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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.36 no.1 São Paulo jan./jun. 2018

 

Expressões da sexualidade: um olhar junguiano

 

Expressions of sexuality: A jungian view

 

Expresiones de la sexualidad: una mirada junguiana

 

 

Ana Lia B. Aufranc*

 

 


RESUMO

Até o início do século XX havia uma definição rígida do que era ser homem e do que era ser mulher, da masculinidade e da feminilidade. Atualmente as questões de identidade de gênero e de orientação sexual vão além do binarismo e configuram uma sexualidade mais fluida que desafia a consciência coletiva. Nossa cultura judaico-cristã levou a uma sobrevalorização do masculino em detrimento do feminino e às repressões daí decorrentes na história de nossa sexualidade. Alguns aspectos dessa história, no Brasil, são revistos a fim de nos situarmos no panorama atual. Ao despirmos os conceitos de anima e de animus de seu viés cultural e de padrões rígidos, podemos compreender que o arquetípico se expressa nas mais diferentes polaridades, no feminino e no masculino, na alma e no corpo, dentro e fora de nós e que a psique individual bem como a coletiva se transforma e desenvolve seu potencial criativo a partir da diferenciação e da integração das diferentes polaridades.

Palavras-chave: Identidade de gênero, orientação sexual, binarismo, anima e animus.


ABSTRACT

Until the beginning of the 20th century there was a rigid definition of what it was to be a man and what it was to be a woman, of masculinity and femininity. Currently issues of gender identity and sexual orientation go beyond binarism and configure a more fluid sexuality that challenges the collective consciousness. Our Christian Jewish culture led to an overvaluation of the masculine to the detriment of the feminine and to the repressions that derive in the history of our sexuality. Some aspects of this history, in Brazil, are revised in order to situate ourselves in the current panorama. By undoing the concepts of anima and animus from their cultural bias and rigid patterns, we can understand that the archetypal is expressed in the most different polarities, in the feminine and masculine, in the soul and in the body, inside and outside of us and that the individual psyche as well as the collective one is transformed and develops its creative potential, starting from the differentiation and integration of the different polarities.

Keywords: gender identity, sexual orientation, binarism, anima and animus.


RESUMEN

Hasta principios del siglo XX había una definición rígida de lo que era ser hombre y de lo que era ser mujer, de la masculinidad y de la feminidad. Actualmente las cuestiones de identidad de género y de orientación sexual van más allá del binarismo y configuran una sexualidad más fluida que desafía la conciencia colectiva. Nuestra cultura judía cristiana llevó a una sobrevalorización de lo masculino en detrimento de lo femenino y a las represiones que se derivan en la historia de nuestra sexualidad. Algunos aspectos de esta historia, en Brasil, se revisan a fin de situarnos en el panorama actual. Al deshacer los conceptos de anima y de animus de su sesgo cultural y de patrones rígidos, podemos comprender que el arquetípico se expresa en las más diferentes polaridades, en el femenino y en el masculino, en el alma y en el cuerpo, dentro y fuera de nosotros y que la psique individual así como la colectiva se transforma y desarrolla su potencial creativo, a partir de la diferenciación y de la integración de las diferentes polaridades.

Palabras clave: identidad de género, orientación sexual, binarismo, anima y animus.


 

 

No universo junguiano encontramos a questão tão presente das polaridades: consciente e inconsciente. As polaridades básicas que conduzem à individuação, ao caminho de nos tornarmos, através do desenvolvimento da consciência, aquilo que somos em nossa totalidade.

Jung descreve a psique como sendo potencialmente criativa: não dependemos da repressão dos instintos para desenvolver cultura. O arquetípico se expressa nas polaridades do espírito e do instinto, da psique e da matéria, do feminino e do masculino, na alma e no corpo. O arquetípico está ao mesmo tempo dentro e fora de nós, não há lado de fora da psique coletiva.

A meu ver, uma das grandes riquezas do pensamento junguiano encontra-se na conceituação dos arquétipos da anima e do animus.

Em que pesem as críticas em relação ao viés cultural, que está muitas vezes presente na descrição dessa conceituação, é preciso lembrar a sua originalidade. Jung, em Aion, ao descrever esses conceitos, diz: "estou completamente consciente de estar discutindo um trabalho pioneiro o que, por sua própria natureza, só pode ser provisório" (JUNG, 1981a, § 27).

Se temos isto em mente, nos damos conta da riqueza da descrição de que tanto o homem quanto a mulher trazem no seu inconsciente a polaridade oposta àquela com a qual a consciência se identifica. Estas polaridades opostas nos permeiam, nos fascinam, nos atraem, fazem com que nos apaixonemos. Busquemos no outro, no diferente, aquilo que nos completa, aquilo que nos leva a novas transformações.

As imagens anímicas surgem espontaneamente do inconsciente, fazem parte da função compensatória da relação consciente /inconsciente. Assim, se pensarmos a anima e o animus não identificados a padrões rígidos, seriam contrapartidas necessárias para a individuação, canais de comunicação com o inconsciente, que se expressam fora e dentro de nós.

Nossa cultura judaico-cristã associa o princípio masculino, solar, discriminativo, ativo, logos, espírito ao homem e o feminino, lunar, reflexivo, passivo, eros, matéria, à mulher. Há também, em nossa cultura, uma evidente repressão do feminino e da mulher. Vivemos em uma cultura patriarcal com uma sobrevalorização do masculino.

Vejamos um pouco como isso se deu na história do Brasil. Ao desembarcar na Terras de Santa Cruz, os portugueses ficaram incialmente impressionados com a beleza das índias que caminhavam nuas pelas novas terras. Os primeiros cronistas, como Pero Vaz de Caminha, as viam como criaturas inocentes e puras, cuja beleza nua chamava a atenção (PARKER,1991).

Gilberto Freyre, em Casa Grande e Senzala, no capítulo "O Indígena na Formação da Família Brasileira", diz:

O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua... muitos clérigos deixaram-se contaminar pela devassidão. As mulheres eram as primeiras a se entregar aos brancos, as mais ardentes, indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho (FREYRE, 1983, p. 93).

Na medida, porém, em que os índios se mostraram antropófagos e resistiram à chegada dos estrangeiros, passaram a ser associados ao demônio. É claro que isso já vinha com a chancela da igreja católica. A grande função dos jesuítas, em seu projeto de catequese, era a de reprimir e censurar os corpos nus dos nativos. Era preciso que eles fossem urgentemente vestidos, afinal era inaceitável vê-los nus na missa e menos ainda cabia assistir, durante a celebração, à excitação que as índias causavam nos portugueses.

Na visão dos portugueses, o indígena era um animal lascivo que vivia sem nenhum constrangimento os seus desejos carnais. Para os jovens colonos, era a própria imagem do paraíso, libertos que estavam das repressões e restrições impostas à sexualidade pela cultura de origem. De acordo com Freyre (1983, p. 101): "Era natural a europeus surpreendidos por uma moral sexual tão diversa da sua concluírem pela extrema luxúria dos indígenas; entretanto, dos dois povos, o conquistador talvez fosse o mais luxurioso".

Cabia aos missionários coibir os atos considerados libidinosos, como a poligamia e a sodomia, hábitos naturais entre os índios habitantes da nova terra. Entre os índios Tupinambá, por exemplo, que ocupavam a maior parte da costa brasileira naquela época, havia os Tibira, homens homossexuais e as Çacoimbeguira, as mulheres homossexuais; entre os Kadiweu havia os kudina que eram homem-mulher e assim por diante entre as outras tribos nativas (FERNANDES, 2016).

Esse projeto da igreja, ao mesmo tempo catequista e repressor, repetiu-se, possivelmente de forma mais violenta, com a população negra, pouco tempo depois, com o início do tráfico de escravos em 1526.

Às índias (no século XVI) e às negras (no século XVII) coube o papel de prostitutas e/ou amantes. De acordo com o ditado popular da época: "branca para casar, mulata para foder e negra para trabalhar" (Del Priore, 2014, p. 46). As brancas de elite eram vendidas em casamento.

Para as autoridades religiosas, o ato sexual e qualquer atrativo feminino eram sinônimos de tentação diabólica. À mulher cabia o papel de reprodutora, seu corpo era demonizado. O único aspecto do feminino aceito era a maternidade. A virgindade, evidentemente, era obrigatória para o casamento. O adultério feminino era passível de ser punido com a morte. Já as traições realizadas pelos homens eram tidas como naturais, e passam a ser normais a existência das chamadas "teúdas e manteúdas" e a de seus filhos bastardos. A iniciação sexual dos filhos dos senhores de engenho, bem como o prazer destes, era vivido na sombra social da senzala. A religião e o Estado caminhavam juntos, o pecado era crime, atentado a Deus e ao Rei. A Inquisição portuguesa teve início em 1536 e só se encerrou em 1821. O homossexual, chamado de sodomita, era julgado pelas Ordenações Manuelinas com pena de morte na fogueira, confisco dos bens e infâmia de todos os descendentes até a terceira geração. Embora isso não tenha chegado a acontecer no Brasil, os sodomitas que fossem acusados poderiam ser presos e enviados ao Santo Ofício de Lisboa. Ironicamente, muitos haviam sido mandados pelo Santo Ofício, em degredo, ao Brasil.

Havia uma rede de comunicação bastante extensa entre a colônia e o Santo Ofício, além dos membros da igreja, pessoas da elite poderiam ser aceitas como representantes da Inquisição. Fazer parte do quadro da Inquisição trazia status na colônia, além de privilégios como a isenção fiscal. Significava que tal pessoa era reconhecida como tendo "limpeza de sangue", isto é, sem misturas de índios ou de negros. Cabia aos representantes do Santo Ofício oficializar delações que seriam enviadas ao Tribunal de Lisboa. E, eventualmente, oficiais da Inquisição visitavam o Brasil.

É interessante verificar que muito do que se sabe da vida sexual daquela época constava dos registros minuciosos das denúncias e das confissões. Havia dúvidas, por exemplo, do que se fazer com as delações de homossexualidade feminina. A penalidade para a homossexualidade se referia à chamada sodomia completa, que significava penetração anal. Mas como poderia haver sodomia entre mulheres? Outra questão que suscitava dúvidas era se a sodomia praticada entre um homem e uma mulher também seria passível de pena.

O fato de não haver tribunais da Inquisição no Brasil trazia uma liberdade muito maior aos habitantes da nova terra em comparação com a população de Portugal.

Para a trilha sonora da peça de teatro Calabar, o Elogio da Traição, de 1973, Chico Buarque compôs um frevo "Não existe pecado ao sul do equador". Essa frase o compositor encontrou em uma nota de rodapé do livro Raízes do Brasil, de seu pai Sérgio Buarque de Holanda. É uma frase que faz parte do livro Histórias de Feitos Recentemente Praticados no Brasil, do historiador holandês Caspar von Barlaeus, da corte de Maurício de Nassau, em Pernambuco durante o século XVII. Neste, Barleus diz que é como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também dividisse a virtude do vício.

A partir do século XIX, a medicina passou a ocupar o espaço da religião na instrução de como deveria ser o relacionamento sexual. A nudez completa estava associada ao sexo no bordel, as relações deveriam ocorrer no escuro e com corpos cobertos. A ciência explicava que a ejaculação extraia o que haveria de mais puro no sangue do homem: 30 gramas de sêmen corresponderiam à hemorragia de 1.200 gramas de sangue, portanto não se aconselhava o desperdício. Nada de masturbação, e as relações deveriam ser rápidas visando a fecundação (DEL PRIORE, 2014). Entre 1840 e 1850, dois médicos franceses descobriram os mecanismos da ovulação feminina; isto demonstrou, com clareza, que o orgasmo feminino era totalmente desnecessário! (DEL PRIORE, 2014).

O prazer nessa época era também vivido na sombra social. Havia, no século XIX, no Rio de Janeiro, três categorias de prostitutas: as aristocráticas ou de sobrado, que eram em geral francesas, mantidas por políticos ou fazendeiros e estavam associadas ao luxo no morar e no vestir; as de sobradinho, que eram mais pobres e trabalhavam em hotéis, eram polacas ou mulatas; e as da escória, mulheres que atendiam em casebres ou em fundos de barbearias.

Já as mulheres honestas não deveriam sentir prazer. A elas era reservado o papel de ser boa mãe, submissa e doce. O instinto materno deveria anular o instinto sexual. Caso contrário, tratava-se de patologia, ninfomania ou histeria, porque o cérebro da mulher poderia ser dominado pelo útero. Na versão de um médico da época, a excessiva voluptuosidade era de fácil diagnóstico: essas mulheres são péssimas donas de casa (DEL PRIORE, 2014). Os remédios eram os mesmos dos 200 anos anteriores: banhos frios e caminhadas.

A dissociação entre a virgem santa, mãe dos filhos e a prostituta com quem se pode viver o prazer, tem ecos até hoje na psique coletiva. O corpo e o prazer saem então da jurisdição religiosa e passam para o campo da ciência, não mais pecado, mas sim doença. A homossexualidade deixa de ser pecado ou crime e passa a ser uma patologia degenerativa: falhas biológicas e psíquicas que colocam em risco a espécie humana. O homossexual não mais é preso em cárcere, mas sim em clínicas e manicômios. No Brasil, a homossexualidade saiu do código penal em 1830, mas as prisões continuaram a ocorrer sob a justificativa de atentado ao pudor ou vadiagem. Somente em 1973 a Associação Americana de Psiquiatria deixou de considerar a homossexualidade como sendo transtorno mental e a retirou do Diagnostic and Statistical Manual Disorders (DMS). Mesmo assim continuou a constar como doença mental no Classificação Internacional de Doenças (CID) até 1990, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a décima versão dessa classificação (CID-10). Essa versão só entrou em vigor, para os países-membro das Nações Unidas, em 1993 (OMS, s.d.).

Apenas em março de 1999, ou seja, há menos de 20 anos, o Conselho Federal de Psicologia editou a Resolução nº 001/1999, que define que a homossexualidade não é doença, nem distúrbio, nem perversão. Nessa Resolução, os psicólogos são orientados a não exercer qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas e nem colaborar com eventos e serviços que proponham tratamento e cura da homossexualidade (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 1999).

As mulheres, por sua vez, tiveram a alforria ao próprio prazer a partir do lançamento da pílula anticoncepcional, que se deu nos EUA em 1960 e que chegou ao Brasil em 1962. Inicialmente pensada como forma de possibilitar o planejamento familiar, passa a ser usada por mulheres solteiras, o que configura a revolução sexual. A sexualidade passa a poder ser vivida plenamente, em sua dimensão do prazer, sem associação com a gravidez. A mulher passa a poder ser dona de seu prazer e de seu corpo, como nunca tivera a condição antes.

O início da liberdade sexual é vivido nessa época, no Brasil e no mundo, junto a enormes movimentos de transformações de costumes.

Iniciam-se no Brasil, os primeiros movimentos pelos direitos gays no final dos anos 1970. Na ocasião, eram predominantemente formados por homossexuais masculinos, mas logo as lésbicas passaram a participar. Nos anos 1990, os travestis e transexuais aderiram e, no início de 2000, os bissexuais.

Até o começo do século XX há uma definição rígida do que é ser homem e do que é ser mulher, da masculinidade e da feminilidade. A homossexualidade é vista, ainda nos anos 1970, dentro da perspectiva do masculino dominante e do feminino passivo. A bicha, como era chamado, é o passivo; o homem que transa com a bicha não é, necessariamente, considerado homossexual. Sapatão é a mulher que se exerce masculinamente, a parceira feminina, não. Ou seja, é homossexual o homem feminino e passivo ou a mulher masculina e ativa.

O movimento GLS (gays, lésbicas e simpatizantes) passa a ser LGBT: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e em algumas regiões do Brasil o "T" inclui transgêneros (eventualmente é também acrescido o Q de queer).

Para além do sexo anatômico, homem e mulher, há a questão da identidade de gênero e da orientação sexual. A identidade de gênero está ligada à maneira como a pessoa se autodefine. Nascer homem e sentir-se mulher ou nascer mulher, mas sentir-se homem, ou ser cisgênero, ou seja, identificado com o sexo de nascimento. A não binaridade de gênero inclui formas variadas de neutralidade, ambiguidade, multiplicidade e fluidez de gênero. Por exemplo, um gênero não binário é o agênero que se caracteriza basicamente pela ausência de gênero ou o bigênero que se caracteriza pela vivência de dois gêneros simultaneamente.

Já a orientação sexual tem a ver com a expressão da sexualidade, do desejo, da atração afetivo sexual. Nesse sentido, a orientação sexual pode ser hetero, homo, bi ou pansexual, que seria a atração sexual ou amorosa entre pessoas independentemente do sexo ou da identidade de gênero.

Não raro hoje temos notícia de novas formações de casais e de famílias. No Equador, houve recentemente o relato de um casal: ela, Diane (que nasceu Luis), e ele, Fernando (que nasceu Maria). Ambos tomam hormônios, mas não fizeram a cirurgia de redesignação sexual e tiveram um filho. Logo, é o pai que deu à luz e amamenta. É interessante ver imagens de homens barbados amamentando (CRELLIN, 2017). Os transexuais podem ser heterossexuais, como é o caso do casal equatoriano. Mas podem também ser gays, lésbicas ou bissexuais tanto quanto as pessoas cisgênero. Ou seja, por exemplo, alguém nascido mulher pode se identificar como homem e sentir atração por outro homem. Seria, então, um homem trans homossexual.

Na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, os alunos podem solicitar o uso de um nome social, o que significa começar o curso com um nome masculino e terminar com um feminino ou vice-versa. Recentemente, foi instituído ali também, além dos banheiros para homens e para mulheres, o banheiro unissex.

Há ainda uma comunidade que se autodenomina assexual. A assexualidade, segundo a definição da própria comunidade, é diferente do celibato, porque este seria uma escolha e diferente do desejo sexual hipoativo, que seria patologia. Essa comunidade entende a assexualidade como sendo uma orientação sexual, ou seja, não sentem atração sexual por outros indivíduos, mas podem ser heterorromânticos, homorromânticos, birromânticos, panrromânticos ou arromânticos.

É claro que tudo isso é extremamente novo para a consciência coletiva. Mas será que tudo isso é realmente novo?

A maioria dos deuses cosmogônicos tem uma natureza bissexual. O hermafrodita é a imagem da união dos opostos. Está presente na indiferenciação inicial da totalidade, mas aponta, também, para a meta da individuação, o processo de desenvolvimento do Self de um estado inconsciente para um estado consciente. Por isso, o lápis philosophorum, na alquimia, está no início e no fim do processo. Os opostos presentes em suas potencialidades iniciais e em sua integração final.

A separação dos opostos é a condição inicial para o desenvolvimento da consciência, mas a opus implica a integração dos opostos.

Hermes é o símbolo da prima matéria e seu agente transformador. Muitas vezes, ele é retratado como hermafrodita, imagem que reflete a natureza da divindade que é "Todo em Um". Hermes Trismegisto , ao revelar seus segredos a Asclépio, diz:

Deus não tem nome e possui todos os nomes pois ele é ao mesmo tempo o Um e o Todo. Infinitamente repleto com a fecundidade de ambos os sexos, ele continuamente faz nascer o que planeja criar [...] (SINGER, 1990, p. 116).

O ser primordial, que engloba as polaridades, se torna, de acordo com Jung (1981a), com o desenvolvimento da civilização, um símbolo da união da personalidade, um símbolo do Self, da totalidade.

No hinduísmo, a fusão de Shakti e Shiva é representada pela união sexual entre eles ou por uma figura com dois sexos, metade feminina e metade masculina. Shiva e Shakti unidos formam o absoluto não manifesto: Brahman. A criação do universo se dá quando Shiva e Shakti se separam, com o surgimento da dualidade.

Maya, a magia de Shakti, dá a aparência de finito ao infinito, de múltiplo ao que é uno, de destrutível ao que é eterno. Penetrando através de Maya, é possível atingir o absoluto, ultrapassando as limitações e as dualidades, vivenciar o reconhecimento de ser parte do todo.

Com a integração de Shiva, o princípio masculino, e de Shakti, o feminino, se atinge a percepção de que somos unidade. Para isso há dois caminhos tântricos, ou seja, duas práticas: o Vama Tantra, que entende que a energia masculina se manifesta principalmente no homem e a feminina principalmente na mulher, daí a prática ritualizada do ato sexual para uni-los; e a Dakshina Tantra, que entende que tanto o homem como a mulher possuem os dois princípios, masculino e feminino, e preconiza práticas que visam integrar ambos em cada ser individualmente.

Junito Brandão (1991a), especialista em mitologia grega e latina, faz uma diferençiação interessante entre o Hermafrodito e o Andrógino.

Segundo Ovídio, em Metamorfoses: Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, era um jovem belíssimo. A ninfa Sálmacis, ao vê-lo banhando-se na sua fonte, apaixonada, o enlaçou fortemente e pediu aos deuses que jamais a separassem dele. Suas súplicas foram atendidas e os dois corpos foram fundidos em um só. Hermafrodito, ao perceber o que havia ocorrido, implora aos pais, no que é atendido, que todo aquele que se banhasse nas águas límpidas da fonte de Sálmacis ficasse impotente. O Hermafrodito estaria assim associado à simbiose e à esterilidade, representaria um movimento regressivo do dois diferenciado para o um.

Já os andróginos, em o Banquete de Platão, de acordo com Aristófanes, eram seres esféricos que incluíam os dois sexos e que foram se tornando audaciosos, a ponto de ameaçar os deuses com suas tentativas de escalar o Olimpo. Zeus, face ao perigo, resolveu cortar o andrógino em duas partes e encarregou Apolo de curar suas feridas e virar seus rostos para o lado em que a separação havia sido feita. Assim eles poderiam contemplar a marca dos cortes, o umbigo e, com isso, se tornariam mais humildes. Cada metade tem procurado, desde então, a outra contrária em um desejo intenso de se "re-unir" e foi assim que teve origem o amor.

É importante lembrar que, de acordo com o mito, inicialmente existiriam três sexos humanos: o masculino, que provem de Hélio, o sol; o feminino, que provem de Géia, a terra; e o andrógino, que provém de Selene, a Lua, e que compartilha de ambos os sexos. Outra questão interessante é que existiriam também outras duas fusões, que Zeus também separou, a de mulher com mulher e a de homem com homem, o que teria dado origem ao desejo homossexual (BRANDÃO, 1997).

O andrógino, ao contrário do hermafrodito, estaria associado à fecundidade, à diferenciação e à procura de reunião.

Na mitologia grega, a androginia, assim como a mudança de sexo, é comum. Talvez a referência mais conhecida de mudança de sexo seja a de Tirésias. Na adolescência, Tirésias, que havia nascido homem, ao ter que passar pelas provas iniciáticas, subiu o monte Citerão no Peloponeso. No caminho, viu duas cobras copulando; ele as separou e, segundo algumas versões, matou a fêmea. Naquele instante, ele se transformou em mulher. Como mulher se tornou sacerdotisa de Hera, casou-se e teve filhos. Em outra versão, tornou-se uma prostituta famosa. Após sete anos como mulher, Tirésias, ao subir novamente o monte Citerão, encontrou a mesma cena anterior. Desta vez, matou a serpente macho e voltou a ser homem (Brandão, 1991b).

Tirésias é uma figura complexa, mediador entre a humanidade e os deuses, homem e mulher, cego e vidente.

Voltando às terras brasílicas, temos que os pajés eram, via de regra, homossexuais, transexuais ou bissexuais. Gilberto Freyre (apud RODRIGUES; NOVAIS, 2013, p. 49), citando cronistas do século XVI, diz:

quanto aos pajés, é provável que fossem daquele tipo de homens efeminados ou invertidos que a maior parte dos indígenas da América antes respeitavam e temiam, do que desprezavam ou abominavam. A verdade, é que para as mãos de indivíduos bissexuais ou bissexualizados pela idade, resvalam, em geral, os poderes e a função de místicos, de curandeiros, pajés e conselheiros, entre as várias tribos.

Na mitologia afro-brasileira, que também forma nossa cultura, temos Oxumarê, um orixá vidente e curador. De acordo com algumas versões, vive metade do ano como homem e a outra metade, como mulher. Oxumarê está ligado à imagem da serpente e à imagem do arco íris. Oxumarê une com seu longo véu multicolorido, o céu e a terra, fazendo assim a comunicação com os deuses. É o orixá ligado à força vital do movimento, da transformação e da renovação (GALLI, 2011; PRANDI, 2001). É uma figura complexa que muito se assemelha à de Tirésias.

Voltando aos dias de hoje, o Brasil é o país que, em números absolutos, mais registra assassinatos de travestis e transexuais. A expectativa de vida dos transgêneros é de 35 anos, de acordo com a Associação Nacional de Transexuais e Travestis do Brasil (Antra, [2000]). Ou seja, menos da metade da expectativa de vida da população brasileira, que pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) é de 75,8 anos (MARLI, 2017). No CID-10 (F64) ainda consta como transtorno de identidade sexual e no DSM-5 como disforia de gênero.

No primeiro semestre de 2017 foi registrado, no estado de São Paulo, um feminicídio a cada quatro dias. Sancionada em 2015, a Lei do Feminicídio (BRASIL, 2015) transformou em hediondo o assassinato de mulheres motivado justamente por sua condição de ser mulher. São os casos de violência doméstica e familiar e do menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Assim como o estupro, a motivação costuma estar ligada a uma afirmação do poder do homem.

A cidade de São Paulo registra sete casos de estupro por dia. Estima-se que apenas 10% das vítimas reportem o crime à polícia. Em pesquisa recente (outubro, 2017) da Thomson Reuters Foundation, São Paulo é a megalópole mundial com maior potencial de risco de violência sexual para mulheres e se equipara a Nova Deli, na Índia (BHALLA; MENDES, 2017).

Em uma cultura que privilegia o masculino e inferioriza o feminino, há ainda a primazia da heterossexualidade como sendo a forma normal e madura da sexualidade. A homossexualidade, embora tenha saído do rol das patologias e do crime, ainda está em processo de aceitação cultural. Já as questões trans são ainda muito novas para a consciência coletiva.

A Dinamarca foi o primeiro país, cuja lei entrou em vigor em janeiro de 2017, a retirar as identidades trans da lista de transtornos mentais (RUSSO, 2017). Em São Paulo, desde de 2010, o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo tem mantido o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual.

Eros é vida é transformação. A individuação não necessariamente significa adaptação social. Não somos responsáveis, em última instância, pelo que somos na nossa identidade mais profunda, mas sim pelo que fazemos com isso.

A anima e o animus, não identificados a padrões rígidos, seriam as contrapartidas necessárias à individuação. A integração das diferentes polaridades na procura do desenvolvimento do que é próprio a cada um.

Estaremos vivendo uma enorme indiferenciação? Ou então simplesmente, ao "saírem do armário" os esqueletos reprimidos, vem chegando à consciência coletiva a imensa riqueza das possibilidades humanas. Vem se expressando toda a potencialidade contida simbolicamente em uma relação erótica.

Ney Matogrosso, cantor que surgiu com o grupo Secos e Molhados em 1973, disse recentemente em uma entrevista ao jornal Folha de S. Paulo (17/07/1017): "nunca quis ser mulher nem ocupar o lugar de mulher. Sou um homem que apenas não respeitou os limites, que transita com liberdade entre uma ponta e outra do espectro" (CANÔNICO, 2017).

Triz1, rapper paulista, em letra da música Elevação Mental, diz: "E para quem quer saber o meu gênero é neutro. Cê não precisa entender, só precisa ter respeito".

Com a questão trans, tudo sai do "seu devido lugar", soa estranho, imprevisível. É fácil termos a necessidade de encaixar o novo, que traz insegurança, no conhecido. Como se, ao existirem apenas dois sexos anatômicos, só pudessem existir também dois gêneros. Em um documentário sobre Laerte2, que passou a se autodenominar a Laerte, fica claro o preconceito inclusive entre os próprios transexuais, "se você não fez cirurgia, então você não é mulher"; é uma fala que Laerte escuta de mulheres trans.

O novo traz uma sexualidade mais fluida, para além do binarismo e das polarizações radicais de masculino e feminino. Para além, também, das categorizações LGBT que, às vezes, parecem crescer em letras na tentativa de categorizar e enquadrar o novo.

Podemos continuar a jogar pedra na Geni (como na letra da música "Geni e o Zepelim", de Chico Buarque de Holanda3), projetando o mal no diferente, no novo, configurando assim a dissociação e a esterilidade, ou podemos procurar seguir uma lei básica de Zeus a xenía.

A xenía é o oposto da fobia. É a lei da hospitalidade, pela qual se deve receber o estrangeiro, o diferente, o novo e oferecer-lhe comida, bebida, banho e abrigo. Nunca perguntar nada ao hóspede até que ele tenha saciado as suas necessidades. Só no dia seguinte perguntar a que veio.

 

Referências

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRANSEXUAIS E TRAVESTIS DO BRASIL. [c2000]. Disponível em: <https://antrabrasil.org>. Acesso em: 5 set. 2017.         [ Links ]

BHALLA, N.; MENDES, K. São Paulo e Nova Délhi são as piores metrópoles em violência sexual contra mulheres, diz pesquisa. Reuters, 16 out. 2017. Disponível em: <https://br.reuters.com/article/domesticNews/idBRKBN1CL23O-OBRDN>. Acesso em: 12 maio 2018.         [ Links ]

BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991a. vol. 1.         [ Links ]

BRANDÃO, J. S. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991b. vol. 2.         [ Links ]

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Recebido em: 25/02/2018
Revisão:17/05/2018

 

 

* Psicóloga, analista junguiana pela SBPA-IAAP, supervisora e coordenadora de seminários no Instituto de Formação de Analistas da SBPA. E-mail: <ana-lia@uol.com.br>
1 https://www.letras.com.br/triz/elevacao-mental/
2 https://www.netflix.com/br/title/80142223
3 https://www.letras.mus.br>MPB>ChicoBuarque>GenieoZepelim

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