, respectivamente; embora não devam estar relacionados às idades literais (MONTEIRO, 2008a). Isto porque velho e jovem podem apresentar-se um na forma do outro, já que, enquanto no plano da consciência um é constelado, seu par de oposto é ativado no plano inconsciente (JUNG, 2014).

O arquétipo puer-senex, por ter caráter dual em que puer está associado ao aprendiz e senex ao mestre, possui um movimento de opostos. Suas polaridades ordenam a vida, já que cada posição contém em si o gérmen de seu oposto, em uma tese e antítese hegeliana, que busca síntese (YOUNG-EISENDRATH; DAWSON, 2002).

Guggenbühl-Craig (2008) afirma que em alguns regimes educacionais, especialmente aqueles em que há uma polarização do arquétipo - mestre-instruído e aprendiz-ignorante -, existe uma cisão do arquétipo, ou seja, há uma fragmentação entre puer e senex, implicando em um professor que parou de aprender e está livre de imperfeições e um aluno que depende totalmente do mestre para obter conhecimento.

 

2. A relação professor-aluno: uma perspectiva junguiana

Tendo em vista o paradigma junguiano de que toda relação humana é marcada por elementos conscientes e inconscientes, e compreendendo a relação professor-aluno como uma forma particular de relacionamento humano, esta também é composta por aspectos inconscientes, muito embora a maioria dos estudos observe apenas o nível consciente de interações (ARAÚJO, 2013).

Saiani (2003), a partir do modelo da imagem alquímica proposta por Jung, em que este descreve o relacionamento do alquimista com sua soror, propõe uma adaptação do campo transferencial para a relação professor-aluno, a qual pode ser compreendida por meio do arquétipo mestre-aprendiz. O aluno-aprendiz está associado no plano da consciência à polaridade puer, enquanto que o professor-mestre está associado no plano da consciência à polaridade senex. Estas duas polaridades constituem o arquétipo puer-senex.

Ao analisarmos na Figura o campo transferencial, podemos verificar que a seta "a" diz respeito à condição fundante e primária para a relação pedagógica, ou seja, a presença de um professor e um aluno. Quando esta é inexistente, constatamos a ausência do aluno ou do professor (SAIANI, 2003).

 

 

Quando ocorre a relação indicada na seta "a" no nível da consciência, é constelado seu oposto complementar no nível inconsciente, ou seja, o professor tem no plano inconsciente o aluno constelado, seta "b", e o aluno tem no plano inconsciente seu professor constelado, seta "b'" (SAIANI, 2003).

Caso a relação assinalada nas setas "b" e "b'" não ocorra, o arquétipo do puer-senex é cindido. Para Guggenbühl-Craig (2008), o professor cindido de seu aluno interior considera-se detentor de todo e único saber, enquanto que o aluno dissociado do seu professor interior recusa-se a aprender, permanecendo imaturo e dependente.

É imprescindível que todas as relações no campo transferência indicadas ocorram, a fim de que haja integração de ambos os polos, desta forma, o professor terá abertura para aprender e o aluno terá possibilidade de demonstrar seus saberes e independência. Quando há um acentuado afastamento entre os polos puer e senex, a manifestação destes se dá com ênfase no aspecto negativo, pois ocorre uma cristalização das polaridades e a via de comunicação com o seu par de oposto está obstruída.

Traçando um paralelo entre os objetivos propostos pela psicoterapia e o vínculo transferencial estabelecido entre terapeuta e paciente, descrito por Jung (2013b) e Penna (2005), com a educação e a relação professor-aluno, podemos dizer que a educação visa a transformação da personalidade total, isto é, em seus aspectos conscientes e inconscientes, sendo a relação transferencial professor-aluno fator decisivo para que tal transformação ocorra.

Ao desenvolver a Pedagogia Simbólica, Byington (1996) aborda o vínculo transferencial da relação professor-aluno, o qual é evocado pelo Self pedagógico. O autor caracteriza sua pedagogia como sendo do Self, pois esta abrange a personalidade como um todo.

Além de estar alicerçada no desenvolvimento total da personalidade, esta pedagogia também se baseia no modelo vivencial de aprendizagem. Este compreende o saber iniciático, isto é, relativo aos rituais de iniciação, nos quais o sujeito apropria-se do conhecimento via experiência. Esta perspectiva contrapõe-se à pedagogia puramente racional.

Por meio da vivência e do vínculo transferencial amoroso da relação professor-aluno, ocorre uma transformação da consciência durante o processo de ensino-aprendizagem, em que puer-senex, novo-velho, aluno-professor, objetivo-subjetivo e consciente-inconsciente se articulam, resultando em novos estados de consciência (BYINGTON, 1996).

É importante destacar que existem dois tipos de transferência pedagógica que podem ser estabelecidas entre professor e aluno: a criativa e a defensiva. A transferência criativa incentiva o ensino e aprendizado, estando associada a sentimentos agradáveis e de bem-estar. Já a transferência defensiva desperta raiva, desprazer e brigas na relação professor-aluno, bloqueando ou limitando o processo de ensino-aprendizagem (GALIÁS, 1989).

Por se tratar de uma pedagogia do desenvolvimento total da personalidade, o professor, segundo Caviglia (2005) e Anjos (2013), tem grande influência no processo de individuação do sujeito, em consonância com Byington (1996), que compreende o processo educacional dentro da individuação do aluno e do professor. Entende-se por individuação o processo de desenvolvimento total da personalidade, em que o indivíduo se torna si-mesmo (JUNG, 1981). É um processo de desenvolvimento da personalidade coordenado pelo Self (Si-Mesmo) e que ocorre por meio do mecanismo de compensação. Este tem como meta que o indivíduo se torne uma pessoa integrada, única e indivisa (STEIN, 2000).

Por fim, podemos dizer que Freitas (1990) e Byington (1996) concebem o campo da ciência da educação como algo que não se restringe a transferir e adquirir conhecimento, mas que ultrapassa o ensino tradicional, pois objetiva a integração de conteúdos na personalidade e seu desenvolvimento arquetípico total, o que é viabilizado pela interação do arquétipo puer-senex. "Não consiste apenas em meter na cabeça das crianças certa quantidade de ensinamentos, mas também em influir sobre as crianças, em favor de sua personalidade total" (JUNG, 1981, p. 59).

 

3. O arquétipo puer-senex e sua relação com o mestre-aprendiz

A relação professor-aluno pode ser compreendida do ponto de vista da psicologia analítica como a relação mestre-aprendiz, em que o mestre estaria no plano da consciência associado ao arquétipo do senex e o aprendiz no plano da consciência associado ao puer.

Ambos constituem duas faces de um mesmo arquétipo, puer-senex. A fim de melhor compreender a constituição e característica de cada faceta do arquétipo, realizaremos uma leitura acerca do puer e senex. Para tanto, é importante ressaltar que este, como qualquer outro arquétipo, não pode ser expresso em si mesmo, mas apenas por suas representações (JUNG, 2014).

Como afirma Jung (2014), não podemos nos enganar acreditando que o arquétipo, a partir de sua manifestação, encerra-se em si mesmo. Na verdade, esta é apenas uma de suas múltiplas expressões. O arquétipo exprime estruturas da psique, as quais foram constantes ao longo de toda humanidade, havendo:

tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação (JUNG, 2014, p. 57, grifo do autor).

A polaridade senex é constituída principalmente pela imagem do velho sábio, mas pode ser representada pelo:

mago, médico, sacerdote, professor, catedrático, avô ou como qualquer outra pessoa que possuía autoridade [...] manifesta-se sempre em situações em que seriam necessárias intuição, compreensão, bom conselho, tomada de decisão e plano etc., que no entanto não podem ser produzidos pela própria pessoa (JUNG, 2014, p. 216).

O velho sábio é caracterizado por Jung (2014) em seu aspecto positivo, como sendo vetor de bom conselho e ajuda, e que, por meio de suas perguntas, promove a reflexão e autorreflexão em um momento de dificuldade, que pode vir como um pensamento personificado, que convoca o sujeito a meditar sobre a questão.

Jung (2014) descreve que este pode surgir quando o herói, ao empreender sua jornada, depara-se com uma encruzilhada, um nó górdio, que apenas um deus ex-machina pode solucionar. O velho sábio, que é simbolizado pelo espírito (Geist) e é identificado com o sol, pode ver através da nuvem escura que paira sob o herói e traz a resolução mágica inesperada, a qual clarifica a questão que não mais parece tão desesperadora. O velho sábio conhece o caminho, as dificuldades e os métodos para enfrentá-las e conta ao herói. Este arquétipo, na faceta positiva, remete ao: "saber, o conhecimento, a reflexão, a sabedoria, a inteligência e a intuição e, por outro, também qualidades morais como benevolência e solicitude, as quais tornam explícito seu caráter "espiritual"" (JUNG, 2014, p. 222).

Assim como o arquétipo possui um aspecto positivo, ele também apresenta uma expressão negativa. Sendo assim, "o velho, na realidade, também tem um aspecto mau, como um xamã primitivo que, por um lado, cura, e ainda, por outro, é o temível preparador de venenos" (JUNG, 2014, p. 228, grifo do autor).

Para Bernardi (2008), a faceta negativa do senex é ganância, tirania e petrificação. Hillman (1999) também o vinculou a imagem de Cronos-Saturno, aquele que devora seus filhos e, por se tratar do deus do tempo, torna-se estático, impossibilitando o vir a ser. Isto se deve ao fato de estar cindido com seu aspecto puer, o qual é encarregado de proporcionar a transformação das estruturas estabelecidas, ou seja, promover mudanças no status quo.

A relação dinâmica do senex com seu aspecto puer se faz muito importante, já que o primeiro, na expressão negativa, busca conservar o estado que se encontra, sendo avesso à mudança. Isto pode culminar em uma rigidez, que se mantém sempre resistente às transformações (BERNARDI, 2008).

Sobre o arquétipo do puer, Hillman (1999) afirma sua complexidade, já que este contém as figuras da criança divina; do herói juvenil; do trickster; do Hermes-Mercúrio e do psicopompo. Von Franz (2005) realiza uma extensa leitura sobre este arquétipo, em especial dos aspectos da juventude eterna - puer aeternus - associando-o também a um complexo materno do sujeito que se prende ao mundo infantil, utilizando como exemplo "O Pequeno Príncipe" do autor francês Antoine de Saint-Exupéry.

Em sua análise, Von Franz (2005) caracteriza o puer aeternus como impaciente, isto porque, ao não obter o que deseja rapidamente, cessa suas investidas, abandonando o empreendimento. Ele não chega a realizar algo que se concretize e finalize por sua impaciência, ademais, outros planos e ideias surgem em cena e tomam o lugar da ideia anterior.

Utilizando-se das figuras e ilustrações que aparecem na obra de Saint-Exupéry, Von Franz (2005) associa as duas primeiras imagens do livro - uma jiboia engolindo uma fera e uma jiboia digerindo um elefante - ao herói que tem dificuldade em lidar com suas tarefas. Isto porque, o herói, ao ser engolido pela cobra, monstro ou dragão, deve, com sua lança, perfurar a barriga do animal e se libertar.

Se isto não acontece e o herói fica preso ao ser engolido, a realização da tarefa que lhe foi destinada fica impossibilitada, mostrando uma postura de evitação aos problemas e às responsabilidades, e em determinado grau, demonstra uma dependência em relação a alguém que possa realizar os trabalhos em seu lugar (VON FRANZ, 2005).

Monteiro (2008b) realiza um levantamento das características do puer em seus aspectos positivos, que podem ser vivenciados na espontaneidade e criatividade, que impulsionam o indivíduo para uma busca constante de conhecimento. Esta jornada possibilita a emergência de novos questionamentos - o eterno "por quê" das crianças - já que puer está em movimento e não permanece em um único lugar à procura de saberes imutáveis. Logo, podemos dizer que "por um lado, ele é renovação da vida, por outro, é a sombra de infantilidade que todos nós carregamos" (BERNARDI, 2008, p. 31).

Sem a vivência dos opostos não há experiência da totalidade; logo, só podemos considerar ambos - puer e senex - em seus aspectos positivos quando são vivenciados de maneira articulada, por isso a denominação de um único arquétipo. Quando estas polaridades são experienciadas de maneira dicotômica, ocorre a unilateralidade, e os aspectos negativos do arquétipo se sobressaem (MONTEIRO, 2008b). "O puer inspira o brotar das coisas; o senex governa a colheita. Mas florescer e colher dão-se intermitentemente durante toda a vida" (HILLMAN, 1999, p. 24).

 

4. O processo educacional e suas interfaces com o arquétipo do puer-senex

Segundo a definição de Viggiano e Mattos (2009), podemos associar o processo educacional de ensino a duas práticas: autoritária ou dialógica. A prática dialógica é marcada por características que podem ser relacionadas ao aspecto positivo do senex - abertura, disponibilidade, ajuda, cooperação e caráter facilitador. Isto ocorre quando existe uma comunicação fluente entre os polos do arquétipo puer e senex, já que a vivência do aspecto positivo de cada polo ocorre quando não há unilateralidade.

A prática pedagógica, quando autoritária, é marcada pela transmissão de algo que é exclusivo do senex para o puer, de forma absoluta e opressora. Tais características podem ser associadas a um arquétipo que teve seus polos cindidos, desta forma, o senex estaria vivenciando seus aspectos negativos.

À luz da teoria junguiana, a exigência excessiva e o autoritarismo são marcas do senex negativo, o qual, conforme Bernardi (2008), apega-se à tradição e rotina, devorando o que se coloca como novo, em uma resistência à mudança e tendência ao conservadorismo.

A exigência, rigidez e inflexibilidade, como aponta Faria (2006), podem impedir o desenvolvimento do aluno. Ainda sim, o senex, como representante da ordem, limite e fronteira, quando em harmonia com seu aspecto puer, tem função reguladora que auxilia a propiciar um espaço continente, dando contorno e possibilitando o desenvolvimento do processo educacional.

Como é destacado por Aquino (1999), existe uma discriminação primária da posição do professor e do aluno; isto porque o professor configura-se como autoridade, o qual tem função continente e reguladora dos contornos da relação. Esta posição precisa ser constantemente validada pelo aluno, não devendo ocorrer exclusivamente devido à historicidade do professor como autoridade.

Podemos dizer que a assimetria de poder permeia a relação professor-aluno, mas esta assimetria não sugere que o aluno não saiba nada. Por esta razão, o objetivo do professor não é conservar esta hierarquia, mas sim que esta situação seja apenas circunstancial, de modo a contribuir com a jornada do aluno, promovendo uma relação de paridade e alteridade.

Quando o professor acentua esta posição assimétrica, desvalida o conhecimento do aluno, abusa de seus poderes e a autoridade torna-se autoritarismo, podemos supor que o senex está cindido do seu outro polo.

Wahba (2003) e Guggenbühl-Craig (2008) discutem sobre o abuso de poder na prática dos professores. Para os autores, uma exibição narcísica ocorre para manter a dependência do aluno ou para que o professor se sinta desejado, amado ou adulado.

Outra forma de compreensão da concepção do ensinar, seria a partir de uma adaptação da leitura de Purdie e Hattie (2002) e Grácio, Chaleta e Ramalho (2012). Os autores agrupam as representações acerca do ensinar em duas dimensões: profunda e superficial. A dimensão profunda da capacidade de ensinar aparece na medida em que o ensinar gera um desenvolvimento e mudança pessoal.

Esta estaria relacionada a um desenvolvimento da personalidade como um todo, que Jung (1981) denominou processo de individuação. Em consonância com esta dimensão está o modelo vivencial de aprendizagem proposto por Byington (1996), o qual considera o saber da experiência, e não apenas o da razão, como é o caso da dimensão superficial do ensinar.

Nesta última, o ensinar fica restrito à obtenção e memorização de uma informação. O puer, quando só "recebe", acaba por assumir aspectos negativos da sua polaridade, podendo incorporar uma posição passiva, dependente, irresponsável e não questionadora, em uma aceitação acrítica do lhe é "entregue".

Quando não há uma polarização do arquétipo puer-senex, o professor participa de maneira dialógica e dialogante do processo educacional e o aluno participa de maneira ativa do seu processo de ensino-aprendizagem.

Logo, entende-se que, quando há uma inter-relação e integração entre os polos - puer e senex - do arquétipo, a transformação e criatividade - marcas do puer - podem ocorrer e serem concretizadas e consolidadas pelo senex, possibilitando uma transformação da personalidade total do professor e aluno.

 

5. Considerações finais

Tendo em vista que o vínculo e a relação entre professor-aluno são condições fundantes para que o processo educacional se viabilize, a qualidade e a forma como o vínculo se estabelece terá impacto, tanto no processo de ensino-aprendizagem, como no desempenho do professor e aluno.

A partir do estudo da psicologia analítica e das considerações acerca do arquétipo puer-senex, podemos estabelecer paralelos e interlocuções com a relação professor-aluno. Esta pode ser compreendida em um campo transferencial em que, no plano da consciência, o professor-mestre se associa ao senex e o aluno-aprendiz, ao puer. Isto porque o professor deveria despertar o aspecto senex - professor interior - no aluno, e o aluno deveria despertar o aspecto puer - aluno interior - no professor. Vale destacar que esta transferência pode se dar de maneira criativa ou defensiva, favorecendo ou não a relação professor-aluno e, consequentemente, o processo de ensino-aprendizagem.

Além disso, o entendimento da tipologia do aluno, e em especial, do professor, pode indicar a melhor maneira de manter uma relação transferencial criativa, a qual pode ser entendida como uma via para o desenvolvimento total da personalidade do aluno e professor - individuação - principalmente quando o professor possui uma prática predominantemente dialógica e entende o ensinar em sua dimensão profunda.

Isto implica articulação dos dois polos do arquétipo, já que o senex, quando não está conectado com seu aspecto puer, cessa o aprender e acredita deter todo conhecimento, permanecendo estagnado e resistente às transformações; e o puer, quando não se vincula à polaridade senex, permanece em uma posição infantil e dependente. Podemos refletir que a dinâmica integrada do puer-senex possibilita que estes dois aspectos se manifestam de forma construtiva na relação professor-aluno.

É importante destacar que o aprender e ensinar, quando não estão fixados na figura do aluno e professor, respectivamente, favorecem uma não polarização e cristalização dos dois atores desta relação, evidenciando que há grande possibilidade de uma vivência articulada e, consequentemente, positiva dos dois aspectos do arquétipo na relação pedagógica.

Por fim, sugere-se um aumento no número de estudos no campo educacional, tendo em vista que as pesquisas que estabelecem uma interlocução entre a psicologia analítica e a educação são escassas e, quando existentes, são pouco sistematizadas e consistentes, especialmente no que se refere a uma relação professor-adulto com aluno-adulto, quando comparada com a relação professor-adulto com aluno-criança.

 

Referências

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Recebido em: 14/12/17
Revisão:29/04/18

 

 

* Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestranda em Psicologia Clínica: Núcleo de Estudos Junguianos e Capacitanda em Transtornos Alimentares pela Unifesp. E-mail: vifbandeira@gmail.com
** Psicóloga graduada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Mestre em Ciências Sociais pela PUC-SP e Doutora em Psicologia Clínica pelo Núcleo de Estudos Junguianos. É professora nos cursos de graduação em Psicologia e de Tecnologia em Jogos Digitais da PUC-SP. É especialista em abordagem junguiana pela Cogeae da PUC-SP. Coordenadora do Janus (Laboratório de Estudos de Psicologia e Novas Tecnologias). E-mail: <ifcampos@pucsp.br>

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