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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

Arte e Psicopatologia: a defesa sadomasoquista e a transcendência do mal. Um enigma que reúne a vida e a obra de Franz Kafka1. Um estudo da Psicopatologia Simbólica Junguiana

 

Art and psychopathology: the sadomasochistic defense and the transcendence of evil. An enigma that brings together the life and work of Franz Kafka. A study of Jungian Symbolic Psychopathology

 

Arte y psicopatología: la defensa sadomasoquista y la rrascendencia del mal. Un enigma que reúne la vida y la obra de Franz Kafka. Un estudio de la Psicopatología Simbólica Junguiana

 

 

Carlos Amadeu B. Byington

 Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador. E-mail: < c.byington@uol.com.br >, site: < www.carlosbyington.com.br >

 

 


RESUMO

O autor, dentro do referencial teórico da Psicologia Simbólica Junguiana, estuda a relação da Arte com a Psicopatologia e situa o sadomasoquismo como a defesa central dos relacionamentos humanos. Postula a sua formação através da fixação das identificações parentais, que inclui o vínculo entre mãe e pai e as reações do Ego a eles. Esta fixação envolve a interação da função estruturante do amor (afeto e agressividade) com a função estruturante do poder (obediência e comando).
O autor ilustra estes conceitos na vida e na obra de Franz Kafka, descrevendo a identificação do seu Ego na Consciência dominantemente com o afeto delicado, sensível e introvertido do seu complexo materno positivo, e do seu Ego na Sombra com a passividade covarde e masoquista do seu complexo materno negativo. Descreve também a identificação do Outro na Consciência dominantemente com a exuberância vital, a produtividade e a dedicação ao trabalho e à família do seu complexo paterno positivo e do seu Outro na Sombra com a agressividade egocêntrica, sádica, prepotente e extrovertida do seu complexo paterno negativo. A resultante desta grave fixação foi uma relação sadomasoquista da polaridade Ego-Outro na sua personalidade, claramente expressa na sua famosa Carta ao Pai e na maior parte de sua obra, inclusive na sua ordem para que fosse destruída junto com seus diários.
Byington conclui mencionando alguns aspectos da relação entre Arte e Psicopatologia e postula que o Arquétipo Central abrange os complexos fixados do sistema defensivo da Sombra, mas busca ultrapassá-los na autorrealização criativa do Processo de Individuação. No caso de Kafka, isto não aconteceu no Self Individual, mas realizou-se vigorosamente através da imagem arquetípica da ressurreição no Self Cultural.

Palavras-chave: arte e psicologia, identificações primárias e suas fixações, complexo parental e o vínculo mãe e pai, funções estruturantes do amor e do poder, sadomasoquismo, arquétipo central e sistema defensivo da sombra, ultrapassagem da psicopatologia pela arte no self cultural.


ABSTRACT

Within the conceptual framework of Jungian Symbolic Psychology, the author studies the relationship between Art and Psychopathology and considers sadomasochism to be the defensive core of all psychological relationships. He postulates its formation mainly through the fixation of the Ego-Other polarity in the primary negative parental identifications, including the meaning of the relationship between father and mother and the reactions of the ego towards them. This fixation involves the interaction between the structuring function of love (affection and aggression) and that of power (obedience and control).
The author illustrates these concepts in the life and work of Franz Kafka, describing his ego's identification in consciousness predominantly with the gentle, affectionate and sensitive introversion of his positive mother complex and of his ego in the shadow with the masochistic cowardly passivity of his negative mother complex. He also describes the identification of the other in consciousness predominantly with the vital exuberance, the productivity and the dedication to work and to the family of his positive father complex, and of the other in the shadow dominantly with sadistic egocentric and aggressive extroversion of his negative father complex. The result of this severe fixation was a sadomasochist relationship of the ego-other polarity in his personality expressed clearly in the famous letter to his father and in most of his work, including his wish to destroy it.
Byington concludes by mentioning some aspects of the relationship between art and psychopathology and postulates that the Central Archetype encompasses the fixated complexes of the shadow's defensive system, and tries to go beyond them in the creative self-realization of the individuation process. In the case of Kafka, this could not occur in the individual Self, but was realized through the archetypal image of resurrection in the cultural Self.

Keywords: art and psychology, primary identifications and their fixations, parental complex and the bond between mother and father, structuring functions of love and power, sadomasochism, central archetype and defensive system of the shadow, overcoming psychopathology by art in the cultural self.


RESUMEN

El autor, dentro del referencial teórico de la Psicología Simbólica Junguiana, estudia la relación del Arte con la Psicopatología y sitúa el sadomasoquismo como la defensa central de las relaciones humanas. Postula su formación a través de la fijación de las identificaciones parentales, que incluye el vínculo entre madre y padre y las reacciones del Ego a ellos. Esta fijación implica la interacción de la función estructurante del amor (afecto y agresividad) con la función estructurante del poder (obediencia y mando).
El autor ilustra estos conceptos en la vida y obra de Franz Kafka, describiendo la identificación de su Ego en la Conciencia dominante con el afecto delicado, sensible e introvertido de su complejo materno positivo, y de su Ego en la Sombra con la pasividad cobarde y masoquista su complejo materno negativo. Describe también la identificación del Otro en la Conciencia dominante con la exuberancia vital, la productividad y la dedicación al trabajo y a la familia de su complejo paterno positivo y de su Otro en la Sombra con la agresividad egocéntrica, sádica, prepotente y extrovertida de su complejo paterno negativo. La resultante de esta grave fijación fue una relación sadomasoquista de la polaridad Ego-Otro en su personalidad, claramente expresada en su famosa Carta al Padre y en la mayor parte de su obra, incluso en su orden para que fuera destruida junto con sus diarios.
Byington concluye mencionando algunos aspectos de la relación entre Arte y Psicopatología y postula que el Arquetipo Central abarca los complejos fijados del sistema defensivo de la Sombra, pero busca sobrepasarlos en la autorrealización creativa del Proceso de Individuación. En el caso de Kafka, esto no sucedió en el Self Individual, pero se realizó vigorosamente a través de la imagen arquetípica de la resurrección en el Self Cultural.

Palabras clave: arte y psicología, identificaciones primarias y sus fijaciones, complejo parental y el vínculo madre y padre, funciones estructurantes del amor y del poder, sadomasoquismo, arquetipo central y sistema defensivo de la sombra, superación de la psicopatología por el arte en el self cultural.


 

 

1. Introdução

Franz Kafka (1883-1924) foi um grande gênio da literatura alemã do século XX, comparável à grandiosidade de James Joyce na literatura inglesa e a Marcel Proust, na francesa. Pouco conhecido, ele publicou apenas parte de sua obra durante sua vida e, antes de morrer de tuberculose, às vésperas de completar 41 anos, no apogeu de sua criatividade, pediu ao amigo e futuro biógrafo, Max Brod, que destruísse o resto de sua obra, suas cartas, seus diários e a famosa Carta ao Pai (KAFKA, 2002b), escrita em 1919, que este nunca chegou a ler. Neste artigo, quero sugerir que Kafka foi portador de uma grave defesa sadomasoquista, oriunda de fixações do seu complexo parental, que se transformou na linha mestra do conteúdo da obra, subjacente à genialidade literária. Desejo mostrar como Arte e psicopatologia são dimensões psicológicas diferentes, que podem se entrelaçar por sincronicidade sem que uma seja reduzida à outra causalmente.

O enigma que Kafka nos impõe é o de explicar como um gênio capaz de uma criatividade extraordinária e portador de tanto carisma e bondade, que muitos comparam à dos sábios e até dos santos, tenha publicado apenas parte do que escreveu e tenha ordenado a destruição do resto. A interpretação aqui apresentada é que a psicopatologia de sua personalidade se entrelaçou com a sua criatividade artística e ali semeou a orientação sadomasoquista de sua destruição. Quero acrescentar também que a criatividade abrangeu a psicopatologia e a ultrapassou na morte, e, mesmo contra a sua vontade, engrandeceu a arte literária da humanidade.

 

2. O Quatérnio Parental na Vida e na Obra de Kafka

O Ego de Kafka parece ter se identificado bastante com o lado introvertido e místico da família Löwy, de sua mãe, e admirado, de forma ambígua e com severas restrições, a exuberância forte e extrovertida da personalidade do pai, que formou em sua identidade um Outro opressor, detestado e desprezado, mas também admirado e amado.

Eu já estava esmagado pela simples materialidade do seu corpo. Lembro-me, por exemplo, de que muitas vezes nos despíamos juntos numa cabine. Eu, magro, fraco, franzino, você forte, grande, largo. Já na cabine me sentia miserável e, na realidade, não só diante de você, mas do mundo inteiro, pois para mim, você era a medida de todas as coisas (KAFKA, 2002b p. 14).

[...] Nossas necessidades eram completamente diferentes: o que me arrebata é capaz de deixá-lo insensível e vice-versa. O que em você é inocência, em mim pode ser culpa, e vice-versa; o que para você não tem consequências pode ser a tampa do meu caixão (KAFKA, 2002b p. 60).

Possivelmente o desprezo por si mesmo e sua identificação com a barata (KAFKA, 2002a), o cachorro (KAFKA, 1999) e o rato (KAFKA, 2002c) têm relação com o sentimento de inferioridade desenvolvido por sua identificação com sua mãe, amorosa, mas covarde e submissa, e o não se sentir capaz de corresponder, em sua própria vida, ao que admirava na de seu pai, a quem tanto amava e, ao mesmo tempo, repudiava com horror. Ficou aí delineado, como "sulcos em seu cérebro" (KAFKA, 2002b p. 30), seu sistema sadomasoquista.

As descrições de sua personalidade, tanto na biografia escrita por Max Brod (1995) como nas referências de pessoas que o conheceram (Felice Bauer, Dora Geritt, Milena Pollack, Friedrich Thierberger, Dora Dymant, Gustav Janouch, dentre outros), trazem uma personalidade riquíssima e complexa, o que, para muitos, certamente invalidaria a importância que estou atribuindo às suas possíveis identificações primárias negativas. Meu argumento, no entanto, vem da obra, dos Diários (KAFKA; BROD, 1948), das cartas e principalmente do que o próprio Kafka escreveu na Carta ao Pai (2002b). No meu entender, aí se encontra o fio condutor do significado profundo do seu Processo de Individuação e de toda a sua obra, que descreve com uma inteligência, uma sensibilidade e uma criatividade literária geniais, a tortura de buscar a vida dentro da inviabilidade absoluta de ser. "Tudo é imaginário: família, emprego, amigos, a rua, lá longe, ou aqui perto, a mulher. A maior verdade, porém, é só essa: que você está batendo sua cabeça na parede de uma cela que não tem porta nem janela" (KAFKA; BROD, 1948 p. 395).

Na Carta, o próprio Kafka (2002b) se apresenta como um prisioneiro de suas identificações primárias negativas e, principalmente, do vínculo parental, característica central de sua identidade fixada na Sombra. De um lado, o pai exuberante e provedor, mas grosseiro, vaidoso, onipotente, autoritário e sádico; de outro, a mãe amorosa, sensível e introvertida, mas covarde, passiva e masoquista. Este vínculo expressa o desespero da maldição profética de não poder ser, que permeia cada parágrafo.

Conta Rudolf Fuchs que, certa vez, entre amigos em Weinberg, numa noite gelada, Kafka estava usando um casaco muito leve, pelo que foi criticado. Kafka levantou sua calça, mostrou sua perna nua e contou que tomava banhos gelados no inverno. Acrescentou Fuchs que Kafka sofria de insônia e de terríveis dores de cabeça - provavelmente enxaquecas -, pouco falava de si, mas gostava muito de ouvir os outros... "Mesmo quando sua doença já o estava torturando, ele mantinha sua expressão sorridente" (BROD, 1995, p. 255).

Esconder do mundo, defensivamente, seu sofrimento talvez tenha sido uma das grandes razões para pedir ao amigo Max que destruísse a parte não publicada de sua obra, que era grande, junto com os diários e cartas, o que, felizmente, não foi feito, e que deixou explícita a sua defesa sadomasoquista. Seus sonhos e suas fantasias ilustram exuberantemente o quanto sofria, mesmo antes de contrair a tuberculose que o torturou durante os últimos sete anos de sua vida.

A janela estava aberta, em meus pensamentos desconexos eu me jogava da janela de quinze em quinze minutos, continuamente. Aí vinha um trem, os vagões iam passando sobre o meu corpo estirado nos trilhos, aprofundando e alargando os dois cortes, no pescoço e nas pernas (KAFKA, 2003a p. 66)

 

3. As Funções da Afetividade e da Agressividade fazem parte do Amor

Se concebermos a afetividade como a função estruturante arquetípica que busca a aproximação daquilo que nos agrada, e a agressividade como a função que afasta o que repudiamos, podemos compreender a polaridade afetividade-agressividade fazendo parte do centro dos relacionamentos emocionais, nos quais a afetividade diz sim e acolhe e a agressividade diz não e repudia. Por conseguinte, a interação normal da afetividade e da agressividade, do sim para o afeto e do não para a frustração, é a essência da psicodinâmica do amor, e a sua disfunção, parte importante da defesa sadomasoquista, que nos faz ter afetividade e aceitação pelo que nos desagrada e agressividade e rejeição por aquilo que nos agrada. "Meu irmão cometera um crime, talvez um assassinato. Eu e outras pessoas estávamos envolvidos... Meu sentimento de felicidade estava no fato que eu recebia tão livremente, com tanta convicção e alegria, o castigo que viria..." (KAFKA, 2003a). "Meu desenvolvimento foi simples. Quando eu estava contente, eu queria estar infeliz e, com todos os meios de que dispunha, mergulhava na infelicidade - e depois queria voltar" (KAFKA; BROD 1948 p. 405). "É impressionante como eu sistematicamente me destruí ao longo dos anos, como uma fenda que foi se alargando na barragem de uma represa" (KAFKA; BROD 1948 p. 393).

 

4. A Relação entre o Amor e o Poder ocupa o Centro da Elaboração Simbólica

Outra polaridade que abrange a polaridade afetividade-agressividade, e é tão central quanto ela nos relacionamentos humanos, é a polaridade amor-poder. Trata-se do poder como função estruturante, que pode atuar junto ou separado da sexualidade e do amor. A associação entre o amor e o poder, devido à sua importância central na vida psíquica, abrange todos os matizes dos relacionamentos humanos. Ela reúne, dentro da moldura arquetípica do Processo de Individuação, aspectos centrais da Psicanálise - a pulsão sexual libidinosa (FREUD, 1969) e a pulsão egoica da assertividade tanática (FREUD, 1976) -, da Psicologia Individual de Adler (a função estruturante do poder compensatória ao complexo de inferioridade) e da Psicologia Analítica (o Processo de Individuação) dentro do referencial da Psicologia Simbólica Junguiana. Quando a polaridade amor-poder sofre uma fixação e passa a atuar na Sombra, forma-se a defesa sadomasoquista, que pode então ser compreendida como a conjunção defensiva entre o amor e o poder e incluir formas defensivas as mais variadas nos relacionamentos humanos (BYINGTON,1987).

 

5. A Assimetria Normal das Polaridades Psíquicas e a Busca de Equilíbrio

Kafka parece-me ter sido de tipologia sentimento-sensação introvertidos. A imensa repressão de sua agressividade contra seu pai apresenta-se fixada, internalizada e dirigida contra si próprio.

Em 1913, um ano antes de escrever Na Colônia Penal (KAFKA, 2001b), conto no qual detalha minuciosamente os sentimentos do torturador e do torturado junto com uma terrível máquina assassina, Kafka fantasia: "a imagem frequente de uma fatiadora muito larga, que vai me cortando em alta velocidade e com regularidade mecânica em fatias muito fininhas, que saem voando quase enroladas por causa da rapidez do trabalho" (KAFKA, 2003a p. 70; KAFKA; BROD 1948).

Como tenho assinalado o centro da Consciência não é ocupado somente pelo Ego, mas pela polaridade Ego-Outro e Outro-Outro. A Psicologia Simbólica Junguiana descreve a formação e a transformação da identidade do Ego junto com a identidade do Outro a partir de toda e qualquer elaboração simbólica. O relacionamento Ego-Outro, como todas as demais polaridades, inclusive das funções tipológicas, é assimétrico na elaboração simbólica e, com o tempo, busca desenvolver o polo até então subdesenvolvido. A polaridade ativa-passiva tem aqui um papel significativo (MONTELLANO, 1996).

A assimetria intensa da polaridade pai-filho na personalidade de Kafka foi muito significativa, pois, ao não poder ser transformada, dilacerou sua alma e tornou-se a fixação central do seu quadro defensivo. "De todas as impressões de sua infância, a mais extraordinária é a imagem grandiosa de seu pai", escreve seu biógrafo e amigo Max Brod (1995, p.13). No entanto, foi impedido de integrar essa idealização por ser ela incompatível com sua introversão, sensibilidade e delicadeza, provenientes de sua própria natureza e da identificação com a família de sua mãe. O pai criou-o com "violência, gritaria e destemperos" para fazê-lo "um jovem forte e corajoso", mas sua incapacidade de corresponder fê-lo sentir-se "um mero nada"; "a menor crítica do pai era um fardo enorme para o filho, terminando por fazê-lo desprezar a si próprio" (BROD, 1995 p. 22). "Como, pai, você era forte demais para mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e, para isso, eu era fraco demais" (KAFKA, 2002b p.10).

Com uma tal assimetria no complexo pai-filho, Kafka teria que inverter essa dinâmica, fosse pela crítica ao pai, fosse pelo enaltecimento de suas próprias qualidades, para equilibrar essa polaridade. Ele necessitaria coragem e agressividade para confrontar e diferenciar aquilo que admirava do que repudiava na personalidade de seu pai, e que não era pouco: grande vitalidade e capacidade de dedicação à família e ao trabalho por um lado, e, por outro, egoísmo, narcisismo, prepotência, desconsideração pelos outros - humilhava frequentemente empregados e familiares -, grosseria e falta de sensibilidade e, o que foi fatal para Kafka: falta de empatia absoluta para com os sentimentos e os sofrimentos do filho. No entanto, pela mescla paralisante de medo, admiração, amor e desprezo, não conseguiu fazê-lo. "Da sua cadeira, você governava o mundo. Sua opinião era a certa e a dos outros, louca, excêntrica, meshuggah [maluca], anormal... Para mim, você desenvolveu o efeito desestabilizador que têm todos os tiranos, cujo poder é fundamentado não na razão, mas na sua própria pessoa" (KAFKA, 2002b p. 15).

A frase inicial da Carta, depois do cabeçalho "Muito Querido Pai", é significativa:

Você perguntou-me uma vez por que eu digo que tenho medo de você. Como sempre, eu não soube como lhe responder, parte devido a esse medo [...] na sua presença - você é um excelente orador quando se trata de algo que lhe diz respeito - eu comecei a falar entrecortado, gaguejante, e até isso era demais para você, de tal forma que eu finalmente calei-me, primeiro talvez por teimosia, mas depois porque eu não podia nem falar nem pensar na sua frente (KAFKA, 2002b p. 7).

Consolidou-se aqui, muito provavelmente, a fixação do complexo paterno negativo de Kafka, que o impediu de elaborar e integrar criativamente a assimetria do se complexo pai-filho. "O resultado exterior imediato de toda essa educação foi que fugi de tudo o que, mesmo à distância, me lembrasse você" (KAFKA, 2002b p. 33). Kafka afastou-se do pai externamente, mas levou até o final da vida a identificação negativa do Outro como implacável perseguidor do seu Ego, como descreveu tão extraordinariamente em A Construção (KAFKA, 2002e), às vésperas de sua morte. Esse drama transcorre no interior da terra, em meio a escavações de túneis e construções de barreiras para defender-se da ameaça de invasão. É o mundo do paranoico, onde se respira o medo do ataque iminente e do qual a atividade obsessiva busca defender-se compulsivamente pelo workaholismo condenado de antemão à falência. A metáfora aplica-se tanto aos bacilos da tuberculose corroendo seus pulmões quanto ao antissemitismo, que já aumentava assustadoramente à sua volta - anos depois, suas três irmãs morreriam num campo de concentração, e Milena seria assassinada por um nazista. Todavia, a presença do Outro maciçamente identificado com o pai persecutório, onipresente na polaridade Ego-Outro das suas identificações primárias negativas, é também bastante evidente.

O estilo descritivo e aparentemente imparcial, objetivo e sem grandes emoções de suas obras é um pano de fundo para realçar a dor inerente às imagens plenas de tragicidade. Foi como se seu pulmão, sufocado e proibido de gritar, esperasse a tuberculose para explodir nas crises de tosse e de hemoptise. Profeticamente, ele menciona na Carta: "A expressão que você usava constantemente a respeito de um empregado doente dos pulmões: - esse cachorro doente devia rebentar de uma vez" (KAFKA, 2002b p. 34).

O próprio Kafka percebeu que todo o conteúdo de sua obra se desenvolveu a partir da fixação nesse confronto: "Meus escritos eram sobre você. Neles eu derramei as lamentações que eu não pude derramar no seu peito. Era uma despedida deliberadamente traçada, exceto pelo fato que você, é certo, a havia imposto, mas cuja direção eu determinei" (KAFKA, 2002b p. 52, grifo meu).

Estas últimas cinco palavras expressam o poder do Ego criativo sobre as defesas, ou seja, da Arte sobre a doença mental. No entanto, esta fixação central na formação da Sombra de Kafka, que o impediu de elaborar a assimetria do complexo paterno para construir a sua autoestima, não se restringiu à relação com o pai.

É certo que minha mãe era de uma bondade ilimitada comigo, mas para mim tudo isso estava relacionado com você. Inconscientemente, ela exercia o papel de isca na caça [...] minha mãe me protegia de você às escondidas e me dava alguma coisa [...] Aí eu me tornava de novo, diante de você, a criatura que teme a luz, que engana, que está consciente da própria culpa, alguém que, por causa da sua própria nulidade, só pode chegar por caminhos tortuosos àquilo que considera o seu direito (KAFKA, 2002b p. 29).

Difícil encontrar melhor metáfora para essa característica da criatura medrosa, fugitiva e traiçoeira, que teme a luz, do que a metáfora do rato, explorada tão intensa e dramaticamente em Josefina, a Cantora (KAFKA, 2002c) e A Construção (KAFKA, 2002e).

A identificação com a passividade da mãe também foi determinante para isso, como bem ilustra o fato de ele ter dado a Carta para que ela a entregasse ao pai e, tempos depois, a mãe tê-la devolvido sem havê-la entregue (BROD, 1995). Assim, foi cerceada pela omissão da mãe, induzida pelo filho que lhe delegou a intermediação por falta de coragem própria, a derradeira chance de pai e filho elaborarem sua relação. A última frase da Carta expressa a motivação e a esperança de Kafka, que a sentiu "como alguma coisa tão próxima da verdade que pode nos tranquilizar um pouco e tornar a vida e a morte mais leve para ambos" (KAFKA, 2002b p. 74).

A fixação repressiva da agressividade e a afetividade submissa de Kafka deveram-se tanto ao medo, pena, afeto e repúdio em relação ao pai quanto à identificação com a "santidade" covarde e subserviente da mãe, que reviveu com sua noiva Felice Bauer:

Minha cara acho que sonhei com você a noite inteira, mas só me lembro de dois sonhos... No segundo sonho, você era cega. Um instituto berlinense para cegos tinha organizado uma excursão para o vilarejo onde eu passava o verão com a minha mãe... Ela usava um vestido muito amplo, uma espécie de hábito de freira... Insistia que as meninas cegas lhe prestassem serviços, dando preferência a uma de vestido preto e rosto redondo, com uma das faces tão sulcadas por cicatrizes que parecia ter sido inteiramente dilacerada... (KAFKA, 2003a p. 57-60).

F. esteve aqui e viajou 30 horas para ver-me; eu deveria tê-la impedido de vir. Acho que ela sofre muitíssimo e a culpa é essencialmente minha. Sinto-me incapaz de me controlar e impotente ao ter meu sentimento bloqueado, só pensar nos meus incômodos e, como única concessão, condescender em desempenhar o meu papel [...] ela é uma pessoa inocente, condenada à tortura extrema e eu sou culpado do problema que a tortura e, além disso, sou o seu torturador (KAFKA; BROD, 1948).

Na psicoterapia dinâmica, a elaboração desta fixação sadomasoquista, central na personalidade de Kafka, deve necessariamente incluir o resgate da afetividade e da agressividade defensivas próprias da função estruturante do amor, junto com o resgate da consideração, obediência e assertividade defensivas presentes na função estruturante do poder. Geralmente, este processo passa, dentro do Self Familiar, por uma etapa de elaboração das projeções nas figuras dos pais e no vínculo entre eles, e pela reação do Ego a eles. Posteriormente, envolve as relações adultas íntimas, por exemplo, cônjuge, irmãos, colegas, amigos e filhos no Self Familiar e no Cultural. Finalmente, tal elaboração centraliza-se na polaridade Ego-Outro e em seus significados mais íntimos nas vivências do Self Individual, incluindo a criatividade profissional e existencial. A separação entre estas três etapas é teórica. Na prática, elas estão sempre entrelaçadas. Para desempenhar esta elaboração simbólica arquetípica e sistêmica recomendo que todo terapeuta, além da análise pessoal, tenha também formação com atendimento de casos individuais, de casal e de família.

 

6. Arte e Psicopatologia

A personalidade artística frequentemente inclui a patologia, e é muito difícil reconhecer as duas dimensões sem reduzir uma à outra, embora essa tentação aumente muito quando o artista é portador de defesas graves e até mesmo de distúrbios mentais, o que não raro acontece. Nesse sentido, a polaridade das funções estruturantes não fixadas e fixadas é muito útil, seja para diferenciar a dimensão artística das demais dimensões na personalidade, seja para perceber as funções estruturantes não fixadas e as fixadas na própria dimensão estética.

Além da função transcendente, da função sacrificial e da função ética (BYINGTON, 1997), a função estética é uma das funções constantes de toda elaboração simbólica. Mesmo sem nos darmos conta, tudo o que fazemos tem um estilo pessoal que adotamos e diferenciamos cada vez mais durante a vida. Desde cedo, podemos observar que as crianças começam a desenvolver um estilo pessoal para fazer as coisas, o que torna a vida inseparável da Arte. A sofisticação dos pais nas vivências de seu próprio estilo de vida é um modelo importante. Ridicularizar a criança nas suas primeiras incursões na estética, geralmente expressas na maneira de sentar-se à mesa, de comer, vestir-se ou enfeitar-se, de andar, assoviar, cantarolar, desenhar ou falar, pode trazer uma fixação na função estética para o resto da vida (BYINGTON, 2004).

Bastava estar feliz com alguma coisa, ficar com a alma plena, chegar em casa e expressá-la, para que a resposta fosse um suspiro irônico, um meneio de cabeça, o bater do dedo sobre a mesa. - "Já vi coisa melhor", ou - "Para mim, você vem contar isso?" Ou - "Minha cabeça não é tão fresca quanto a sua", ou - "Dá para comprar alguma coisa com isso?" (KAFKA, 2002b p.16).

Bastava que eu tivesse um pouco de interesse por alguém [...] para que você, sem qualquer respeito pelo meu sentimento e sem consideração pelo meu julgamento, interviesse logo com insulto, calúnia e humilhação (KAFKA, 2002b p. 17).

À mesa, não era permitido partir os ossos com os dentes, mas você podia [...] não era permitido se ocupar de outra coisa a não ser da refeição, mas você podia e cortava as unhas, apontava o lápis, limpava os ouvidos com o palito dos dentes [...] Eu vivia imerso na vergonha: ou seguia as suas leis e isso era vergonha porque elas só valiam para mim, ou ficava teimoso e isso também era vergonha, pois como me permitir ser teimoso diante de você? (KAFKA, 2002b p. 19).

Desta maneira, quando alguém começa a se dirigir para uma vocação artística, é muito importante que sua criatividade profissional se sinta enraizada no seu estilo de vida pessoal, oriundo da função estruturante estética que, por ser arquetípica, expressa a criatividade do Arquétipo Central. Criar é transgredir, é o jogo da vida. Conviver aberto para a criatividade do Arquétipo Central significa admitir romper e sacrificar o status quo em função das exigências de transformação do ser. Infelizmente, isto foi tudo o que Kafka foi impedido de viver. Pelo contrário! O peso dos seus complexos materno e paterno negativos foi demasiado grande para sua coluna vertebral. Quando a função estética e a criatividade existencial são reprimidas na individualidade da criança, a função transgressora tende a ocorrer na Sombra individual, familiar e social. Lembremos Gauguin, pai de cinco filhos, de uma família de classe média e corretor da Bolsa de Valores de Paris que, para obedecer ao seu impulso artístico, abandonou tudo e foi pintar na Polinésia. Ou ainda, todos os artistas que vivem a criatividade inseparavelmente da vida noturna desregrada, das drogas, da marginalidade social e da miséria. A destruição da maior parte de sua criatividade, ordenada por Kafka, pode ser interpretada como o apogeu de sua defesa sadomasoquista. Se Max Brod não tivesse impedido que essa defesa atuasse sobre sua própria criatividade, Kafka teria morrido como José K., em O Processo (KAFKA, 2003b), ou o oficial da obra Na Colonia Penal (KAFKA, 2001b), ou ainda como o filho, em O Veredicto (KAFKA, 2001a), ou seja, a própria obra teria sido destruída como foram os seus personagens. A esse respeito, é difícil não interpretarmos prospectivamente os últimos quadros de van Gogh, nos quais os corvos sobrevoando as plantações ensolaradas expressam, ao mesmo tempo, a genialidade artística e a psicose depressiva que anunciam o suicídio. Nesse sentido, a ordem de destruição dada ao melhor amigo combina perfeitamente com a pessoa que se sente como uma barata, um cachorro ou um rato, e expressa sua condição sub-humana até morrer em conformismo e desespero e ter como último desejo ser jogado no lixo para não incomodar mais (A Metamorfose (KAFKA, 2002a) e O Artista da Fome (KAFKA, 2002d)).

 

7. Ressurreição, Religiosidade e Transcendência na Luta entre a Arte e a Patologia

Na luta entre o Bem e o Mal, entre o exercício das funções estruturantes não fixadas e as fixadas, ou seja, entre a Consciência e a Sombra, a função estruturante da criatividade desempenha um papel central na vida individual e cultural (BYINGTON, 1994). Apesar de entrelaçar-se com a patologia na personalidade, a criatividade produtiva busca sempre englobar e ultrapassar a patologia que ameaça estagnar a personalidade e destruir a cultura.

Coube à saudosa Nise da Silveira o dom de demonstrar através da criatividade artística que até mesmo a esquizofrenia pode apresentar a continuidade do processo de individuação coordenado pelo Arquétipo Central. Estão à disposição dos estudiosos vídeos de pacientes portadores de esquizofrenia - Carlos Pertuis, Fernando Diniz e Adelina Gomes - que registram seus casos clínicos e sua criatividade artística durante sua internação no Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro (SILVEIRA; HIRSZMAN, 1986a; 1986b; 1986c).

No caso de Kafka, a gravidade de sua fixação na defesa sadomasoquista manteve sua vida num sofrimento atroz e terminou por expressar sua depressão suicida na ordem para que sua obra fosse destruída. Destruir a obra genial do artista seria matar sadicamente, pois com intenção, ou seja, dolo, uma das maravilhas da literatura do século XX. Seria o triunfo da patologia sobre a Arte que, através de um estilo expressionista exuberante de criatividade, expôs, talvez como ninguém, a maldade prepotente, maquiavélica e opressiva que, através da defesa sádica, fere a vulnerabilidade impotente da defesa masoquista e destrói a esperança dos oprimidos.

A consagração da arte de Kafka após sua morte tem um significado simbólico especial, que é o triunfo da Arte para além do Self Individual. Morreu o artista em meio ao sofrimento e ao desespero. Mas isto não é o fim. A ressurreição no Self Cultural mantém-no vivo, levando adiante a sua luz para continuar expondo o Mal e defendendo o Bem no caminho da humanidade.

 

Referências

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Recebido em: 25/04/2019
Revisão: 22/05/2019

 

 

1 Artigo publicado na Junguiana, Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, São Paulo, nº 22, 2004, p. 87-107.

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