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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

O arquétipo da vida e da morte. Um estudo da Psicologia Simbólica1

 

The archetype of life and death. A study of Symbolic Psychology

 

El arquetipo de la vida y de la muerte: Un Estudio de la Psicología Simbólica

 

 

Carlos Amadeu B. Byington

Médico-Psiquiatra e Analista. E-mail: < c.byington@uol.com.br> Site: www.carlosbyington.com.br

 

 


RESUMO

O autor elabora a posição dualista de Freud e dialética de Jung e Sabina Spilrein diante do Arquétipo da Vida e da Morte por intermédio da conceituação de cinco posições arquetípicas da consciência (Eu-Outro): posição indiferenciada, insular, polarizada, dialética e contemplativa, cada uma, em duas atitudes, passiva e ativa. Para isto, o autor expande conceitos fundamentais da Psicologia Analítica e da Psicanálise, principalmente os conceitos de arquétipo e de defesa, num corpo teórico, que denomina Psicologia Simbólica.
A seguir, o autor associa sumariamente as cinco etapas da vida (infância, adolescência, vida adulta, maturidade e velhice) a estas posições da consciência, junto com os seus quatro Arquétipos Regentes correspondentes: Arquétipo Matriarcal e posição insular. Arquétipo Patriarcal e posição polarizada. Arquétipo da Alteridade (Anima e Animus) e posição dialética. Arquétipo da Totalidade e posição contemplativa. Especial ênfase é dada ao Arquétipo do Coniunctio, descrito de forma típica nas fases do processo por intermédio de quatro formas de expressão: Coniunctio Insular, Coniunctio Parental, Coniunctio Conjugal e Coniunctio Cósmico. Em conclusão, o autor descreve a função estruturante do Arquétipo da Vida e da Morte, e seu papel na elaboração simbólica, sobretudo na passagem de uma fase para a outra, dando especial ênfase ao estado terminal à discussão da eutanásia médica e da autoeutanásia.

Palavras-chave: arquétipo da vida e da morte, psicologia simbólica. posições arquetípicas da consciência. posição indiferenciada, insular, polarizada, dialética e contemplativa, atitudes passiva e ativa das posições arquetípicas, teoria arquetípica das relações objetais, coniunctio insular, parental, conjugal e cósmico, eutanásia médica, autoeutanásia.


ABSTRACT

The author elaborates on Freud's dualistic position and Jung's and Sabina Spilrein's dialectical position concerning the Archetype of Life and Death through five archetypal positions of the I-Other relationship, namely, the undifferentiated insular, polarized, dialectical and contemplative positions, each in the active and passive attitude. In order to accomplish this elaboration, the author expands some fundamental concepts of Analytical Psychology, such as the Archetype, and of Psychoanalysis, such as defense mechanism.
Then, the author describes five phases of life (childhood, adolescence, adulthood, maturity and old age) and associates them with the archetypal I-Other positions and their correspondence to the four Regent Archetypes; Matriarchal, Patriarchal, Alterity (Anima and Animus) and Totality Archetypes. Special emphasis is given to the Coniunctio Archetype, which is described in the phases of life through four types: Insular Coniunctio, Parental Coniunctio, Coupling Coniunctio and Cosmic Coniunctio. In this description, the author emphasizes the elaboration of the Archetype of Life and Death, mainly in the archetypal transition from one phase to the next. In conclusion, the author considers the necessity of medical euthanasia and self-euthanasia as one of the main conquests of human rights to encounter death with dignity within the Cosmic Coniunctio.

Keywords: symbolic psychology, archetype of life and death, archetypal positions of consciousness, undifferentiated position, insular position, polarized position, dialectic position, contemplative position, passive and active attitudes of the archetypal positions of consciousness, archetypal theory of object relationship, cosmic coniunctio, medical euthanasia. Self euthanasia.


RESUMEN

El autor elabora la posición dualista de Freud y dialéctica de Jung y Sabina Spilrein ante el Arquetipo de la Vida y de la Muerte por medio de la conceptualización de cinco posiciones arquetípicas de la conciencia (Yo-Otro): Posición indiferenciada, insular, polarizada, dialéctica y contemplativa, cada una, en dos actitudes, pasiva y activa.
Para que esto se realice, el autor expande conceptos fundamentales de la Psicología Analítica y del Psicoanálisis, principalmente los conceptos de arquetipo y de defensa, en un cuerpo teórico, que denomina Psicología Simbólica.
A continuación, el autor asocia sumariamente las cinco etapas de la vida (infancia, adolescencia, vida adulta, madurez y vejez) a estas posiciones de la conciencia, junto con sus cuatro Arquetipos Regentes correspondientes: Arquetipo Matriarcal y posición insular. Arquetipo patriarcal y posición polarizada. Arquetipo de la Alteridad (Anima y Animus) y posición dialéctica. Arquetipo de la Totalidad y posición contemplativa. Se hace especial énfasis en el Arquetipo del Coniunctio, descrito de forma típica en las fases del proceso por medio de cuatro formas de expresión: Coniuntio Insular, Coniunctio Parental, Coniunctio Conjugal y Coniunctio Cósmico. En conclusión, el autor describe la función estructurante del Arquetipo de la Vida y de la Muerte, y su papel en la elaboración simbólica, sobre todo en el paso de una fase a otra, dando especial énfasis al estado terminal a la discusión de la eutanasia médica y de la auto- la eutanasia.

Palabras clave: el arquetipo de la vida y la muerte, psicología simbólica, posiciones arquetípicas de la conciencia, posición indiferenciada, insular, polarizada, dialéctica y contemplativa, actitudes pasiva y activa de las posiciones arquetípicas, teoría arquetípica de las relaciones objetivos, coniunctio insular, parental, conyugal y cósmico, eutanasia médica, auto eutanasia.


 

 

À Silvia Freitas Tenucci

In Memoriam

 

1. Introdução

A função da polaridade Vida-Morte na transformação psicológica foi o tema central do artigo de Sabina Spilrein intitulado "A Destruição como causa da Transformação" (SPILREIN, 1912). Neste artigo, publicado no Anuário de Psicanálise e Psicopatologia de 1912, junto com a parte II do livro "Símbolos e Transformações" de Jung (1986), Sabina reconhece a influência de Jung no seu artigo, principalmente do capítulo 9, intitulado "A Mãe Dual", no qual Jung relaciona Vida e Morte na transformação, através do símbolo arquetípico da mãe. Ela cita a seguinte passagem de Símbolos e Transformações: "[...] A libido tem dois lados: ela é a força que tudo embeleza e, em determinadas circunstâncias, tudo destrói". E a seguir, Sabina acrescenta: "Na fecundação, se dá a união das células do homem e da mulher. Nesse momento, cada célula tem a sua unidade destruída e desta destruição surge a nova vida".

O estudo da polaridade Vida e Morte foi retomado por Freud em 1920 como tema central da reformulação da sua teoria da libido descrita na obra "Além do Princípio do Prazer" (FREUD, 1920 p. 73).

Neste artigo, quero abordar a polaridade Vida-Morte como arquétipo e função estruturante na elaboração simbólica, ao mesmo tempo em que tentarei explicar o porquê da conceituação radicalmente diferente no enfoque desta polaridade por Sabina e Jung, de um lado, e Freud, do outro. De fato, enquanto que Jung e Sabina situam a dualidade Vida e Morte na unidade, Freud a mantém na dualidade. Acho da maior importância para a teoria psicológica compreender porque isto ocorreu. Será que um lado está certo e o outro errado ou será, como tentarei demonstrar, que ambos estão certos, posto que não só tratam de realidades diferentes, como adotam diferentes posições arquetípicas da consciência para descrever a realidade psíquica? Freud escreve:

Nosso debate teve como ponto de partida uma distinção nítida entre os instintos do ego, que equiparamos aos instintos de morte e os instintos sexuais que equiparamos aos instintos de vida... Nossas concepções desde o início foram dualistas e são hoje ainda mais dualistas que antes, agora que descrevemos a oposição, como se dando, não entre instintos do ego e instintos sexuais, mas entre instintos de vida e instintos de morte. A teoria da libido de Jung é pelo contrário monista; o fato de haver ele chamado sua única força instintual de "libido", destina-se a causar confusão... (FREUD, 1920).

Apesar de entrincheirar-se firmemente nessa posição dualista, Freud não se acha totalmente à vontade nela e já na página seguinte, conjectura:

Na obscuridade que reina atualmente na teoria dos instintos, não seria de bom senso rejeitar qualquer ideia que prometa lançar luz sobre ela. Partimos da grande oposição entre os instintos de vida e de morte. Ora, o próprio amor objetal nos apresenta um segundo exemplo de polaridade semelhante: A existente entre o amor (afeição) e o ódio (ou agressividade). Se pudéssemos conseguir relacionar mutuamente essas duas polaridades e derivar uma da outra! Desde o início identificamos a presença de um componente sádico no instinto sexual... Mas, como pode o instinto sádico cujo intuito é prejudicar o objeto, derivar de Eros, o conservador da vida? (FREUD, 1920 p. 74).

Desta maneira, Freud aventa a possibilidade de englobar a dualidade na unidade, mas, logo a seguir, dela se afasta pelo seu preconceito ao unitarismo místico.

Se uma pressuposição assim é permissível, atendemos então a exigência de que produzimos um exemplo de Instinto de Morte, embora se trate de um instinto deslocado. Mas essa maneira de considerar as coisas está muito longe de ser fácil de captar e cria uma impressão positivamente mística. Sua aparência é suspeita, como se estivéssemos tentando achar um modo de sair a qualquer preço de uma situação embaraçosa (FREUD, 1920 p. 75).

No entanto, a dualidade também não é cômoda para Freud, como nunca o foi para o espírito científico. Einstein dedicou os últimos 25 anos de sua vida na tentativa de formular uma teoria unitária de campo que pudesse reunir a Teoria da Relatividade, que formula os conceitos de espaço, tempo, gravidade, com a Teoria Quântica, que formula os conceitos do átomo, de matéria e de energia. Apesar de ele não ter conseguido inter-relacionar num todo significativo a dimensão gravitacional e a dimensão eletromagnética, Einstein justificou sua busca durante os 25 anos finais de sua vida afirmando que "a ideia de que estas duas estruturas do espaço, (a micro e a macro) são independentes entre si é intolerável para o espírito teórico" (BARNETT, 1962 p. 110).

Ainda em "Além do Princípio do Prazer", algumas páginas depois, Freud hesita quanto a manter-se na dualidade e escreve: "Pode-se perguntar, e até onde, eu próprio me acho convencido da verdade das hipóteses que foram formuladas nestas páginas. Minha resposta seria que eu próprio não me acho convencido a nelas acreditar, ou mais precisamente, que não sei até onde nelas acredito." E como se não pudesse se manter na dualidade apesar de afirmá-la, Freud, nas considerações finais desse artigo, retoma a unidade, só que desta feita, subordinando o instinto de vida ao instinto de morte:

Ainda não podemos decidir com certeza em favor de nenhum desses enunciados, mas é claro que a função (do prazer) estaria assim relacionada com o esforço mais fundamental de toda substância viva: o retorno à aquiescência do mundo inorgânico... (e, uma página depois) [...] O princípio do prazer parece, na realidade, servir aos Instintos de Morte (FREUD, 1920).

Bastante cônscio da dificuldade lógica dos seus próprios argumentos, Freud termina o artigo com uma citação poética, segundo a qual "Ao que não podemos chegar voando, devemos chegar mancando...".

Por seu lado, Jung e Sabina não têm problemas em considerar a polaridade Vida e Morte interagindo de forma antagônica, mas também sincrônica, dentro do processo de desenvolvimento psicológico. Já no início do seu artigo, Sabina exemplifica a interação destruição-construção na transformação do ser, com a fecundação, na qual os gametas morrem para formar o ovo com a nova vida. Jung, por sua vez, percebeu dialeticamente não só a polaridade Vida e Morte, mas todas as demais polaridades, interagindo dentro da unidade do Self. É difícil encontrar uma obra de Jung onde ele não ressalte a importância da bipolaridade psíquica operando dentro da unidade do Self. Nesse sentido, Jung e Sabina são monistas, mas incluem no monismo processual, a dualidade Vida e Morte em permanente interação dialética na geração de todo fenômeno psíquico. Por isso, afirmar, como Freud fez acima, que Jung, ao definir a libido como energia psíquica, se tornou monista, não está inteiramente correto. A resposta correta me parece ser sim e não. Sim porque, ao identificar a libido com a energia psíquica, Jung se tornou monista, pois unificou todas as funções psíquicas dentro do Self. Não porque Jung não renegou a dualidade das funções psíquicas. Pelo contrário, Jung sempre afirmou e reafirmou a existência das polaridades dentro de todos os símbolos, dos arquétipos e do próprio Self. Por conseguinte, na essência de sua obra, Jung operou a dualidade dialeticamente dentro da unidade.

Como procurarei demonstrar a seguir, este posicionamento tão diferente de Jung e de Freud diante da psique pode ser atribuído a duas formas diferentes de a consciência funcionar. Freud, a partir da posição polarizada, característica do Arquétipo Patriarcal. Jung a partir da posição dialética, característica do Arquétipo da Alteridade. Como veremos cada posição está correta, dentro da sua maneira de ver e, também errada, quando pretende ser a única válida e quer usurpar ou invalidar as demais posições. A posição polarizada é necessária para se compreender a elaboração do Arquétipo do Coniunctio na formação do Eu pelo Complexo Parental (Complexo de Édipo). Já a posição dialética é imprescindível para a compreensão e elaboração do Arquétipo do Coniunctio na formação do Eu na adolescência e na segunda metade da vida (Complexo Conjugal no Processo de Individuação).

Para tudo isto melhor compreender, temos que estudar a questão das posições arquetípicas da consciência. Ao fazê-lo, abordaremos conceitos básicos da Psicologia Analítica e da Psicanálise, incluindo a Teoria das Relações Objetais de Melanie Klein.

Este Simpósio, comemorativo dos 90 anos do relacionamento de Freud e Jung, me parece uma ocasião propícia para colocar determinadas questões referentes às diferenças entre as obras destes dois grandes gênios da Psicologia do século XX, sem o que não poderemos compreender em profundidade seu diferente enfoque das polaridades, inclusive da polaridade Vida-Morte. A compreensão desta diferença é também da maior importância para se compreender melhor a concepção do incesto no Complexo de Édipo da Psicanálise e a descrição arquetípica do incesto na Psicologia Analítica.

Minha vida profissional desenvolveu-se nesta segunda metade do século, na qual os conflitos emocionais, entre os seguidores da Psicanálise e da Psicologia Analítica foram aos poucos arrefecendo. Desde minha monografia de graduação em Zurique (BYINGTON, 1965), considero as obras de Jung e Freud complementares. Por isso mesmo, sempre achei que, apesar da animosidade tradicional entre as duas escolas, seus conteúdos naturalmente se encontrariam no Self Cultural, produzindo novas sínteses e conceitos para a Psicologia. No entanto, observei, com o passar do tempo, que esta síntese espontânea estava de fato ocorrendo, mas, frequentemente, sem a preservação das contribuições essenciais da Psicanálise e da Psicologia Analítica. O que se observa nestas sínteses espontâneas é uma colcha de retalhos que mistura o referencial arquetípico, o conceito de Sombra, as defesas, as técnicas expressivas e o desenvolvimento da personalidade de forma confusa. A mistura com as contribuições de outras correntes psicológicas confundiu ainda mais esta colcha de retalhos, na qual, frequentemente se perde a articulação conjunta das grandes descobertas das defesas e da transferência defensiva na teoria da fixação e da regressão da Psicanálise e dos arquétipos e da transferência criativa, dentro do Processo de Individuação, da Psicologia Analítica.

Para aproximarmos estes conceitos teoricamente e, ao mesmo tempo, evitar a Babel da colcha de retalhos, necessitamos de um referencial teórico que os possa abranger de forma coerente e não redutiva. A Psicologia Analítica não possui este referencial porque Jung descreveu o Processo de Individuação na segunda metade da vida e não se ocupou sistematicamente da formação e transformação arquetípica do Eu e da Sombra desde o início da vida. A Psicanálise também não possui este referencial porque descreveu a formação da personalidade somente até a puberdade e o embasou num referencial dominantemente genético, infantil, literal, pessoal e não arquetípico. Cada corrente descreveu a natureza da psique em função do que descobriu e estudou. É óbvio que o referencial de uma não está apto para englobar o que a outra descreveu e vice-versa, posto que o que cada uma descreveu envolve etapas da vida e fenômenos psíquicos muito diversos. O que mais faltou à Psicanálise, a meu ver, foi o conceito de arquétipo. Já na Psicologia Analítica, o que mais faltou foi a ampliação do conceito de arquétipo para englobar as defesas e a formação e interação da polaridade Eu-Outro na consciência e na Sombra (inconsciente).

Para descrever a formação e transformação da polaridade Eu-Outro na consciência e na Sombra durante toda a vida, por intermédio das vivências pessoais percebidas arquetipicamente, desenvolvi uma série de conceitos, que diferem da Psicanálise e da Psicologia Analítica, principalmente pela ampliação dos conceitos por elas formulados. Reuni estes conceitos na disciplina que denomino Psicologia Simbólica. Sua finalidade não é discordar da Psicologia Analítica nem da Psicanálise, e sim preservar, reunir coerentemente e continuar desenvolvendo o que elas têm de imensamente importante para a Psicologia. Veremos que diferenças tão fundamentais quanto os conceitos de Vida-Morte, de parricídio e de incesto não foram devidamente compreendidas por Freud e Jung devido às limitações do seu referencial teórico.

Vejamos os principais conceitos da Psicologia Simbólica que nos permitirão discutir e reunir conteúdos e diferenças da Psicologia Analítica e da Psicanálise, englobando os pressupostos teóricos destas disciplinas.

1.1. A Teoria do Inconsciente Coletivo

Segundo me parece, Jung seguiu Freud indevidamente ao reduzir o conceito de Arquétipo ao inconsciente. De fato, qualquer pessoa adulta pode optar, isto é, escolher conscientemente um determinado padrão arquetípico para elaborar determinada situação. Posso optar para elaborar uma tarde de domingo, por exemplo, de forma dominantemente matriarcal, com um banho de piscina e um bom churrasco ou de maneira dominantemente patriarcal, organizando meus documentos para o Imposto de Renda. Poderia ainda optar pela dominância de alteridade e dar uma palestra num centro comunitário sobre as várias polaridades do crescimento da criminalidade na cidade. Poderia também optar pela dominância do Arquétipo da Totalidade e passar a tarde meditando de forma contemplativa. Assim, a polaridade Eu-Arquétipo permite uma certa participação, isto é, um livre arbítrio relativo do Eu. Se os arquétipos fossem exclusivamente inconscientes, isto jamais seria possível. Por isso, ampliei o conceito de Arquétipo para abranger também o consciente (BYINGTON, 1996). Nesse caso, os arquétipos tornam-se a base da Psique Coletiva, que engloba as características conscientes e inconscientes dos símbolos e não exclusivamente inconscientes como acontece na Teoria do Inconsciente Coletivo formulada por Jung.

1.2. O Conceito de Psique

A psique é concebida como o Cosmos e a diferenciação da consciência como uma diferenciação deste próprio cosmos, através da sua humanização (CHARDIN, 1955). Neste caso, desaparece a dualidade mente-corpo e psique-natureza como uma realidade profunda. Estas polaridades só existem no que se referem a polaridade Eu-Outro mas, na dimensão arquetípica além do Eu e do Outro, elas não existem como polaridades. Apesar de Jung ter frequentemente considerado a realidade única da psique e da matéria, ele não chegou a uniformizar sua teoria, correlacionando esta polaridade exclusivamente com a polaridade Eu-Outro. De fato, inúmeras vezes, Jung formulou a psique separada da matéria, posto que as reunia através dos conceitos de sincronicidade (JUNG, 1960a), psicoide (JUNG, 1960b) e unus mundus (JUNG, 1964). Quando, porém, conceituamos de início, a psique como a mesma coisa que o conceito de Cosmos para a ciência e o conceito de Deus para a religião, os conceitos de unus mundus, psicoide e sincronicidade são úteis e dinâmicos, tão somente para descrevermos a percepção da realidade comum do Eu com o Outro, mas nada acrescentam quanto a essência da natureza do Self.

Apesar de Jung, que eu saiba, nunca ter formulado a psique como sinônimo do Cosmos, sua vivência da psique muito se aproxima desta ideia, quando, por exemplo, escreveu: "Referência deve ser feita ao conceito hindu de Atman, cuja fenomenologia pessoal e cósmica é um equivalente perfeito do conceito psicológico de Self e do Filius Philosophorum (pedra filosofal): o Self é o Eu e o Não Eu, subjetivo e objetivo, individual e coletivo" (JUNG, 1946).

1.3. A Interação Eu-Arquétipo

A Psicologia Simbólica, por princípio, afirma a permanente interação do Eu com os Arquétipos, exercida por intermédio dos símbolos. Pelo fato de não haver descrito a formação do Eu a partir dos arquétipos, desde o início da vida, Jung, frequentemente, descreveu a fenomenologia dos arquétipos separada daquela do Eu e vice-versa. Para a Psicologia Simbólica o Eu é arquetípico e expressa o processo de atualização do potencial do Arquétipo Central.

1.4. A Relação Eu-Outro

A Psicologia Simbólica descreve a formação e a transformação da identidade do Eu inseparavelmente da formação e transformação da identidade do Outro, a partir dos símbolos coordenados pelos arquétipos. Assim, para a Psicologia Simbólica, o Eu não é o centro da consciência, tal como Jung o descreveu na Psicologia Analítica (JUNG, 1967). Esta centralização do Eu na consciência me parece ser um viés narcísico da Psicanálise, que Jung também acompanhou indevidamente. Este viés explica a importância exagerada dada ao narcisismo na Psicanálise, em detrimento do ecoísmo. Para a Psicologia Simbólica, os polos da polaridade ecoísmo-narcisismo têm igual importância para o desenvolvimento da consciência e para caracterizar diferentes situações de dominância, ora do Eu, ora do Outro nos seus relacionamentos (MONTELLANO, 1996).

1.5. Os Símbolos e Funções Estruturantes

A Psicologia Simbólica descreve os símbolos como símbolos estruturantes e as funções psíquicas como funções estruturantes, ambos coordenados pelos arquétipos para formar a identidade do Eu e do Outro na consciência. Neste caso, a Persona e a Sombra são concebidas como funções estruturantes. A Persona, de um modo geral, empregando as funções estruturantes sociossintônicas e a Sombra, de um modo geral, empregando as funções estruturantes sociodistônica ou outros símbolos e funções estruturantes que, devido às condições do processo existencial, não puderam ser elaborados na consciência.

1.6. As Funções Estruturantes Criativas e Defensivas

A Psicologia Simbólica reelabora o conceito de mecanismo de defesa do Ego da Psicanálise e descreve as funções estruturantes criativas e as funções estruturantes defensivas, ambas consideradas de natureza arquetípica e atuando na elaboração simbólica. As funções estruturantes criativas englobam as pulsões da Psicanálise e expressam a elaboração simbólica livremente na consciência, enquanto que as funções estruturantes defensivas expressam símbolos resultantes de uma elaboração simbólica fixada e alijada da consciência, de forma inadequada, sujeita à compulsão de repetição e resistente à conscientização plena como descreveu a Psicanálise. As funções estruturantes criativas e defensivas são estruturalmente as mesmas e só diferem em função de manterem a elaboração simbólica dominantemente na consciência (funções estruturantes criativas) ou de impedir seu acesso à consciência e mantê-la dominantemente inconsciente (funções estruturantes defensivas). Temos assim, por exemplo, a projeção criativa e defensiva, a agressividade criativa e defensiva e, até mesmo, as funções estruturantes da Vida e da Morte atuando de forma criativa ou defensiva, como veremos. Esta conceituação nos permite afirmar que "as defesas são os arquétipos da Psicanálise". Parece-me que se a psicologia dinâmica iniciada por Freud tivesse centralizado a sua teoria na polaridade das funções estruturantes criativas e funções estruturantes defensivas, em vez de simplesmente na polaridade consciente-inconsciente, sua pujança conceitual teria sido muito maior.

1.7. O Conceito de Sombra Normal e Patológica na Psicologia Simbólica

A Sombra é concebida como uma função estruturante expressiva da elaboração simbólica incompleta e defeituosa. A Sombra abriga sempre também um Eu e um Outro, que nos dá uma vivência de identidade expressa de forma inadequada e dominantemente inconsciente. Nesse sentido, a psicodinâmica da Sombra de uma pessoa ou cultura só pode ser compreendida dentro da história do processo de elaboração simbólica desta pessoa ou cultura. A Psicologia Simbólica diferencia uma Sombra normal e uma patológica, ambas expressas por defesas. Na Sombra normal, as estruturas defensivas são circunstanciais, oferecem pouca resistência e logo passam a estruturas criativas quando confrontadas pelo Eu consciente. Na Sombra patológica, ao contrário, as estruturas defensivas são crônicas e empedernidas, inconscientemente entrincheiradas e oferecem grande resistência para serem confrontadas pelo Eu da consciência, como tão bem descreve a Psicanálise. A não compreensão da formação arquetípica do Eu e da Sombra no processo de elaboração simbólica do Self levou muitos Junguianos a idealizarem o Self como algo exclusivamente bom. Isto impede qualquer compreensão arquetípica psicodinâmica da psicopatologia.

1.8. O Conceito de Símbolo

Devido à conceituação da psique como sinônimo do Cosmos, a Psicologia Simbólica define o símbolo como a unidade que reúne o subjetivo e o objetivo na psique. O símbolo é também a raiz arquetípica que forma e transforma a identidade do Eu e do Outro na consciência e na Sombra, daí ser chamado símbolo estruturante.

1.9. O Eixo Simbólico

A Psicologia Simbólica conceitua o Eixo Simbólico, descrito como Eixo Ego-Self por Erich Neumann, intermediando três instâncias: Consciência/Sombra, Símbolos e Funções Estruturantes/Arquétipos, cuja totalidade compõe o Self. Desta maneira, a Função Transcendente descrita por Jung (1960c) é a essência do Eixo Simbólico (Gráfico 1).

 

 

1.10. Processo de Elaboração Simbólica

A Psicologia Simbólica centraliza toda a atividade psíquica no Processo de Elaboração Simbólica, que ocorre na interação das três instâncias do Eixo Simbólico do Self. Cada símbolo vivenciado deve sempre ser submetido à elaboração simbólica para ser integrado na personalidade e transformar a identidade do Eu e do Outro na consciência. É a elaboração simbólica que produz a interpretação e não vice-versa. Os conceitos de fixação e de regressão da Psicanálise são aqui considerados aspectos defensivos da elaboração simbólica criativa normal. A regressão é a função estruturante defensiva, cuja função estruturante criativa correspondente faz parte da centroversão criativa descrita por Erich Neumann. A regressão é uma das formas da centroversão defensiva. A centroversão é a expressão de toda elaboração simbólica, porque todos os símbolos ao serem elaborados expressam, em última instância, o todo da personalidade, que é o Self, e o seu centro regulador, que é o Arquétipo Central.

A polaridade redutiva-prospectiva empregada por Jung para representar a diferença entre a elaboração dos símbolos da infância (redutiva) e do futuro (prospectiva) me parece indiscriminada. As associações dos símbolos com vivências passadas, presentes ou com a possibilidade de vivências futuras são ampliações da elaboração simbólica. Todas essas associações podem ser empregadas de forma redutiva ou prospectiva. Se amarramos os significados de um símbolo exclusivamente e causalmente a um significado presente, passado ou à possibilidade de um significado futuro, estamos sendo redutivos. Mas, se os empregamos como uma ampliação, que abre os caminhos para outros significados, estamos sendo prospectivos. Não há dúvida de que as fixações reduzem e até literalizam os significados simbólicos, mas isto não significa que a elaboração das fixações e sua interpretação sejam redutivas. A elaboração das fixações pode ser prospectiva, depende do terapeuta. O redutivismo dos símbolos só tem razão de ser quando necessitamos usá-los como sinais. A elaboração simbólica pode enfatizar certos significados, mas, em última análise, ela deve ser sempre prospectiva, para nos conduzir sempre e de novo pelas veredas do grande sertão.

1.11. A Função Avaliadora

A Psicologia Simbólica descreve a correspondência arquetípica do Superego na Psicanálise com a função avaliadora do processo de elaboração simbólica. A função avaliadora é uma função estruturante e, por isso, como as demais funções estruturantes, ela é arquetípica e pode operar como função avaliadora criativa e defensiva. A função avaliadora é a função do Self que afere a autenticidade existencial da elaboração simbólica e sua adequação a cada momento da vida, em função da atualização do potencial único do Arquétipo Central para cada pessoa. O complexo de castração é a expressão da função avaliadora vivenciada na posição polarizada passiva do Complexo de Édipo.

1.12. Quatérnio Arquetípico Regente

A Psicologia Simbólica agrupa os arquétipos à volta do Quatérnio Arquetípico Regente, formado pelo Arquétipo Matriarcal, Arquétipo Patriarcal, Arquétipo da Alteridade (que inclui os Arquétipos da Anima e do Animus) e o Arquétipo da Totalidade. Nesta perspectiva, estes quatro arquétipos regentes, circundados pelos demais arquétipos, operam à volta do Arquétipo Central (Gráfico 2).

1.13. As cinco posições arquetípicas de relação Eu-Outro

A Psicologia Simbólica descreve cinco posições da relação Eu-Outro, durante o Processo de Elaboração Simbólica, que formam estados diferentes de consciência e permitem o embasamento arquetípico da Teoria das Relações Objetais da Escola Inglesa de Psicanálise originada na obra de Melanie Klein. Essas cinco posições são as seguintes:

A - Posição Indiferenciada - O Eu e o Outro se acham indiferenciados dentro do símbolo e do Self. Corresponde ao estado urobórico descrito por Erich Neumann.

B - Posição Insular - Nesta posição psicológica, o Eu e o Outro convivem em ilhas de consciência. Numa ilha, a criança pode vivenciar o ódio pela mãe e noutra, o amor. Normalmente, não se trata de um split, e sim de um estado de consciência normalmente insular. Nos estados patológicos, surgem as defesas dissociativas ou splits entre as ilhas ou dentro delas. A denominação insular ou ilhada chama a atenção para o fato de que essas ilhas Eu-Outro conscientes são cercadas de inconsciência, como as ilhas são cercadas pelas águas do mar. Assim, estas ilhas não estão totalmente separadas, pois são dinamicamente articuladas entre si através do inconsciente, dentro do Self.

A posição insular é característica do estado de consciência, que opera pela dominância da coordenação do Arquétipo Matriarcal, como ocorre na primeira infância, no animismo e nas religiões politeístas. A proximidade da relação Eu-Outro dentro destas ilhas de consciência estabelece uma intimidade binária sensual e emocional, que mantém a consciência operando muito próxima das reações primárias instintivas de prazer/desprazer. A posição insular, na infância, foi denominada de estado libidinal perverso-polimorfo por Freud e corresponde também, durante a vida à consciência lunar ou matriarcal, descrita por Erich Neumann. Nesta posição, formam-se as identificações primárias isoladamente com o pai, a mãe ou outras relações íntimas, não só nos seus aspectos literais e explícitos, mas também nas suas características metafóricas conscientes e inconscientes, da Sombra normal e patológica.

Muitos pesquisadores me parecem subestimar a posição insular quanto à sua capacidade de apreensão das características simbólicas da vida psíquica. Este erro, a meu ver, advém da confusão entre capacidade de conscientizar e de explicar as características dos símbolos, por um lado, para o que a posição insular é limitada, e por outro lado, viver as características dos símbolos, sobretudo corporalmente, para o que a posição insular é muito dotada. Muitos pediatras, hoje, já associam muitas disfunções de bebês, como por exemplo, certas disfunções pulmonares, cutâneas e gastrointestinais, além das causas médicas tradicionais, também com características simbólicas da vida psíquica à sua volta. Assim, podemos até mesmo dizer que, em matéria de quantidade e intensidade de apreensão, registro e expressão de características simbólicas, conscientes, mas principalmente inconscientes, a função insular não só não é menos capaz, como é muito mais capaz que as outras posições. Por isso, a estruturação da identidade na infância recebe o impacto simbólico estruturante com consequências muito maiores do que nas outras etapas da vida. A explicação para isto é que as outras posições são mais abstratas e mais capazes de articular a elaboração simbólica de forma mais refinada e com maior proporção consciente que a posição insular e, exatamente por abstrair mais, perdem muitos componentes dos símbolos durante a elaboração simbólica. Esta maior capacidade de intimização da posição insular explica porque é nela que a função estruturante da clarividência, da telepatia e da mediunidade tem sua maior pujança.

C - Posição Polarizada - Nesta posição, o Eu e o Outro convivem em estados psíquicos organizados para abranger polos opostos. O amor e o ódio, o certo e o errado, por exemplo, convivem com o mesmo símbolo, mas de forma codificada e organizada, dentro de um todo coerente e dogmático. O mesmo Eu pode amar e odiar, errar e acertar, o mesmo Outro, mas tudo está determinado no seu quem, como e quando. A posição polarizada é vivenciada num estado ternário e para tal, possui abstração maior que a posição insular que é binária. Esta posição é característica do estado de consciência autocrático, que opera pela dominância da coordenação do Arquétipo Patriarcal, como ocorre nas religiões monoteístas. Ela corresponde à consciência solar ou patriarcal de Erich Neumann e é a posição que, na sua forma passiva, forma a identidade do Eu e do Outro na infância por intermédio da função estruturante do triângulo Edipiano.

D - Posição Dialética - Nesta posição, o Eu e o Outro convivem em estados psíquicos caracterizados pela relação dialética quaternária entre os opostos. Trata-se da relação do encontro pleno entre o Eu e o Outro, no qual, os símbolos podem ser elaborados até ao máximo de seu potencial metafórico. Ela só pode existir num grau de abstração maior que as duas posições anteriores. Digo que esta posição é quaternária porque, no caso da polaridade Eu-Outro, o Eu pode perceber a sua Sombra, tanto quanto a Sombra do Outro e vice-versa. A posição dialética é capaz de perceber e operacionalizar significativamente as variações de múltiplo retorno entre quaisquer polaridades de forma sistêmica (multiple feed-back system). No caso da polaridade Eu-Outro, o Eu pode perceber a sua Sombra, tanto quanto a Sombra do Outro e vice-versa. Esta maior abstração permite à posição dialética incluir características de intimidade entre o Eu e o Outro da posição insular e características de permanência e coerência da identidade do Eu e do Outro da posição polarizada. Assim, a posição dialética se torna capaz de coordenar o encontro do Arquétipo Matriarcal e do Arquétipo Patriarcal no processo de elaboração simbólica. A posição dialética é característica dos estados de consciência coordenados pelo Arquétipo da Alteridade, que engloba os Arquétipos da Anima no homem e do Animus na mulher. Jung percebeu em parte estas características dos arquétipos da Anima e do Animus, quando os descreveu como arquétipos mediadores da polaridade consciente-inconsciente (JUNG, 1993a; 1993b; 1993c; 1993d). A posição dialética é a posição da consciência característica da criatividade científica e artística, da psicoterapia de base analítica, das interações do ecossistema, da imunologia, do amor, da democracia e das religiões que interagem monoteísmo e politeísmo, como o panteon assírio-babilônico, greco-romano, judaico-cabalístico e cristão.

E - Posição Contemplativa - Nesta posição, o Eu e o Outro são percebidos junto com as demais polaridades dentro da vida em tal grau de abstração e desapego que parece à consciência que ela não tem mais Eu. Trata-se do estado de consciência de maior abstração no processo de elaboração simbólica, o que lhe confere uma característica unitária. De fato, no Budismo, no Induísmo e no Taoismo, nos quais esta posição é muito praticada nos rituais de meditação, ela é muitas vezes descrita pelos mestres, como "a consciência sem Eu". É evidente que o Eu continua a existir, mas cada vez mais percebido junto com o Outro no processo Cósmico. A posição contemplativa corresponde aos estados de consciência coordenados pelo Arquétipo da Totalidade.

 

2. As Atitudes Ativa e Passiva e as Posições Eu-Outro

Cada uma das cinco posições acima descritas, geralmente, começa a ser exercida na elaboração simbólica, tendo o Eu na atitude passiva e o Outro na atitude ativa. Com o desenrolar do processo, esta atitude do Eu e do Outro tende a se inverter. Os símbolos e a função estruturante da alimentação são um bom exemplo na vida da criança. No mamar, o Eu da criança é incomparavelmente menos ativo que o Eu da mãe, dona do seio ou da mamadeira. Durante toda a vida, esta atitude tenderá a ir se invertendo para tornar o Eu cada vez mais agente da função de alimentação. Inicialmente, a criança chupa o dedo, depois o objeto de transição, um dia dá mamadeira às bonecas, aprende a fazer brigadeiros e, bem mais tarde, dá de mamar ao seu próprio neném ou se torna um famoso cozinheiro. No aprendizado também. De início o aluno sabe pouco e o professor é o detentor do saber. Durante a vida, o exercício da função estruturante do aprendizado tenderá a tornar o Eu do aluno cada vez mais determinante. A passagem da atitude passiva para a ativa é proporcional à integração dos significados simbólicos pela consciência (Eu-Outro). Como veremos, a dominância de certas posições da consciência e seus arquétipos correspondentes são elaborados dominantemente de forma passiva em certa fase da vida e de forma dominantemente ativa na fase seguinte.

 

3. As Posições Eu-Outro e as Etapas da Vida

Por serem etapas do processo de elaboração simbólica para a formação e transformação da identidade do Eu e do Outro, as posições arquetípicas Eu-Outro fazem parte da elaboração de todos os símbolos e funções estruturantes. O período de elaboração de um símbolo estruturante pode durar horas, dias, meses, anos, décadas ou toda uma vida, como é o caso dos símbolos do pai e da mãe, com seus incontáveis significados. É fato conhecido, como somente quando passamos à posição ativa de pais e até avós é que podemos complementar a elaboração de muitos dos símbolos que vivemos com nossos pais na posição passiva durante nossa infância. O Complexo Parental, por exemplo, elaborado de forma passiva na infância, como no Complexo de Édipo, continua sendo elaborado de forma ativa na adolescência e na vida adulta. As vezes, chegamos à posição contemplativa com determinados símbolos estruturantes, mas quando encontramos a mesma função estruturante, ativada com outros símbolos, devemos tudo recomeçar pela posição indiferenciada. É o caso dos relacionamentos amorosos, ou do nascimento de segundo, terceiro ou quarto filho, por exemplo.

É facilmente comprovável que determinadas posições Eu-Outro contribuem de forma dominante na formação da identidade do Eu e do Outro nas cinco etapas da vida: infância, adolescência, idade adulta, maturidade e velhice. Por este fato, podemos cotejar as principais etapas simbólico-arquetípicas do desenvolvimento da personalidade com determinadas posições arquetípicas da relação Eu-Outro nas suas atitudes passiva e ativa. Farei isto a seguir de forma sucinta para exemplificar as diferentes influências das posições Eu-Outro na formação da consciência e na teoria psicológica.

 

4. A Diferenciação da Consciência do Bebê

O período inicial da vida psíquica é dominado pela posição indiferenciada. Aos poucos, no primeiro ano de vida, surge a presença significativa da posição insular passiva e, até mesmo, da posição polarizada passiva, no caso da orientação pediátrica ser dominantemente patriarcal. A posição indiferenciada continuará muito importante durante toda a vida e tenderá a ser dominante no início de cada nova elaboração simbólica. O segundo e o terceiro ano caracterizam-se pela dominância da posição insular passiva, que começa a apresentar de forma crescente também a atitude ativa. A posição insular, aqui, nos anos futuros até a adolescência e, mesmo depois, será a grande responsável pela formação da identidade do Eu e do Outro pela identificação direta com as figuras mais significativas do convívio íntimo, sejam elas os pais, tios, avós, irmãos, primos, amigos e empregados tanto no nível literal quanto no metafórico. A realidade simbólica seja ela fantasia ou apreensão da realidade objetiva implícita contribui para formar a identidade, tanto ou mais que a realidade exclusivamente objetiva explícita. Assim, nos primórdios da vida, a fantasia e a função estruturante da vidência, da telepatia e da mediunidade podem já ter um papel de destaque na apreensão das características psíquicas dentro do Self familiar, que caracteriza o ecossistema psicológico do bebê. Às vezes, forma-se desde cedo, na posição insular, por intermédio do ideal dos pais, uma identificação com membros da família já falecidos, mas de grande significado na árvore genealógica devido ao papel que desempenham na fantasia da família. Da mesma forma ocorre com a identificação direta com líderes políticos ou religiosos, admirados e cultuados pela família, ou, mais tarde, pela comunidade.

 

5. Do Segundo Ano à Puberdade

As identificações insulares ou pré-edípicas já tem um papel muito importante na formação de limites, simplesmente a formar o Eu e o não Eu, o Outro separadamente. A regulamentação oral da fome e da saciedade, do prazer e do desprazer, e mais tarde, a regulamentação esfincteriana, por exemplo, tem papel central na formação dos limites.

Lado a lado com a posição insular que continua na atitude passiva, mas que cresce paulatinamente na sua atitude ativa, estabelece-se a presença importante da posição polarizada passiva, ou seja, do Complexo de Édipo, introduzido como função estruturante pelo símbolo da "cena primária". A intensidade desta posição depende muito da intensidade do Arquétipo Patriarcal na família e na sociedade em questão. A posição polarizada passiva na infância elabora dominantemente o Complexo de Édipo, que Freud considerou o principal símbolo estruturante da personalidade, expresso pelas funções estruturantes da afetividade (incesto) e da agressividade (parricídio). A posição polarizada é caracterizada como passiva no Complexo Parental porque os pais têm o papel dominante na elaboração simbólica. Durante a adolescência inicia-se a inversão e na vida adulta os filhos passarão a ser pais e exercer a atitude ativa na posição polarizada do Complexo Parental.

Uma das principais consequências da ação da posição polarizada passiva na infância é a aprendizagem do desapego à posição insular, ou seja, o complexo parental passa a atuar como um condicionador da tríade que se impõe à díade. A forma insular ou matriarcal de relacionamento é cotejada e limitada pela forma polarizada ou patriarcal. As identificações primárias ou insulares são expostas às identificações edipianas ou polarizadas, nas quais o Eu se transforma em função de uma polaridade (pai-mãe ou outro qualquer), na qual o vínculo entre os polos é tão importante, quanto o vínculo entre o Eu e cada polo. Este vínculo na posição polarizada passiva (Complexo de Édipo), ao mesmo tempo, reúne e diferencia. Por exemplo, no caso de uma determinada mãe ser do tipo sentimento e o pai do tipo pensamento, o Eu do filho aprende a relacionar o afeto do intelecto e simultaneamente os diferencia, na medida em que forma a identidade com sua própria tipologia. Os diferentes papéis familiares, vivenciados dentro da posição polarizada passiva, passam todos a funcionar como uma fonte de identificações e de limites do Eu e do Outro.

 

6. As Identificações Primárias e as Identificações Edipianas

A Psicologia Simbólica separa claramente as identificações pré-edípicas e edípicas durante o curso do processo de elaboração simbólica em função da diferença entre a posição insular e a posição polarizada. Para a Psicologia Simbólica, isto é fundamental, pois se trata de diferenciar a posição insular (Arquétipo Matriarcal) e a posição polarizada (Arquétipo Patriarcal) na formação da identidade. De fato, para a Psicologia Simbólica, as identificações primárias não são edípicas, pelo fato de não ocorrerem dentro do triângulo estruturante do Complexo Parental, que forma o Complexo de Édipo. Dentro desta perspectiva, as identificações primárias são pré-edípicas, pois ocorrem dentro da posição insular binária expressiva do Arquétipo Matriarcal, enquanto que as identificações estruturadas pelo Complexo de Édipo seja ele composto pelo casal parental ou outra díade qualquer, ocorrem dentro da posição polarizada ternária expressiva do Arquétipo Patriarcal.

A diferenciação das identificações insulares das identificações Edipianas é muito importante, tanto para a compreensão do desenvolvimento normal, quanto para a compreensão da formação das defesas que darão origem aos quadros patológicos. É que, o vínculo na identificação insular, pelo fato de ser binário, é direto. Já o vínculo da identificação edípica pelo fato de ocorrer dentro da posição polarizada que é ternária, estabelece sempre um relacionamento à três, o que confere ao vínculo entre o dois e o três, seja ele entre pai e mãe ou entre outra díade qualquer, uma grande importância estruturante.

A relação edípica que regulamenta o incesto e o parricídio, percebida arquetipicamente dentro da posição polarizada passiva, se torna assim uma relação ternária estruturante da interação do Eu com a afetividade e a agressividade e outras polaridades regulamentadas por um código que abrange o que é de uma forma e o que é de outra, junto com o que pode e o que não pode ser desejado. Trata-se assim da estruturação da polaridade Eu-Outro, por intermédio da sua relação com o ser de uma forma e o ser de outra forma, o sim e o não, sempre articulados.

É importante registrar que a codificação do sim e do não que forma a conduta ética do indivíduo e da sociedade não depende exclusivamente da posição polarizada e do Arquétipo Patriarcal. A dominância da posição insular e do Arquétipo Matriarcal na elaboração simbólica também estrutura a relação Eu-Outro com o sim e o não e forma a consciência ética, só que o faz muito mais pela imitação e pelo costume do que pela obediência a princípios legais abstratos, como tende a ocorrer na posição polarizada patrocinada pelo Arquétipo Patriarcal. É importante lembrar aqui que o código de parentesco que limita o incesto e permite o casamento entre primos opostos em inúmeras sociedades tribais, provavelmente formou-se através de séculos e impôs-se paulatinamente pelos costumes coordenados geralmente pela dominância da posição insular e da dinâmica matriarcal.

 

7. A Puberdade e a Crise da Adolescência

Com a maturação das gônadas, ativam-se intensamente os Arquétipos da Anima no rapaz e do Animus na jovem, ou seja, intensifica-se o Arquétipo da Alteridade e a posição dialética, nesta fase, dominantemente na atitude passiva. A crise da adolescência, por sua vez, submete as identificações insulares e edípicas a uma nova pressão transformadora em função da entrada em cena do Arquétipo da Alteridade (Anima e Animus), que lançará na personalidade a semente da convocação para a campanha da construção da identidade profunda e única, que Jung descreveu, na segunda metade da vida, como o Processo de Individuação. Pelo fato do dinamismo de alteridade ser quaternário, sua pressão estruturante força o desapego das identificações insulares e das identificações edípicas, ambas passivas. Acompanhando a ativação do Arquétipo da Alteridade na atitude passiva, ativam-se as posições insulares e polarizadas na forma ativa. O Complexo Parental vivido de forma passiva na infância, como o Complexo de Édipo descrito por Freud, se transforma na adolescência através da alteridade e da morte simbólica dos pais, para ser vivido na vida adulta de forma ativa, só que desta vez, já modificado pelas características adquiridas na nova geração. A Psicologia Simbólica caracteriza a Crise da Adolescência como um grande marco no Processo de Individuação, que será reintensificado outra vez na metanoia ou crise do meio da vida, como descreveu Jung. A grande diferença destas duas fases é que, na Adolescência, a posição dialética e o Arquétipo da Alteridade predominam na elaboração simbólica de forma dominantemente passiva, enquanto que na crise dos quarenta, eles ressurgem de forma dominantemente ativa.

A identidade do Eu e do Outro e toda a personalidade entram em crise na adolescência, porque a vocação ou chamado para a construção da identidade individual profunda entra em choque com as identidades primárias insulares e edípicas estabelecidas durante a infância por intermédio dos modelos tradicionais dominantemente parentais. A fase de latência pré-puberal descrita pela Psicanálise e que se caracteriza pela acomodação sócio-familiar das identificações primárias e edipianas, a partir da puberdade, será sacudida por um terremoto psicológico. Esta grande crise, que intermedia a infância e a idade adulta, tem por finalidade duas grandes forças psíquicas. A primeira é o desapego às identificações formadas na infância. A segunda é a introdução das características da identidade individual profunda. Assim, a primeira se expressará essencialmente pela contestação e a segunda pela criatividade ou inovação. A patota adolescente é o exército organizado para empreender a implantação dessas inovações em duas frentes. No nível coletivo, ela consistirá em empunhar a bandeira revolucionária do novo contra o velho, da inovação contra a tradição. No nível individual, a luta se dará entre as identificações tradicionais formadas na infância e as características da identidade profunda emergentes nas escolhas amorosas e nas vocações profissionais, políticas, religiosas, existenciais enfim. Estas funções estruturantes são fontes de intensa diferenciação da individualidade. Sua existência, porém, é relativa e não significa que elas sempre consigam seus propósitos. O apego à indiferenciação, às identificações primárias e edípicas forma condicionamentos muito difíceis de serem ultrapassados para se conseguir a diferenciação crescente da personalidade.

O principal conflito entre Freud e Jung foi reduzido por muitos pesquisadores ao nível pessoal do Complexo de Édipo. Jung, dezenove anos mais moço, foi durante cinco anos o filho seguidor dileto de Freud. Seu crescimento teria motivado o conflito e a ruptura. Componentes parricidas-filicidas mal-elaborados teriam atuado defensivamente para destruir a relação. Há pesquisadores que favorecem Freud qualificando Jung de imaturo e parricida e há os que favorecem Jung, imputando a Freud o filicídio de seus seguidores mais criativos como Jung e Adler. Concordo que elementos da identificação edípica possam ter desempenhado papel importante no conflito e na ruptura. Contudo, mesmo presentes, estes componentes seriam pessoais e circunstanciais e nada contribuem para compreender as diferenças de suas teorias. Existe outro componente, referente às posições Eu-Outro na consciência que trazem à baila o choque frontal entre as duas teorias.

A Crise da Adolescência, dominada pela posição dialética e pelo Arquétipo da Alteridade, estabelece um novo padrão muito diferente para a interação Eu-Outro e para todas as demais polaridades. Trata-se da posição de maior capacidade de desenvolvimento simbólico, devido exatamente ao seu funcionamento quaternário. É importante lembrar aqui que Jung descreveu o quatérnio como um importante símbolo da totalidade do Self. O nível quaternário de elaboração simbólica da posição dialética é, assim, a expressão máxima da capacidade produtiva do Self. Neste padrão de relacionamento dialético e quaternário, o Eu se abre para ser ele e também qualquer Outro. O mesmo acontece com o Outro. A alteridade é o padrão arquetípico da Democracia, do amor, da criatividade artística e científica. Quando pesquiso algo, admito de antemão que minha opinião, ou seja, meu Eu, acerca do Outro possa mudar na direção que a pesquisa me levar. Nesse evento, o Eu de um cientista se entrega à vida de forma tão absoluta que se sujeita inteiramente a morrer e renascer com uma verdade, isto é, com uma identidade e visão de mundo inteiramente diferentes daquelas com as quais ele iniciou a pesquisa. É este padrão que emerge de forma passiva para o Eu na adolescência. Digo de forma passiva porque o Eu não busca exercê-lo ativamente, mas assim mesmo ele acontece.

Quando um casal de adolescentes se apaixona, cada um mergulha no mistério da vida impulsionado pelo Arquétipo da Alteridade e pode emergir desse mergulho com a identidade antiga morta e outra inteiramente diferente no seu lugar. Morre a relação infantil com os pais. Nasce a relação adulta com o mundo. O mergulho na Crise da Adolescência é tão profundo, que ele inclui abertura total para o Arquétipo Central e para o Arquétipo da Vida e da Morte, que pode se expressar até mesmo por acidentes fatais. Devido a essa amplitude simbólica, a integração paulatina dos Arquétipos da Anima e do Animus na posição dialética do relacionamento Eu-Outro inclui, na formação da identidade, a vivência simbólica estruturante incestuosa, parricida e filicida na elaboração do Complexo Parental, que era proibida durante a estruturação infantil da personalidade nas posições insular passiva característica do pré-édipo e na posição polarizada passiva característica do Complexo de Édipo.

Quando um rapaz se apaixona, ele pode um dia descobrir que está envolvido eroticamente com certas características da jovem que são iguais às de sua mãe. Pode se dar conta, até mesmo, que os ciúmes entre sua mãe e sua namorada, às vezes, decorrem mais da semelhança do que da diferença entre elas. O teto do quarto não desabará, se no meio das primeiras carícias íntimas, para espanto chocante de sua namorada, ele de repente chamá-la pelo nome de sua mãe. O mesmo pode acontecer com a jovem. Esta vivência incestuosa na adolescência, não só é necessária, quanto imprescindível para começar a elaborar a diferenciação dos Arquétipos da Anima e do Animus das figuras da mãe e do pai no Complexo Parental. Ao confundir e discriminar sua namorada de sua mãe, o jovem irá aperfeiçoando sua própria identidade. Assim, ele morrerá e matará, metaforicamente, ao deixar para trás partes de sua identidade formadas na infância que estorvam a realização de sua identidade profunda e renascerá com outras características na sua identidade que melhor correspondem às combinações do seu potencial arquetípico único. O mesmo ocorre com a jovem. Um dos maiores problemas da adolescência é que, dentro da diferenciação da Anima e do Animus das identificações primárias e edipianas ocorre o confronto com a sombra já formada. Este confronto pode ser muito estressante e desencadear quadros psicopatológicos graves.

Devido à constatação deste fenômeno, a Psicologia Simbólica pode afirmar que a Crise da Adolescência busca o aperfeiçoamento da estruturação insular e edipiana da identidade, pelo fato da amplitude simbólica quaternária e dialética do Arquétipo da Alteridade proporcionar aos jovens a vivência simbólica incestuosa e parricida / filicida. A Crise da Adolescência é tão difícil, dolorosa e conturbadora porque ela busca reformular e aperfeiçoar o Complexo de Édipo, pelo fato de poder lançar mão da atuação vivencial do incesto e do parricídio dentro da imaginação. O Complexo de Édipo está aqui ampliado da sua descrição clássica, porque o rapaz e a jovem vivem a relação afeto-ódio (incesto, parricídio-matricídio e filicídio) tanto com a mãe como com o pai dentro da função estruturante homo e heteroamorosa.

Assim, na adolescência temos a re-elaboração das identificações primárias pela passagem da posição insular de dominância passiva para a dominância de sua atitude ativa. Temos ainda a reciclagem das identificações edipianas com a passagem da posição polarizada da sua atitude passiva para a ativa, ou seja, com a passagem do Complexo de Édipo da infância para o Complexo Parental da vida adulta. Isto tudo é propiciado e catalisado pela constelação dos Arquétipos da Alteridade, isto é da Anima e do Animus com sua mensagem da individualidade única e profunda de cada Self individual. Em suma, a crise da adolescência tem a finalidade de separar a personalidade da infância e dos pais, preparando e adiantando o que acontecerá em grau maior na vida adulta, com a diferenciação da personalidade pelo exercício do Complexo Parental em atitude ativa, já agora com o auxílio das vivências do Complexo Conjugal. O processo continuará na maturidade, com nova ativação do Arquétipo da Alteridade em atitude ativa, que mais uma vez constelará a individualidade única e profunda e propiciará nova fase de desapego dos Arquétipos Matriarcal e Patriarcal, ou seja, do Complexo Parental adulto e do Complexo Conjugal. Na velhice, o declínio do corpo físico acompanhará o desapego do Complexo Parental e Conjugal ativos e propiciará o apogeu da diferenciação da individualidade para a realização da boda mística do Coniunctio Cósmico. O Eu e o Outro atingem o máximo de sua diferenciação e, tendo a morte como sacerdotisa, dela recebem a bênção da sua reunião no infinito e na eternidade.

Uma das propostas principais deste trabalho é formular a hipótese de que Freud descreveu o Instinto de Vida e o Instinto de Morte como os principais instintos da psique e os manteve inexoravelmente dentro da dualidade pelo fato de ter considerado o Complexo de Édipo como o centro do desenvolvimento da personalidade. Nesta etapa, a afetividade inclui o incesto e a agressividade, o parricídio. A proibição do incesto e do parricídio no Complexo de Édipo os mantém absolutamente literais e polarizados. Na etapa edipiana, a consciência não pode se orientar pela posição dialética na qual o não também pode ser sim. Sua violação traz fixações intensas, geralmente com graves consequências. Em se tratando do incesto, do parricídio e do abandono (filicídio) o não tem que ser unicamente não e o sim, unicamente sim. Isto é de fato uma condição da maior importância na infância para estruturar a identidade do Eu e do Outro, formando a consciência e estruturando os limites e o caráter até a puberdade. Esta centralização absoluta da função estruturante do Complexo de Édipo na sua obra, a meu ver, a sua mais genial descoberta, foi a principal razão que impediu Freud de transcender a posição polarizada passiva dos filhos e de perceber o fenômeno psíquico também através das posições polarizada ativa, dialética e contemplativa no resto da vida.

Já Jung e Sabina, alicerçados na posição dialética, puderam perceber e vivenciar a interação dual, mas dialética da Vida e da Morte dentro da unidade da energia psíquica no processo de transformação. Jung vivenciou a Morte de maneira tão simbólica tão ampla nos Símbolos e Transformações que aí a tratou inúmeras vezes como símbolo do processo de transformação da Vida. Chegou mesmo a nomear o último capítulo do livro "O Sacrifício", no qual propôs a inserção obrigatória da vivência simbólica da Morte no processo normal de transformação da energia psíquica. De fato, para qualquer terapeuta, a vivência da doença é sempre uma incursão na relação com a morte e a transformação. É muito significativo a esse respeito, a vida de Asklépios começar com a morte de sua mãe.

 

8. Judaísmo e Cristianismo e os Padrões de Consciência

Pelo fato de o Judaísmo apresentar na sua história uma extraordinária dominância da posição polarizada e do Arquétipo Patriarcal, a Psicanálise, frequentemente, tem sido considerada uma psicologia do pai e do Judaísmo. Por outro lado, o fato do Cristianismo apresentar na pregação e na Paixão de Jesus uma extraordinária dominância da posição dialética e do Arquétipo da Alteridade, poder-se-ia relacionar a obra de Jung com uma Psicologia Cristã. Acho essa tendência, em ambos os casos perigosa por reduzir à religião a obra científica destes dois geniais pioneiros da Psicologia moderna. Sabemos que quando confundimos religião com ciência, abrimos a porta para a entrada do preconceito, da intolerância e até do fanatismo. Mesmo vendo uma forte correlação entre o Arquétipo Patriarcal, o Judaísmo e a obra de Freud, por um lado, e o Arquétipo da Alteridade, o Cristianismo e a obra de Jung, por outro, acho desaconselhável estabelecer uma conexão causal, nesta correlação e prefiro considerar tão somente uma conexão de sincronicidade, por duas razões.

A primeira é que a história predominantemente patriarcal do Judaísmo vem incluindo cada vez mais características de alteridade nas correntes judaicas da Cabala, do Hassidismo e no desenvolvimento sociopolítico do Sionismo, o que invalida o equacionamento do Judaísmo com o dinamismo patriarcal. Basta se conhecer a filosofia de Martin Buber, e principalmente sua obra Eu e Tu, de forte influência hassídica, para se perceber a pujança da alteridade no Judaísmo moderno. A morte trágica do grande líder político Itzakh Rabin pela democracia de Israel também muito contribui para esta tese. Por outro lado, a história do Cristianismo, que começou na alteridade e durante sua institucionalização foi cada vez mais sendo patriarcalizada (BYINGTON, 1991 p. 19-41) também invalida o equacionamento do Cristianismo com o dinamismo de alteridade.

A segunda razão é que, como tentei demostrar, a predominância patriarcal na Psicanálise e da alteridade na Psicologia Analítica emerge das próprias vivências psicológicas descritas por estas teorias e, por isso, não há razão para se atribuir sua causa basicamente a uma influência cultural. A elaboração estruturante do Complexo de Édipo para formar a identidade do Eu e do Outro na infância tem necessariamente que ocorrer dentro do dinamismo patriarcal, no qual a posição polarizada passiva dos filhos e ativa dos pais, separa de maneira radical e absoluta os polos das polaridades, sobretudo afetividade/agressividade, certo/errado e vida/morte. O incesto, o parricídio e o filicídio, dentro das posições insular e polarizada passivas, tendem a ser vivenciadas literalmente, e, por isso, sua vivência, na realidade ou na fantasia, propicia a ocorrência de fixações e indiferenciações que pavimentam o caminho de disfunções psíquicas muito graves. Sua proibição patriarcal, dentro do Complexo de Édipo, faz parte de uma tábua da lei que não pode ser quebrada. O impacto que esta vivência, que proporcionou a descoberta genial da capacidade estruturante do Complexo de Édipo, teve na personalidade de Freud, deve ter sido de uma potência gigantesca, o que o levou a considerá-la o principal fator estruturante não só da infância, como de todo o funcionamento psíquico. Devido a essa centralização do Complexo de Édipo na vida psíquica, Freud foi coerente quando encerrou a Psicanálise na puberdade. O fato de que muitos de seus seguidores estenderam o Complexo de Édipo (posição polarizada passiva) para explicar da mesma forma a adolescência e a vida adulta normal não foi de sua responsabilidade. O fato de Jung discordar da teoria do incesto de Freud por considerar qualquer forma de incesto simbólica (hierosgamos), sem qualquer componente literal, exclusivamente arquetípica e não pessoal (JUNG, 1946), nos mostra o quanto Jung não considerou em sua teoria o poder estruturante normal do Complexo de Édipo na formação da identidade do Eu na infância e na psicopatologia, inclusive na transferência defensiva.

 

9. As Posições Eu-Outro e as Atitudes Passiva e Ativa

Trata-se de um quadro de dominâncias genéricas ideais nas etapas da vida, o que não impede as variações circunstanciais, individuais e culturais. A posição indiferenciada ativa crescente na vida adulta significa que o Eu se capacita cada vez mais para entrar ativamente em situações novas para indiscriminar e elaborar (Tabela).

 

10. O Arquétipo do Coniunctio e as Posições Eu-Outro

As posições arquetípicas Eu-Outro e as etapas da vida são melhor compreendidas quando as estudamos à luz do Arquétipo do Coniunctio, que rege as várias formas de encontro do Eu com os polos das polaridades.

O processo de elaboração simbólica estrutura a consciência em polaridades, que incluem a polaridade Eu-Outro. A seguir, a polaridade Eu-Outro entra em contato com novos símbolos, com os quais se funde na posição indiferenciada e recomeça, isto é, continua o processo de elaboração simbólica. Por conseguinte, este processo apresenta sempre fusão e separação do Eu-Outro e de todas as demais polaridades. Ora, Jung, em sua última obra importante, "Mysterium Coniunctionis", descreve o coniunctio na alquimia como a união e separação dos opostos (JUNG, 1954). A Psicologia Simbólica considera o Arquétipo do Coniunctio, como o coordenador da união e separação dos opostos a partir da elaboração de todos os símbolos e funções estruturantes.

Nas identificações primárias, temos o Coniunctio Insular do Eu com figuras primárias (mãe, pai, avós, tios, irmãos, babá etc.) em ilhas binárias de elaboração simbólica. No Complexo de Édipo temos o Coniunctio Parental no qual o Eu se relaciona com a díade (pai-mãe, mãe-tio etc.) na posição polarizada ternária em atitude dominantemente passiva.

Na adolescência, ativa-se o Coniunctio Conjugal, no qual o Eu se relaciona de forma quaternária dialética com os símbolos do amor, da vocação e do posicionamento religioso e sócio-político, em atitude dominantemente passiva. Isto porque, apesar de o adolescente oscilar entre a onipotência e a impotência, os símbolos mais acontecem a ele do que ele os busca. O adolescente é muito mais passivo do que agente da posição dialética. Na adolescência, o Coniunctio Parental colide com o Coniunctio Conjugal como duas formas importantes de viver e de elaborar símbolos. A grande diferença do Coniunctio Parental infantil é que o adolescente começa a vivenciar o Complexo Parental de forma cada vez mais ativa preparando-se para o casamento e a paternidade. O mesmo se dá com a adolescente.

A partir dos 20 anos, em nossa cultura, geralmente antes em outras culturas, o Coniunctio Insular e o Coniunctio Parental passam a ser exercidos de forma clara e dominantemente ativa e o Coniunctio Conjugal começa a se tornar cada vez mais ativo. Estrutura-se a identidade adulta, constitui-se a família e a vida profissional, nascem e crescem os filhos.

A partir dos 40 anos, o Coniunctio Conjugal se torna dominantemente ativo, intensificando a busca do encontro e sendo o Eu cada vez mais agente. Constela-se intensamente outra vez o Arquétipo da Alteridade e inicia-se uma nova grande crise de questionamento dos valores estabelecidos e de busca da identidade individual e profunda. Trata-se da crise do meio da vida, da segunda adolescência, da metanoia em direção à maturidade, que Jung descreveu como o Processo de Individuação. O Coniunctio Parental grandemente amadurecido, agora também na fase ativa, nos permite começar a ser pais de nossos pais. O Complexo Parental já havia começado a ser depurado de características díspares da identidade profunda pela vivência passiva da alteridade, na adolescência. Desta vez, junto com a metanoia, que exacerba a identidade profunda por intermédio da alteridade ativa, depuram-se ainda mais as identificações parentais, que já estavam sendo exercidas de forma ativa na vida adulta. Surge, nessa fase o início da vivência existencial da Morte junto com o Coniunctio Cósmico, de forma inicialmente passiva e, posteriormente, cada vez mais ativa para aqueles que desenvolveram sua consciência e integraram de maneira, sempre relativa, mas satisfatória, estas várias etapas do desenvolvimento psicológico. O enfraquecimento do corpo físico e a aproximação da Morte são a vivência central do Coniunctio Cósmico, que enseja o encontro unitário da consciência com o todo universal. Para entendê-lo melhor, necessitamos compreender o que é a simbolização ampla do Arquétipo da Vida e da Morte como funções estruturantes durante todo o processo de desenvolvimento da personalidade.

 

11. O Arquétipo da Vida e da Morte como Função Estruturante Criativa e Defensiva

Baseados nessas premissas, podemos agora retomar o Arquétipo da Vida e da Morte como funções estruturantes criativas e defensivas do processo de desenvolvimento simbólico da psique. Para a Psicologia Simbólica e para a Psicologia Analítica, a Morte não é somente oposta à Vida como ocorre na posição polarizada e na Psicanálise. Como quaisquer outras polaridades percebidas na posição dialética, a Morte e a Vida se articulam criativamente, quando interagem de forma complementar e adequada no processo de desenvolvimento. O equacionamento da Vida com a construtividade e da Morte com a destrutividade, característico da posição polarizada não deve ser generalizado, pois pode levar à identificação pejorativa e altamente alienante da Morte com o ruim e o indesejável e da Vida com o bem e o desejável. Tanto a Vida quanto a Morte podem ser desejáveis ou indesejáveis, positivas ou negativas, criativas ou defensivas em função do processo. Quando coordenadas, criativamente, ambas são necessárias, mesmo que dolorosas. Quando descoordenadas e inadequadas, ambas são prejudiciais, operem elas de forma dolorosa ou não.

Pelo fato de pertencer ao âmago do Arquétipo Central (Gráfico 2), o Arquétipo da Vida e da Morte tem a função estruturante de selecionar aquilo que deve ser mantido ou descartado durante o processo. O que deve ser mantido pertence à Vida e sua elaboração precisa continuar. O que deve ser descartado pertence à Morte e não tem mais que ser elaborado, ao menos naquela etapa do processo. O polo Vida do Arquétipo é expresso pelas funções estruturantes do interesse, da curiosidade, do fascínio, da conquista, do ganho e da euforia. O polo da Morte se expressa pelas funções estruturantes da indiferença, do desinteresse, da perda, do sacrifício, do desapego, do desânimo, da depressão e do luto. Devido à sua função primordial no processo, o Arquétipo da Vida e da Morte está sempre presente na elaboração simbólica de todos os símbolos e funções estruturantes. A interação desta polaridade é tão profunda e intensa que seu conhecimento e compreensão, na normalidade e na patologia, são uma das pérolas, se não a maior pérola da arte existencial.

 

12. Os Três Problemas Centrais da Elaboração do Arquétipo da Vida e da Morte

Quando acompanhamos o desenrolar do potencial arquetípico do processo psicológico, não podemos acompanhar Freud quando afirma que, no final, o processo psíquico tende para o repouso e, por isso, o vencedor é o Instinto de Morte. Ao perceber a natureza do Coniunctio Cósmico, cientificamente, vemos que a psique, que veio da poeira, no final da etapa existencial, se prepara para voltar à poeira. Este parece ser o significado do Revertere ad Locum Tuum - retorna ao teu lugar - que lemos na entrada dos cemitérios católicos. Sabemos que os átomos do nosso corpo não desaparecerão e continuarão sua existência nas nuvens, nas flores e no fundo dos pântanos. Não sabemos ainda a forma de continuidade da vida psíquica. Mas, como argumentou Jung no filme "Face to Face" da British Broadcasting Corporation (BBC) de Londres, a psique continua a elaborar seus símbolos diante da morte, como se a vida psíquica fosse continuar. Necessitamos diferenciar três formas de expressão dos Instintos de Vida e de Morte ou dos Arquétipos da Vida e da Morte para melhor compreendê-los. A primeira é compreendê-los como funções estruturantes dentro do dia a dia do processo existencial. Isto consiste em atender o novo e se desapegar do que já morreu porque, no momento ao menos, não serve mais. Claro está que aqui teremos a formação da Sombra e de suas defesas, quando isto não for corretamente desempenhado.

A segunda é elaborar a Morte e as perdas que acarreta por eventos existenciais que ocorrem independentemente do timing do processo de elaboração. Trata-se da elaboração do Arquétipo da Vida e da Morte constelado de forma trágica e inesperada, por doenças ou acidentes que violentam o amadurecimento gradual do processo existencial. Aqui também, poderá haver a formação de Sombra, isto é, de fixações e de defesas quando a função estruturante do luto não puder ser devidamente elaborada.

A terceira forma de expressão é a compreensão do Arquétipo da Vida e da Morte durante o enfraquecimento até a desagregação do corpo físico. Esta fase, inerente ao Coniunctio Cósmico, depende muito de quanta sabedoria foi desenvolvida nas elaborações das duas formas de expressão anteriores, posto que ela consumirá tanto menos esforço psíquico, quanto mais alto for o patamar de diferenciação psíquica alcançado pela consciência.

 

13. O Arquétipo da Vida e da Morte e as Posições Arquetípicas Eu-Outro

Como todas as demais funções estruturantes, o Arquétipo da Vida e da Morte, ao ser constelado, necessita da interação adequada de suas polaridades e se expressa de maneira diferente em cada uma das posições arquetípicas da relação Eu-Outro. Já frisei que estas posições se repetem em todas as elaborações simbólicas durante a vida, mas têm funcionamento típico nas etapas da vida. Descreverei aqui, sumariamente o Arquétipo da Vida e da Morte relacionado com as posições Eu-Outro de forma típica nas etapas da vida.

Na posição insular da infância, a relação Eu-Outro é tão íntima e envolvente que a perda da mãe pode ferir de forma irreparável a identidade do Eu e, até mesmo, precipitar a psicose depressiva (depressão anaclítica) e a morte da criança, como descreveu Spitz (1963 p. 267-92). A elaboração do apego-desapego nesta fase é de difícil dosagem. Quando deve entrar a Morte e quando deve continuar a Vida na dependência infantil necessita um termômetro que somente a empatia do dinamismo matriarcal sabe expressar e ler. Nesse sentido, sempre acompanhei maravilhado vivências e relato dos animais com suas crias e como sabem dosar a relação entre a necessidade de frustração da Morte e o aconchego da Vida. A mãe ursa, por exemplo, no início permanece grudada com seus filhotes e nem por um instante sai da toca. Em certa época da vida maternal, porém, ela vivencia a Morte desse grande aconchego e sai da toca para passear, explorar o mundo e caçar, com seus ursinhos pulando atrás. Num momento, posterior, deixa-os numa árvore e vai buscar alimento, reencontrando-os depois para levá-los de volta à toca. Chega um dia, em que o Arquétipo da Morte e da Vida coordena a elaboração simbólica da separação. Nesse dia, a ursa simplesmente deixa os filhotes já crescidos abrigados numa árvore e nunca mais volta para buscá-los. Morreu a infância para poder nascer a vida adulta.

Quando a infância não é devidamente sacrificada à Morte e a Vida não abraça as forças inovadoras, o Arquétipo da Morte e da Vida apresenta disfunção e fixação da elaboração simbólica com formação de defesas e Sombra. O apego exagerado propiciado pelo Arquétipo da Vida desequilibra a separação com a superproteção e o mimo. Ocorre uma fixação na função estruturante do Arquétipo da Vida e da Morte que estagna o processo vital e gera um símbolo morto-vivo na Sombra. Isto será diferente em cada posição da consciência, mas de um modo geral, a função estruturante da Vida, exercida de forma defensiva, se transforma em mimo, superproteção e estagnação. Já a função estruturante da Morte, exercida de forma defensiva, pode se transformar em autoagressão e depressão (defesa introjetiva) ou em irascibilidade e difícil convívio (defesa projetiva). A principal limitação da expressão defensiva do Arquétipo da Vida e da Morte é a dificuldade do Eu vivenciar a frustração, essa função estruturante tão importante para a vivência do desapego e da transformação no processo de elaboração simbólica. As fixações do Arquétipo da Vida e da Morte expressam fixações em todo o processo de elaboração simbólica, inclusive da função estruturante narcisista-ecoista que compromete as formas de relacionamento da personalidade. A vivência criativa da função estruturante da Vida e da Morte propicia o desenvolvimento, a diferenciação e o enriquecimento psíquico. A vivência defensiva da função estruturante da Vida e da Morte, pelo contrário, enseja a fixação, a estagnação, a indiferenciação, o empobrecimento e as disfunções defensivas dos quadros psicopatológicos.

A crise da adolescência é dolorosa porque propicia a Morte da infância e do apego aos pais. A polarização com os costumes tradicionais e o apego aos modismos e inovações se constitui num grande ritual de passagem que propicia a morte do velho e o culto do novo. Esta morte dos pais na imaginação e a união erótica, frequentemente ainda com intensas características incestuosas presentes na adolescência, configuram o parricídio-matricídio-filicídio e o incesto homo e heterossexual simbólicos incompatíveis com o Complexo de Édipo da infância, mas absolutamente necessários para a diferenciação da personalidade na Crise da Adolescência, patrocinada pelo Arquétipo da Alteridade.

O parricídio-matricídio-incesto simbólicos acompanham o filicídio na adolescência porque não só os pais, mas a criança também precisa morrer simbolicamente. Morrem os pais da infância, mas morre também a criança para renascer outra criança na adolescência, que será a fonte de inocência, ludicidade, criatividade, curiosidade, entrega e vitalidade durante o resto da vida. Esta nova criança, símbolo agora não da infantilidade, mas do Arquétipo da Criança na vida adulta, é comemorada com os batismos de nascimento nos rituais de iniciação como a Crisma, no Cristianismo e o Bar-Mitzvah no Judaísmo. Em muitas culturas, estes rituais envolvem símbolos que expressam a morte da infância antes da iniciação na vida adulta. Nossos índios Karajás, por exemplo, pintam o adolescente de jenipapo. Pintado de negro, o jovem continua no meio da tribo, mas ninguém o vê nem lhe dirige a palavra, como se não existisse. A seguir, ocorre o ritual de renascimento e inclusão nos rituais adultos da tribo. Estes rituais de iniciação continuam em muitas religiões na segunda adolescência, na metanoia, quando os iniciados receberão um outro nome, o nome iniciático da maturidade, que designará a identidade ontológica única do Processo de Individuação. Em ambos os rituais poderá haver madrinha e/ou padrinho mostrando a maternidade e a paternidade simbólicas que designam a transcendência arquetípica dos símbolos do pai, da mãe, da criança e do adulto. Estes pais e esta criança ou pessoa adulta devem morrer para marcar o ritual de passagem para a etapa seguinte do desenvolvimento. No nível arquetípico matriarcal e patriarcal também se registra essa morte, posto que, como já assinalei, o Eu da infância tende a viver a posição insular e o dinamismo matriarcal e a posição polarizada e o dinamismo patriarcal edipiano de forma passiva, enquanto que o Eu da adolescência os vivencia cada vez mais de forma ativa ao preparar-se para a vida adulta. Por conseguinte, há também morte e vida dentro da transformação da vivência matriarcal e patriarcal dominantemente passiva para sua expressão dominantemente ativa na vida adulta.

Esta duplicidade da imagem dos pais e dos filhos e a necessidade de sua morte junto com a consciência coletiva da geração que passou foi expressa claramente por Jesus dentro da sua pregação coordenada pelo Arquétipo da Alteridade:

Não penseis que vim trazer a paz à Terra.

Não vim trazer paz, mas espada.

Pois vim trazer divisão entre o homem e seu pai;

Entre a filha e sua mãe e entre a nora e sua sogra.

Assim, os inimigos do homem serão os de sua própria casa.

Quem ama seu pai e sua mãe mais do que a mim,

Não é digno de mim.

Quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim

Não é digno de mim.

E quem não toma a sua cruz e vem atrás de mim

Não é digno de mim.

Quem acha a sua vida perdê-la-á

Quem, todavia, perde a vida por minha causa, achá-la-á (Mt 10:34-39).

No Evangelho de Tomé, da Biblioteca de Nag Hammadi, este tema é também explicitado: "(Jesus disse) Quem não odiar seu pai e sua mãe como Eu faço, não pode ser meu discípulo. E quem não amar seu pai e sua mãe como eu faço não pode ser meu discípulo. Porque minha mãe (me deu a falsidade) mas a minha verdadeira mãe me deu a vida" (Bibl. Nag Hammadi, Tomé 101).

Desta maneira, a passagem para a vida adulta envolve o Arquétipo da Vida e da Morte numa grande transformação dos Arquétipos Regentes e as posições Eu-Outro correspondentes. Os Arquétipos Matriarcal (posição insular) e Patriarcal (posição polarizada) sofrem grande transformação da infância para a adolescência, passando cada vez mais da atitude passiva para atitude ativa que caracterizará fortemente a fase adulta da vida. O Arquétipo da Alteridade (posição dialética), ativado fortemente na adolescência de forma passiva, arrefece na fase adulta devido à intensa ativação dos Arquétipos Matriarcal e Patriarcal na atitude ativa. Na crise da metanoia e na fase madura da vida, dos 40 aos 60 anos, temos nova ativação do Arquétipo da Alteridade e da posição dialética, só que desta vez, na atitude ativa. Em cada fase e a cada grande transformação arquetípica, ativa-se a polaridade Vida-Morte, posto que há sempre grandes perdas e luto e muitos ganhos e crescimento.

Após os 60 anos, inicia-se a velhice e intensifica-se sobremaneira o Arquétipo da Totalidade, com sua característica posição contemplativa em atitude cada vez mais ativa. Desde o início do processo, este arquétipo está presente em atitude passiva e, após a metanoia, sua passagem para a fase ativa se dá de forma crescente. Na velhice, arrefecem os dinamismos matriarcal e patriarcal, que recomeçam outra vez a se apresentar razoavelmente em atitude passiva. É sabido, que na velhice, os pais são cada vez mais cuidados e orientados pelos filhos. A intensa presença do Arquétipo da Alteridade na fase da maturidade começa a diminuir na velhice e ceder lugar para a intensificação da posição contemplativa do Arquétipo da Totalidade em atitude ativa.

A diminuição progressiva da vitalidade física exacerba o Arquétipo da Vida e da Morte, propiciando a passagem da dominância do Coniunctio Conjugal para o Coniunctio Cósmico, no qual o Eu se reúne ao Cosmos. A diferenciação criativa da personalidade, durante tudo o que passou, propicia muito o exercício da posição contemplativa e do Coniunctio Cósmico nestes últimos anos. É da maior sabedoria para auxiliarmos psicologicamente pacientes terminais, reconhecermos que a doença mortal, durante qualquer fase da vida e, até mesmo, na infância, pode apresentar a fenomenologia do Coniunctio Cósmico. A maturidade e a riqueza do Self Cultural é de fundamental importância para auxiliar a elaboração do Arquétipo da Vida e da Morte na eminência da perda do corpo físico e da reunião com o cosmos dentro dos símbolos estruturantes da eternidade e do infinito.

O desenvolvimento tecnológico crescente prolonga artificialmente cada vez mais a velhice. Este prolongamento artificial da Vida não está sendo acompanhado devidamente por um maior aprendizado sobre a Morte e como ela deve acontecer. A Medicina parece ter esquecido que Asklepios foi fulminado pelo raio justiceiro de Zeus, quando ressuscitou Hipólito e desrespeitou o limite da Morte. O sofrimento de bilhões de moribundos clama por um desenvolvimento da sabedoria do médico para desenvolver a função estruturante da humildade criativamente, de tal forma que ele perceba quando o Arquétipo da Vida começa a ceder seu lugar para a Morte. O primeiro mandamento de Hipócrates, "primum, non nocere" (acima de tudo não fazer mal), necessita incluir também a atitude do médico diante da morte. Como pode se orgulhar um médico de empregar o seu saber para manter vivo um rebotalho humano, cujo corpo físico implora pela chegada da morte? Se a diferença entre o remédio e o veneno é uma questão de dose, a tecnologia como remédio exagerado pode agir como veneno e, de forma onipotente e terrível, transformar o médico em torturador. Será que o crime pela omissão de socorro permite ao médico isentar-se diante da proximidade da morte? Quando pode o médico desligar os aparelhos que mantém um morto-vivo sofrendo? Quando deve o oncologista suspender a quimioterapia de um paciente irrecuperável?

O problema é, sem dúvida, não só médico e científico, mas também, filosófico, religioso e, acima de tudo, humanista. Se a finalidade do humanismo moderno planetário é lutar cada vez mais pelos direitos humanos, porque ignorar a luta dos moribundos pelo direito de vivenciar a morte com dignidade? A Igreja tem a doutrina da compaixão pelos fracos e oprimidos, mas, onde está a compaixão pelos moribundos? Por que não dar a cada pessoa a ajuda técnica e psicológica para elaborar sua morte e participar do coniunctio cósmico ativa e criativamente? Será que ainda teremos que ser torturados por muito mais tempo pela passividade diante da morte até aprender a considerar a Eutanásia Médica e a Auto Eutanásia como conquistas inestimáveis da Medicina e dos direitos humanos? Por quanto tempo teremos que ser como o personagem José K., do Processo de Kafka e continuar morrendo como cães? Porque não dar o direito ao moribundo de comemorar ao seu gosto e de sua família e eminência do seu casamento místico com o Cosmos? A elaboração simbólica da tecnologia, em função desta maior compreensão do Arquétipo da Vida e da Morte, certamente favorecerá o avanço cultural para diminuir o preconceito da posição ativa do Eu diante do Arquétipo da Morte e, assim, propiciar o exercício crescente da eutanásia médica e da autoeutanásia dentro da vivência do Coniunctio Cósmico.

 

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Recebido em 25/03/2019
Revisão em 28/05/2019

 

 

1 Artigo baseado na palestra de encerramento do Simpósio "Freud e Jung, 90 anos de Encontros e Desencontros". Museu da Imagem e do Som, 17 e 18 de maio de 1996. Publicado originalmente na Revista Junguiana 14, 1996, p. 92-112.

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