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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

A morte e a ressurreição do Messias. A Sombra, o Mal e o Anticristo. Um estudo da função ética, pela Psicologia Simbólica Junguiana1

 

The death and resurrection of the Messiah. The Shadow, the Evil and the Antichrist. A study of the ethical function, by Jungian Symbolic Psychology

 

La muerte y la resurrección del Mesías. La Sombra, el Mal y el Anticristo. Un estudio de la función ética, por la Psicología Simbólica Junguiana

 

 

Carlos Amadeu B. Byington

Médico psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Educador e Historiador. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. E-mail: c.byington@uol.com.br. Site: www.carlosbyington.com.br

 

 


RESUMO

O artigo conceitua o Arquétipo da Sombra como o Arquétipo do Mal na Psicologia Simbólica Junguiana e busca integrá-lo como expressão do Arquétipo Central, ao lado do Arquétipo do Bem.
A interpretação de Jung da limitação da imagem de Jeovah na relação com Job é aqui continuada com o reconhecimento do sadismo do Deus patriarcal, que necessita do filicídio sacrificial para transformar-se no Deus da compaixão e do entendimento, pois só assim se tornará a Trindade e expressará o Arquétipo da Alteridade.
Em conclusão, o autor segue Jung na interpretação do Apoccomo a Sombra do Novo Testamento e chama a atenção para o texto ser escrito em nome de Jesus, o que sugere a integração do símbolo do Anticristo no mito, como a Sombra de Jesus.

Palavras-chave: anticristo, arquétipo da sombra e do mal, morte, ressurreição, deus patriarcal, santíssima trindade, deus da alteridade.


ABSTRACT

The article conceives the archetype of shadow as the archetype of evil in Jungian Symbolic Psychology and tries to interpret it as an expression of the central archetype (Self) side by side with the archetype of good.
Jung's interpretation of Jehovah's limitation in the relationship with Job is followed by the recognition of the patriarchal sadism within the Godhead which needs the sacrifice of the Son to be transformed in the God of compassion and understanding because only so will it become the Trinity capable of expressing the archetype of alterity.
In conclusion, the author follows Jung in the interpretation of the Apocalypse as the shadow of the New Testament and calls attention for Jesus' shadow expressed in His name as symbol of the integration of the Anti-Christ in the myth.

Keywords: antichrist, shadow and evil archetype, death, resurrection, patriarchal god, holy trinity, god of alterity.


RESUMEN

El artículo conceptualiza el Arquetipo de la Sombra como el Arquetipo del Mal en la Psicología Simbólica Junguiana y busca integrarlo como expresión del Arquetipo Central, al lado del Arquetipo del Bien.
La interpretación de Jung de la limitación de la imagen de Jeovah en la relación con Job es aquí continuada con el reconocimiento del sadismo del Dios patriarcal, que necesita del filicidio sacrificial para transformarse en el Dios de la compasión y del entendimiento, pues sólo así se convertirá en la Trinidad y expresará el Arquetipo de la Alteridad.
En conclusión, el autor sigue a Jung en la interpretación del Apocalipsis como la Sombra del Nuevo Testamento y llama la atención sobre el texto ser escrito en el nombre de Jesús, lo que sugiere la integración del símbolo del Anticristo en el mito, como la Sombra de Jesús.

Palabras clave: anticristo, el arquetipo de la sombra y del mal, muerte, resurrección, dios patriarcal, santísima trinidad, dios de la alteridad.


 

 

Os mitos são projeções de funções estruturantes simbólicas que expressam o Arquétipo Central através dos Arquétipos Regentes. Ao serem elaborados, formam com o tempo, a identidade do Ego e do Outro na Consciência. Eles nos trazem o conhecimento objetivo e subjetivo. Nosso mito de criação, por exemplo, nos trouxe, entre outras vivências, a função ética, que deu origem às Tábuas da Lei. Por sua vez, o Mito Cristão, ativou intensamente no Self a função estruturante da compaixão e do discernimento, e nos levou à democracia e às ciências modernas (BYINGTON, 2008).

Devido à dissociação subjetivo-objetivo ocorrida no final do século XVIII quando a ciência tomou o poder na universidade, muitas funções psíquicas, com forte predominância subjetiva, deixaram de ser estudadas, como por exemplo, a função ética. Durante o século XIX, com a hipnose e, posteriormente, com a descoberta da formação do Ego e dos processos inconscientes pela Psicanálise, o subjetivo voltou, paulatinamente a ser tema de pesquisa. Assim, ainda que tardiamente, a função estruturante da ética pode ser estudada dentro da ciência, na teoria psicológica. Sua primeira e grande limitação, porém, já existia na religião a identificação redutiva do Mal com a condição humana dentro do conceito de pecado original. Esta redução continuou, quando a psicanálise descreveu toda criança como perverso-polimorfa ao nascer, e, por isso, necessitada de repressão para formar um Superego e civilizar-se.

Jung, por sua vez, desenvolveu, com muita frequência e ênfase, o tema da conjunção de opostos dentro do Self, enfatizando a inclusão do Bem e do Mal dentro da imagem de Deus. Em função dessa postura, combateu ferrenhamente a doutrina católica do Summum Bonum, na qual Deus é considerado exclusivamente bom e do Privatio Boni, na qual o Mal é conceituado como a ausência de Deus (cartas entre Jung e Father-While).

Apesar de Jung descrever o Bem e o Mal, principalmente dentro da religiosidade, como uma polaridade fundamental do Self, a Psicologia Analítica não conceituou psicologicamente o aparecimento do Mal e o seu relacionamento psicodinâmico com o Bem, no processo de individuação.

O principal conceito da Psicologia Analítica que poderia incluir o Mal como função estruturante arquetípica, é a Sombra. No entanto, o conceito da Sombra na Psicologia Analítica está até hoje confuso e incapaz de abranger o Mal pelas seguintes razões:

1.Jung definiu a Sombra como sendo formada exclusivamente por símbolos do mesmo gênero que o Ego. Assim sendo, se escolhermos a Sombra para abrigar o Mal, deixamos fora dela os símbolos contrassexuais da personalidade, o que consiste numa limitação conceitual irreparável (JUNG, 1967).

2.Jung referiu-se, no Aion, ao Mal absoluto, sem explicar o que isso significa (JUNG, 1982).

3.Apesar de descrever o desenvolvimento psicológico, a Psicologia Analítica não definiu como a Sombra se forma e, sobretudo, não relacionou sua formação com o desenvolvimento do Ego. Isto ocorreu possivelmente pelo fato de até a década de 1950 não se saber que o Ego é formado pelos arquétipos.

4.A Psicologia Analítica não relacionou especificamente a formação da Sombra com as dimensões transindividuais do Self como, por exemplo, com o crime, no Direito; à destruição ambiental, na Ecologia; ao sintoma, na patologia; ao pecado, na Religião; à exploração, na economia; ao erro na Ciência; e ao Mal, na Ética.

5.Erich Neumann foi quem melhor estudou a ética na Psicologia Analítica. Ele conceituou a ética no processo de individuação como a Nova Ética em contraposição à Ética tradicional, descrita a partir das religiões (NEUMANN, 1991). Contudo, ele também não precisou como e quando se forma a Sombra no desenvolvimento e sua relação psicodinâmica com o Bem.

6.Marie Louise Von Franz escreveu sobre o Mal nos "Contos de Fada", mas incluiu na Sombra o Mal e todo o inconsciente, o que também relativizou e enfraqueceu o conceito de Sombra e invalidou seu emprego como Arquétipo do Mal (VON FRANZ, 1985). Além disso, ela afirmou que a Sombra não é só má, pois inclui símbolos bons.

Este último argumento é muito usado para não se identificar a Sombra com o Mal. No entanto, não quero afirmar que os símbolos que estão na Sombra são o Mal, mas que, por estarem fixados, passam a fazer parte do Mal. Na depressão, por exemplo, a autoestima pode estar fixada e, por isso, opera dentro do Mal e até leva ao suicídio. O fato de símbolos bons estarem dentro da Sombra e passarem a fazer parte do Mal levou a sabedoria popular a afirmar que "de boas intenções o inferno está cheio".

Quaisquer símbolos e funções estruturantes podem ser bons se estruturarem livremente a Consciência ou maus se forem fixados e estiverem na Sombra. Como escreveu Shakespeare: "Nada é bom ou mau, é o pensamento que o faz!"2 (WIKIQUOTE, 2014).

A Psicologia Simbólica Junguiana (BYINGTON, 2008) reformulou o conceito de Sombra para ser a representação do Mal na psique, e, para isso, nele integrou os conceitos de fixação, defesa, resistência e compulsão de repetição descobertos pela psicanálise. A Sombra pode assim se tornar o Arquétipo do Mal na psicologia, e relacionar-se com o Arquétipo do Bem, formando um complexo de opostos dentro do Arquétipo Central, tudo o que Jung sempre almejou.

Dentro desta perspectiva, pelo fato do Arquétipo da Sombra ser expresso por símbolos e funções estruturantes fixados durante o processo de elaboração simbólica, ele pode ser visto no Self Individual e transindividual.

A Psicologia Simbólica Junguiana descreveu também o processo de elaboração simbólica, originando cinco posições da relação Ego-Outro como as cinco inteligências do Self articuladas arquetipicamente pelo Arquétipo Central e os quatro Arquétipos Regentes. A posição indiferenciada expressa o Arquétipo Central, a insular, o Arquétipo Matriarcal, a polarizada, o Arquétipo Patriarcal, a dialética, o Arquétipo da Alteridade que inclui os Arquétipos da Anima e do Animus, e a posição contemplativa, o Arquétipo da Totalidade. Desta maneira, fica caracterizada a inseparabilidade da polaridade Ego-Outro dos arquétipos junto com as cinco inteligências arquetípicas do Self. Da mesma forma, através do conceito de Sombra, formulado acima para abranger o Mal, todas as fixações da elaboração simbólica e das cinco inteligências do Self estão nele incluídas. (BYINGTON, 2008). Gráfico

Segundo Sabina Spielrein (1912) e Jung (1912), o fenômeno da morte é aqui considerado simbolicamente dentro da transformação psicológica do processo de individuação. Assim sendo, o conceito de Morte é visto como uma função estruturante e um arquétipo operando ao lado da função estruturante e do Arquétipo da Vida, com o qual forma uma das principais polaridades do Arquétipo Central. Ambos podem ser normais ou defensivos, dependendo de estarem ou não fixados durante a elaboração simbólica (BYINGTON, 1996).

 

1. A relação da Psicologia com o Mito Cristão

Uma vez aparelhada a Psicologia com o conceito de Sombra como o Arquétipo do Mal e o conceito da Morte como arquétipo, podemos continuar a abordagem da transformação histórica da Consciência Coletiva através dos arquétipos, como fez Erich Neumann, no seu livro "História e Origens da Consciência" (1995), e Jung, no livro "Resposta a Job" (1954 p. 553-758).

No Mito de Job, o Diabo é reconhecido como filho de Deus, isto é, como função estruturante do Arquétipo Central. Ao seduzir Deus para testar Job e mostrar que sua fé é limitada, o Diabo desencadeia a elaboração da função estruturante da fé. A questão a ser examinada dentro da fé se revelará como a função estruturante da justiça.

Satanás não aponta abertamente a falta de fé de Jó porque esta realmente não existe, mas cria ardilosamente um sofrimento atroz para que Job se insurja contra Deus e que o problema da fé seja mais profundamente elaborado no Self Cultural.

Ao expressar símbolos, complexos e funções estruturantes fixados, a Sombra veicula vivências do Eixo Simbólico, ou Eixo Ego-Arquétipo Central, cujas polaridades estão fixadas e mal elaboradas, o que nos leva à pergunta: Quem é que Satanás está testando? Job ou Deus? Quem se dispõe a elaborar a Sombra, ou seja, a confrontar o Diabo, precisa estar disposto a ver o Mal tanto no Outro como em si mesmo.

Iniciado o drama, sem ter feito nada de mal, Job é despojado de sua família, sua saúde e seus bens. Inconformado, ele questiona Deus por isso, com grande convicção. Seus três amigos, Elifaz, Bildade e Zofar admitem a infelicidade de Job, mas são contra o seu protesto. A seguir, Deus se revela a Jó e lhe mostra a sua grandeza. Jó se arrepende de sua contestação e Deus lhe recompensa, devolvendo-lhe em dobro o que lhe havia tirado. Ao mesmo tempo, Deus repreende os três amigos e lhes determina que presenteiem Job.

Algo que chama a atenção na história de Job é a diferenciação que Deus faz entre Job e seus três amigos e a deferência com que Deus trata Job, cuja única atitude que o distingue dos três foi o seu protesto, inconformismo e exigência de justiça.

Job contesta porque não admite que Deus não seja justo. Mesmo voltando atrás e se arrependendo de sua contestação, é como se sua exigência de um deus justo prevalecesse no final e o privilegiasse acima dos seus três amigos, recebendo em dobro o que lhe havia sido tomado. É como se Deus dissesse: "Eu não admito minha Sombra de injustiça devido à qual caí na manipulação de Satanás, que a projetou em você, mas sou grato por você ter me diferenciado dela".

Jung referenda essa interpretação quando caracteriza a aliança de Deus com Satanás para testar a fidelidade de Job, como uma grande fraqueza. Ela evidencia a insegurança de Deus de ser amado, pela crueldade e prepotência com que tratou seu servo tão fiel. Falta só Deus acrescentar que, ao louvar Job acima dos seus amigos, isto significa que, de alguma forma, Ele prezou a crítica de Job, apesar de não a ter admitido abertamente.

Para Jung, então, o livro de Job, o Livro de Enoch, os Eclesiastes e os Salmos são capítulos preparatórios simbólicos prospectivos. Assim, pelo fato de abrir mão de qualquer pretensão teológica e de se manter claramente dentro da psicologia, Jung segue Neumann e se permite situar o Mito do Velho Testamento e a figura de Jeovah como um estágio psicológico evolutivo em direção ao Novo Testamento e à busca da encarnação do Homem-Deus.

Seguindo Erich Neumann (1995) e Jung, a Psicologia Simbólica Junguiana concorda que o mito seja o precursor arquetípico e histórico da Consciência e acrescenta que, levando-se em conta que o Ego é o produto da elaboração coordenada pelo Arquétipo Central, o símbolo do Homem-Deus, na religião, expressa o caminho mítico da encarnação do Arquétipo Central para equipar a Consciência com o Arquétipo da Alteridade.

Seguindo as cinco posições arquetípicas da elaboração simbólica, o início da criação do mundo corresponde à posição indiferenciada (urobórica) do Arquétipo Central, e os mitos da fertilidade da natureza expressam a posição insular matriarcal. Ela é seguida pelos mitos solares descritos por Neumann, que expressam a posição polarizada patriarcal. A Psicologia Simbólica Junguiana foi além e descreveu a implantação mitológica da posição dialética de Alteridade através do Mito Cristão no Ocidente e do Mito de Buda no Oriente. Segue-se a ela a posição contemplativa que representa, por exemplo, o Arquétipo da Totalidade no Taoismo. Os mitos formam a consciência com os cinco padrões de relacionamento Ego-Outro através de funções estruturantes. Como já mencionei, estas podem ser normais, ou, formar a Sombra, quando são fixadas e defensivamente distorcidas.

Desta maneira, a Psicologia Simbólica Junguiana concebeu a Teoria Arquetípica da História que descreve a encarnação progressiva dos Arquétipos Matriarcal e Patriarcal seguidos pelo Arquétipo da Alteridade. Nesse sentido, o Velho Testamento representa este processo sob a dominância do Arquétipo Patriarcal e caminha, no Ocidente, em direção à humanização do Arquétipo da Alteridade através do Novo Testamento e do Mito de Cristo.

No entanto, como já descrevi em outros textos, este caminho, longe de ser linear, mostra que a coordenação do Self pelo Arquétipo Patriarcal resiste à passagem para a dominância de alteridade e retoma o poder com frequência e de inúmeras maneiras. Apesar do simbolismo do sacrifício extremo de Jesus com a própria vida, nem por isso seu mito foi até hoje encarnado na consciência individual e coletiva em toda sua plenitude. Como nos mostram os Evangelhos Gnósticos de Nag Hammadi (1978 p. 526 e 139, minha tradução), os próprios Evangelhos Canônicos já foram patriarcalizados em várias passagens para puritanizar unilateralmente a figura de Jesus. O relacionamento de Jesus e Maria Magdalena, por exemplo, foi censurado junto com os significados terríveis da tortura da Via Crucis e da crucificação. A pasteurização defensiva patriarcal do Novo Testamento coloca o sacrifício de Jesus dentro de uma submissão total, como fizeram os amigos de Job, que encobre a brutalidade do filicídio. A frase "Porque me abandonaste?" revela o desenvolvimento da tragédia que culmina com a outra frase "seja feita a vossa vontade", o que nos lembra a submissão de Jó. No entanto, da mesma forma que Jeovah registrou o clamor de Job por um Deus justo, Ele receberá o impacto da morte sacrificial de Jesus por um Deus de amor. São estas duas passagens inseparáveis da morte sacrificial, "porque me abandonaste" e "seja feita a vossa vontade", que transformarão o Deus guerreiro possessivo, ciumento, cruel e, muitas vezes injusto, expresso pelo Arquétipo Patriarcal, no Deus amoroso da compaixão e do entendimento encarnado na Trindade como o Pai, o Filho e o Espírito Santo, expressão dialética e sublime do Arquétipo da Alteridade.

Dentro da injustiça e da brutalidade do mito, chama a atenção na história da Igreja a apresentação de Jesus crucificado e obediente, com a conotação "daquele que morreu por nós pecadores" e não "daquele que se entregou à morte como a condição de transformar seu pai". Baseada nessa aparente submissão total de Jesus, a Igreja passou a exercer o Cristianismo com mão de ferro e repatriarcalizou o Mito a tal ponto, que desencadeou o controle e a repressão até institucionalizar a Inquisição, uma característica patriarcal que, durante séculos, violenta o Mito.

Sabemos o quanto o Arquétipo Patriarcal é capaz de produzir Sombra quando opera defensivamente e, por isso, como reconhece Jung, não há como não se associar o Apocalipse de São João com as defesas de repressão e de idealização presentes no Novo Testamento.

O Mito do Cristo se propõe ser, por excelência, o Mito do Homem-Deus e, por isso, junto com a redução erótica do feminino vemos também a redução da agressividade e do Mal depositado no Anticristo e no Diabo. Mas, diante da bondade e da compaixão depositadas no Cristo, como poderia ele englobar também o Diabo e o Mal?

Jung respondeu parcialmente esse impasse, condenando a receita apriorística de vivenciar a divindade unicamente através dos textos bíblicos e recomendando a experiência viva de Deus.

Depois de sua primeira comunhão, Jung relata:

só pouco a pouco, durante os dias que se seguiram, emergiu a ideia: nada acontecera... Por outro lado, era perfeitamente claro que Jesus, o homem, tinha relação com Deus. Estava desesperado em Getsêmani e na cruz, depois de haver ensinado que o amor e a bondade de Deus eram o de um bom pai. Mas vira, então, quanto Deus pode ser terrível. Isso eu podia compreender. Mas, porque aquela pobre comemoração com pão e vinho? Pouco a pouco tornou-se claro para mim que aquela comemoração fora uma deplorável experiência. Dela, só resultaria o vazio, pior ainda, uma perda. Para mim, não se tratava de uma religião, mas uma ausência de Deus. Não voltaria mais à Igreja, que, para mim, não era um lugar de vida, mas de morte. (JUNG, 1961, p. 59)

Jung passou a cultuar Deus através da experiência, muitas vezes terrível, do Sagrado, caracterizado como o Numinosum (OTTO, 1959). Apesar de muito fascinante e de pouco ortodoxa, essa formulação do Mal dentro da divindade, teve grandes discussões teológicas (prefácio Father-While), mas não conseguiu situar a presença do Mal em Deus (no arquétipo) claramente na Psicologia.

No livro de Job (1954), Jung aborda o Livro das Revelações ou O Apocalipse de São João como a Sombra dos Evangelhos Canônicos, que expressariam por compensação, como num sonho, tudo o que ficara faltando no Cristianismo, como a agressividade e o feminino na imagem do Cristo como Homem-Deus. Assim sendo, seria inevitável surgir de forma vulcânica no Apocalipse a imagem erótica do feminino e da agressividade sombria sob a forma do Anticristo. O extraordinário, porém, é que o texto é escrito em nome de Jesus, o que nos permite ver psicodinamicamente o Anticristo como a Sombra do Cristo, assim como o Diabo, o filho sombrio de Deus.

Assim, é de suma importância para corroborar isto, registrar que o Apocalipse de João começa:

Revelação de Jesus Cristo, a qual Deus lhe deu, para mostrar aos seus servos as coisas que brevemente devem acontecer; e pelo seu anjo as enviou, e as notificou a João seu servo; O qual testificou da palavra de Deus, e do testemunho de Jesus Cristo, e de tudo o que tem visto (Apocalipse, 1: 1-2).

A conclusão do livro é: "Aquele que testifica estas coisas diz: Certamente cedo venho. Amém. Ora vem, Senhor Jesus" (Apocalipse, 22:20). A bênção: "A graça de nosso Senhor Jesus Cristo seja com todos vós. Amém" (Apocalipse, 22:21).

Dentro da perspectiva teórica da Psicologia Simbólica Junguiana, a exegese do Mito do Cristo dentro da perspectiva da encarnação do Homem-Deus necessita ser percebida na transição do Arquétipo Patriarcal para o Arquétipo da Alteridade. Segundo esta maneira de ver, já durante os Evangelhos Canônicos e posteriormente, na História da Igreja, principalmente na Inquisição, observa-se a implantação da Alteridade junto com atuações regressivas defensivas patriarcais que muito desqualificaram a mensagem amorosa de Jesus.

O brutal sentido da morte sacrificial de Jesus para gerar a Ressurreição e a glorificação do Messias é aqui compreendido como o extraordinário sofrimento necessário para transformar a agressividade sádica repressora do Pai com a entrega amorosa do Filho. O resultado do sacrifício nesse sentido é possibilitar a reunião do Pai com o Filho através do Espírito Santo para instaurar a compaixão e o entendimento como duas das maiores virtudes da busca da realização do Homem-Deus.

 

Referências

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Recebido em 25/03/2019
Revisão em 28/05/2019

 

 

1 Publicado originalmente na Revista Junguiana, 29/1, 2010, p. 50-57
2 "Nothing is either good or bad, but thinking makes it so!".

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