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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.36 no.2 São Paulo jul./dez. 2018

 

RESENHA

 

O banquete de psique

 

 

Victor Palomo

Psiquiatra, analista junguiano, membro da SBPA. E-mail: <victorpalomo@uol.com.br>

 

 

BARCELLOS, Gustavo. Petrópolis: Vozes, 2017.

O analista junguiano Gustavo Barcellos convida-nos, desde o início desse ensaio, a uma enunciação da psique da comida e da comida da psique menos ocupada com as possíveis camadas que ensejam seus suportes linguísticos, que entregue às propriedades metafóricas implícitas a essas terminologias. Importam aqui a trama das imagens e as propriedades imaginativas suscitadas pelo alimento, por suas escolhas, as formas de preparo, as receitas, o engolimento, o tubo digestivo, a excreção, o salgado, o doce, a mesa e a sobremesa, apreciados a partir de suas "necessidades ritualísticas intrínsecas", cerimônias necessárias ao soul making. A adesão do autor a tais premissas imprime ao texto sua perspectiva (seu olhar através) radicular, a qual se afasta de uma narrativa linear ou uma resenha analítica sobre o ato de comer e suas vicissitudes, ancorando-se em pressupostos teóricos resultantes de um marcante trabalho de pesquisa.

Cabe lembrar que pesquisar aqui não se restringe somente ao esforço revisional dos escritos acadêmicos, mas em delicados destaque e atenção aos ditos e expressões da linguagem coloquial que acolhe, com relativa inconsciência, as imagens alimentares como recurso metafórico para a comunicação e expressão de suas ideias. O que se registra, atualmente, é um enorme volume de publicações (obviamente importantes) que tentam destrinchar os emaranhados neurofisiológicos e psicopatológicos que dão suporte aos Transtornos Alimentares, locução adotada pelos tratados de saúde mental para catalogar as desordens que derivam da obesidade à anorexia. O ensaio O Banquete de Psique apresenta-nos imagens que não se ocupam, restritivamente, com tais conceitos.

Se a imaginação dos processos alimentares é análoga aos processos que delineiam os caminhos culturais percorridos entre o estado de natureza e a cultura, a boca será a imagem inicialmente eleita para as reflexões sobre a alma e a comida. O mundo adentra o corpo pelo engolimento e essa poética da sensação integra imagens saborosas, amargas, doces, salgadas e azedas. A dialética engolidor-engolido já fora registrada nas narrativas míticas, pois os deuses comem e são comidos. Da boca ao estômago, atenta-se ao fígado como imagem das paixões vivazes e dos excessos e, fiéis à rota, deparamo-nos com uma poética da excrescência, quando o intestino e o ânus são imaginados. Sendo a alimentação arquetípica, seus utensílios, técnicas e temperos denotam e conotam nossos humores, nossas fantasias, nossa alma faminta e saciada. Entre a fome e o fastio, as metáforas digestivas são destacadas de forma insistente ao longo do texto, pois na alma gástrica operam processos alquímicos profundos e presentes, por analogia, no trabalho psicoterápico. Novamente, linguagem e imagem fundem-se para provar que linguagem poética é imagem quando o texto convida o leitor a adentrar em um corpo imaginal. E confirma que a psicoterapia é tributária da função poética da linguagem, quando a retórica digestiva convida suas imagens ao consultório para "digerir, engolir, engasgar, entalar, mastigar, saborear, degustar, assimilar, processar, cozinhar, ruminar, evacuar" nossas belezas, verdades e dores anímicas. E não somente na psicoterapia, lembra Gustavo, mas também no discurso vigil e na gramática onírica.

Contudo, a protagonista deste texto é a função poética da linguagem, quando o ritmo da prosa que implica uma sustentação de conceitos é transmutado no devir próprio à gramática das imagens, apresentadas em sucessão ou contraposição. Em tais instigantes momentos, o texto não se serve das palavras, mas se rende servo delas, de suas imagens intrínsecas, convidando-nos a digeri-las em uma temporalidade própria, como uma "lição de paciência" inerente à alquimia da cozinha. As "experiências" com o tempo estão presentes nas entrelinhas da prosa poética servida por Gustavo a qual, antes de nos oferecer a doçura e a ternura da sobremesa, nos serve na bandeja o coração do texto: a inextricável associação entre comida, mesa, cozinha e o arquétipo fraterno. Em "Notas sobre a função fraternal", incluída em Voos e Raízes (2006), lê-se que o irmão "define, em níveis mais avançados do que aqueles do influxo de pai e mãe, meu estar no mundo, meu amor pelo mundo" e que o irmão é imagem que instaura na alma os discursos da diversidade e da semelhança na diferença. Talvez, em O Banquete de Psique, o autor tenha respondido, saborosamente, à indagação deixada como provocação naquelas divagações: "como, de que forma constelar o eu fraterno? [...] Como libertar os horizontes da alma para que finalmente ela se fraternize?". Resposta: na sofisticação poética da mesa e da sobremesa, quando compartilhamos o olhar do irmão. Bom apetite!

 

 

Recebido em: 30/08/2018
Revisão em: 12/12/2018

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