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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

 

Uma explicação arquetípica da crucificação de Jesus pela teoria arquetípica da história1

 

An archetypical explanation of the crucifixion of Jesus by the archetypical theory of history

 

Una explicación de la crucificación de Jesús por la teoría arquetípica de la historia

 

 

Carlos Amadeu B. Byington

Médico, psiquiatra e analista junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da psicologia simbólica junguiana. Educador e historiador. E-mail: c.byington@uol.com.br; site: www.carlosbyington.com.br

 

 


RESUMO

Minha teoria arquetípica da história (BYINGTON, 1983) segue os passos de Bachofen e de Neumann com a modificação do conceito do arquétipo matriarcal para o arquétipo da sensualidade, e do arquétipo patriarcal para o arquétipo da organização, ambos presentes na psique da mulher, do homem e do Self cultural (BYINGTON, 2013).
Essa teoria descreve a dominância matriarcal durante a vida nômade dos primeiros 140 mil anos da história (WATSON, 2005) e a dominância patriarcal iniciada após a revolução agropastoril, mais de 12 mil anos atrás, quando nos tornamos povos assentados.
A seguir, marcada pelos mitos do Buda, há 2.500 anos, e do Cristo, há 2 mil anos, essa teoria descreve o início da implantação mitológica e civilizatória do arquétipo da alteridade, cujos heróis messiânicos pregam a elaboração dos confrontos humanos pela dialética da compaixão.
Finalizando, o artigo elabora a dificuldade da transcendência da dominância do arquétipo patriarcal para a implantação do arquétipo da alteridade. Concluindo, o autor tenta explicar a razão para Jesus não haver evitado Sua crucificação na implantação da missão heroica para transformar o deus patriarcal, do Velho Testamento, na Trindade, do Novo Testamento.

Palavras-chave: nomadismo, arquétipo matriarcal, sociedades assentadas, arquétipo patriarcal, metanoia, arquétipo da alteridade, arquétipos da anima e do animus, crucificação.


ABSTRACT

The archetypal theory of history (BYINGTON, 1983) follows the work of Bachofen and Neumann with the modification of the concept of the matriarchal archetype as the archetype of sensuality and of the patriarchal archetype as the archetype of organization, both present in the psyche of man and woman and in the cultural Self (BYINGTON, 2013).
This theory describes matriarchal dominance during the nomad life of the first 140 thousand years of history (WATSON, 2005) followed by patriarchal dominance begun more than 12 thousand years ago, after the agropastoral revolution, when we became settled societies.
Next, marked by the myth of Budha, about 2,500 years ago and by the myth of Christ, 2,000 years ago, this theory describes the beginning of the mythological civilizing implementation of the alterity (otherness) archetype, whose messianic hero preach for the elaboration of human conflicts through the dialectic of compassion.
Finally, the article elaborates the difficulty of the transcendence of patriarchal dominance in the implementation of the archetype of alterity. In conclusion, the author tries to explain the reason Jesus did not avoid his crucifixion to implant the heroic mission of transforming the patriarchal God of the Old Testament into the Trinity of the New Testament.

Keywords: nomadism, matriarchal archetype, settlers' societies, patriarchal archetype, metanoia, alterity (otherness) archetype, anima and animus archetypes, crucifixion.


RESUMEN

Mi teoría arquetípica de la historia (BYINGTON, 1983) sigue los pasos de Bachofen y de Neumann con la modificación del concepto del arquetipo matriarcal para el arquetipo de la sensualidad, y del arquetipo patriarcal para el arquetipo de la organización, ambos presentes en la psique de la mujer, el hombre y el self cultural (BYINGTON, 2013).
Esta teoría describe la dominancia matriarcal durante la vida nómada de los primeros 140 mil años de la historia (WATSON, 2005) y la dominación patriarcal iniciada tras la revolución agropastoril, hace más de 12 mil años, cuando nos convertimos en pueblos asentados.
A continuación, marcada por los mitos de Buda, hace 2.500 años, y de Cristo, hace 2 mil años, esta teoría describe el inicio de la implantación mitológica y civilizatoria del arquetipo de la alteridad, cuyos héroes mesiánicos predican la elaboración de los enfrentamientos humanos por la dialéctica de la compasión.
Finalizando, el artículo elabora la dificultad de la trascendencia de la dominación del arquetipo patriarcal para la implantación del arquetipo de la alteridad. Concluyendo, el autor intenta explicar la razón de que Jesús no haya evitado su crucifixión en la implantación de la misión heroica para transformar el dios patriarcal, del Antiguo Testamento, en la Trinidad, del Nuevo Testamento.

Palabras clave: nomadismo, arquetipo matriarcal, sociedades asentadas, arquetipo patriarcal, metanoia, arquetipo de la alteridad, arquetipos de la anima y del animus, crucifixión.


 

 

Na minha teoria arquetípica da história, segui os trabalhos de Erich Neumann a respeito do desenvolvimento individual, descrito em seu livro póstumo A Criança (1991), e do desenvolvimento cultural, descrito em seu trabalho anterior, História da Origem da Consciência (1995).

A primeira diferença entre a minha visão e os conceitos de Neumann é que ele considera o arquétipo matriarcal como o arquétipo da grande mãe. Isso exclui o masculino da formação original da consciência. Como já assinalei, considero a perspectiva de Neumann redutivista porque concebo o arquétipo matriarcal como o arquétipo da sensualidade, o que inclui a mãe e o pai, o feminino e o masculino.

Na redução da formação da consciência ao arquétipo da grande mãe como o único representante da sensualidade matriarcal, Neumann seguiu Johann Jakob Bachofen e seu trabalho épico Direito Materno (1967). Nesse livro, Bachofen denominou matriarcado um período da história que precede a dominância patriarcal moderna, a qual denominou patriarcado. Ele associou o matriarcado às grandes deusas da mitologia, ao feminino, à maternidade e às mulheres dirigindo a sociedade.

A falácia da tese de Bachofen (1967) foi decretada quando a antropologia e a arqueologia não encontraram sociedades dirigidas por mulheres. Assim, após um sucesso acadêmico retumbante, na segunda metade do século XIX, o trabalho de Bachofen caiu em total descrédito.

Neumann, entretanto, considerou que a ideia da precedência do matriarcado em relação ao patriarcado é válida na psicologia e na mitologia, sob uma perspectiva arquetípica, e argumentou que Bachofen havia fracassado porque relacionara o matriarcado à história social real.

Dessa maneira, Neumann defendeu a importância da tese de Bachofen: as características matriarcais precedem as patriarcais na formação da consciência coletiva. Sob meu ponto de vista, o erro de Neumann, assim como o de Bachofen, foi continuar a reduzir o arquétipo matriarcal ao arquétipo da grande mãe, ao papel de mãe, ao feminino, excluindo o pai e o masculino das origens da formação da consciência.

A justificativa de Neumann para a redução do arquétipo matriarcal à grande mãe baseou-se numa suposta exclusividade mitológica das mães na fertilidade do período original da mitologia. Essa suposição me parece errada e redutivista, porque muitos deuses pais também expressam a fertilidade primordial. Se, de um lado, temos grandes deusas da fertilidade representadas por Ishtar, Demeter, Ísis, Artemis, Afrodite, Baubo, Gaia, Rea e muitas outras, por outro lado, temos também grandes deuses da fertilidade, como o grande Zeus, o principal fertilizador na formação do panteão olímpico, Uranos, Cronos, Ea, Osíris e muitos outros. Na religião afro-brasileira, iorubá-nagô, as divindades da fertilidade criativa primordial são muito bem balanceadas em gênero. Entre as femininas, temos Iemanjá (água salgada), Oxum (água doce), Oiá-Iansã (amor conjugal e maternidade), Eúa (mitigadora da sede), Nanã (fornecedora do barro para moldar a espécie humana) e muitas outras. Entre os masculinos, temos Exu (promotor do sacrifício - ebó), Ogum (descobridor do ferro), Oxóssi (descobridor da caça), Odudua, que pode ser tanto masculino (VERGER, 1981) como feminino, criador da terra (SANTOS, 1977).

Como mencionei acima, a psicologia tradicional, baseada no evolucionismo, desqualificou o estado emocional mental primordial da infância (arquétipo matriarcal) e elegeu, como superior e maduro, o princípio da realidade correspondente ao superego, à persona e ao arquétipo patriarcal. Enfatizei ter sido Neumann uma exceção, porque ele considerou o estágio primordial como um arquétipo e isso manteve a importância dessa etapa ao longo da vida.

Seguindo Bachofen (1967), Neumann, ao considerar o arquétipo matriarcal como o arquétipo da grande mãe, maternal e feminina, deixou de fora o masculino e o pai das relações primordiais. Assim, ele estabeleceu um desequilíbrio na teoria de desenvolvimento que precisa ser corrigido.

Esse é o motivo pelo qual mudei o sentido do arquétipo matriarcal, sinônimo de grande mãe, para o arquétipo da sensualidade, que inclui a mãe e o pai, o masculino e o feminino. Da mesma maneira, mudei o sentido de arquétipo patriarcal como sinônimo do arquétipo do pai e do masculino para o arquétipo da organização, que também inclui a mãe e o pai, o feminino e o masculino.

Ao reduzir o matriarcal ao feminino e o patriarcal ao masculino, Neumann cometeu o mesmo erro de Bachofen e da psicologia tradicional: reduzir a sensualidade do quatérnio primário à mãe, ao seio e ao feminino, e a organização moral ao complexo paterno, ao pai e ao masculino.

Essa redução da sensualidade (Eros e Vênus) à mãe e à mulher e da organização (Logos e Marte) ao pai e ao homem pertence à fase circunstancial da história (dominação patriarcal), que durou mais de 10 mil anos e que não deve ser considerada como realidade psicológica estrutural. Ao contrário, ela deve ser transcendida, de modo que mulheres e homens, mães e pais, crianças de ambos os gêneros e de todas as culturas possam buscar o pleno desenvolvimento de sua consciência coordenado pelo arquétipo (anima e animus) da alteridade, dentro de uma perspectiva de liberdade e democracia. É isso o que pretendo propiciar com as concepções da psicologia simbólica junguiana.

 

1. Pré-história

Uma das grandes ilustrações de que a integração dos arquétipos depende da experiência existencial é a duração dos 140 mil anos de dominância no Self cultural do arquétipo matriarcal, na posição passiva. Nossa espécie tem, aproximadamente, 150 mil anos, de acordo com a biologia molecular (WATSON, 2005). Durante cerca de 140 mil anos, fomos grupos nômades caçadores-coletores com nossa consciência coordenada pela posição matriarcal insular. Nossas vidas eram centradas nos símbolos da comida e na função estruturante da alimentação que guiava nossas andanças. Vivenciamos o arquétipo matriarcal (sensualidade) e o elaboramos predominantemente na posição passiva, porque, além da pesca e da caça, comíamos apenas o que a natureza nos dava. Pouco a pouco, durante séculos, integramos a sensualidade matriarcal na posição ativa, para melhorar instrumentos, para tecer, para fazer roupas ou para caçar e pescar. Alguns instrumentos também eram usados como armamento, para combater grupos rivais. O fogo era usado para cozinhar e para manter animais selvagens afastados. A magia era praticada para todos os fins: a polaridade ego-outro era vivida de maneira tão íntima e simbiótica que o ego podia tratar o outro como parte de sua própria imaginação e desejo. Pela mesma razão, a religiosidade era vivida num panteísmo em que tudo é sagrado e subordinado à integralidade na participação mística (LÈVI-BRÜHL, 1936). O sentimento era inerente à intimidade e à intuição, relacionando permanentemente as dimensões consciente e inconsciente.

Durante milhares de anos, a sexualidade não foi associada à gravidez e à função paterna. Os homens eram protetores, amantes, caçadores e guerreiros, mas não pais. Mães procriavam com diferentes homens, sem associá-los à sexualidade e à gravidez. O objetivo da vida era comer e perambular para buscar mais comida, ter relações sexuais, criar os filhos, cantar e dançar em rituais religiosos, fabricar cerâmica e utensílios, escapar de animais selvagens, combater grupos rivais e sobreviver.

Durante esses 140 mil anos de dominância matriarcal, predominantemente na posição passiva, iniciou-se, paulatinamente, uma integração do arquétipo matriarcal na posição ativa. O acesso permanente à comida, entretanto, não foi alcançado e a coordenação do arquétipo matriarcal permaneceu grandemente na posição passiva. Dessa forma, nossa espécie era apenas uma entre inúmeras outras.

O historiador Yukal Noah Harari sugere que tenha ocorrido uma mutação em nossa espécie, por volta de 70 mil anos atrás, que teria desencadeado um grande aumento de nossa capacidade imaginativa, seguida por uma revolução cognitiva. Daí em diante, teríamos nos tornado capazes de formar extensos grupos comunitários unidos e guiados por ideias (HARARI, 2015).

 

2. A revolução agropastoril. A primeira metanoia da teoria arquetípica da história

Por volta de 12 mil anos atrás, começamos a plantar e a criar animais, sobretudo equinos, bovinos, ovinos e caprinos. Cães foram domesticados muito antes. Isso significou a integração da posição insular do arquétipo matriarcal na posição ativa e a ativação do arquétipo patriarcal na posição passiva.

Considero a revolução agropastoril a primeira metanoia da teoria arquetípica da história, porque trouxe a primeira mudança de dominância arquetípica na consciência coletiva, Após participarmos da criatividade da natureza por mais de 140 mil anos, finalmente aprendemos a imitá-la, cavando buracos no solo, neles enfiando as sementes e produzindo nosso próprio alimento. Após tão longo tempo de busca da nutrição na vida nômade, finalmente integramos essa capacidade da natureza, controlamos a produção do nosso próprio sustento e tornamo-nos assentados. Assim fazendo, integramos o arquétipo matriarcal na posição ativa, realizamos uma revolução sociológica, ultrapassamos a maioria das outras espécies e passamos a dominar e a mudar a vida em nosso planeta.

A energia poupada como fim do trabalho exaustivo da atividade nômade foi aplicada no segundo grande problema da espécie humana: a organização social comunitária das nossas tarefas diárias como assentados. Esse desafio extraordinário ativou intensamente o arquétipo patriarcal, o arquétipo da organização. Para nós, é difícil imaginar a grandiosidade dessa metanoia: a aquisição da autossuficiência alimentar e a criatividade do arquétipo da organização da vida social.

A formação de vilas e pequenos povoados, seguidos pelas cidades, foi resultado da organização da vida social de seres humanos sedentários. Muitas novas funções estruturantes foram ativadas, como a organização do território individual, da propriedade privada e da herança centradas na família patriarcal, como célula da sociedade. Nessa etapa, a sexualidade foi plenamente relacionada à procriação. Os papéis do pai e da mãe na família foram firmemente estabelecidos. O tabu do incesto, a virgindade feminina antes do casamento e a proibição legal do adultério feminino tornaram-se politicamente corretos. A organização social patriarcal dividiu a sociedade em classes subordinadas a uma coordenação central, o que, em seu tempo, formou a ideia do Estado (ENGELS, 1977).

A função organizadora do arquétipo patriarcal separa-se da posição simbiótica matriarcal insular (ego-outro) e relaciona as polaridades, separadas entre si, para formar sistemas. A separação das polaridades e a função de organização são grandemente reforçadas pelas funções estruturantes do poder e da agressividade para manter a abstração, a tradição, a ordem e a desigualdade social. Essa organização patriarcal rígida foi imensamente produtiva para dirigir a sociedade e para dominar a natureza e as nações, na paz e na guerra. A visão de mundo patriarcal organizou todas as polaridades: a polaridade inferior-superior, reforçada pelas funções estruturantes da agressão e do poder, tornou-se um denominador comum a todos os sistemas da consciência.

Todas as polaridades sofreram essa elaboração hierárquica e foram integradas na consciência, de acordo com a conotação inferior-superior. Todas as forças naturais foram dominadas e organizadas com a conotação inferior-superior do poder e do controle (ADLER, 1914). A abstração simbólica e a metaforização produzidas pelo arquétipo patriarcal introduziram a consciência na dimensão das ideias e das ideologias. Foi ela que permitiu o aumento considerável dos grupos humanos, formando sociedades, em função de uma identificação com valores e ideias (HARARI, 2015).

 

3. As cinco posições arquetípicas (inteligências) da consciência

O arquétipo do herói é o grande auxiliar da função estruturante do arquétipo central (BYINGTON, 2002). Ele age de forma diferente em cada uma das cinco inteligências arquetípicas do Self. Como descrevi anteriormente, elas são: a posição unitária indiscriminada (urobórica) ego-outro do arquétipo central, a posição insular binária ego-outro do arquétipo matriarcal, a posição ternária polarizada ego-outro do arquétipo patriarcal, a posição quaternária dialética ego-outro do arquétipo da alteridade, que inclui os arquétipos da anima e do animus, e, finalmente, a posição unitária contemplativa ego-outro do arquétipo da totalidade (BYINGTON, 2008).

Reforçando a implantação da posição polarizada do arquétipo patriarcal, o arquétipo do herói expressou muitos feitos extraordinários na conquista das forças planetárias naturais, na travessia de oceanos, aventurando-se na descoberta dos polos norte e sul e escalando as mais altas montanhas. Seus feitos mais ousados e mesmo suicidas aconteceram nos campos de batalha, combatendo inimigos, conquistando nações e morrendo, em nome do dever, para alcançar a glória. A função do arquétipo do herói, reforçando o arquétipo patriarcal na mitologia, sugeriu erradamente ao mundo acadêmico ser o herói patriarcal o único padrão possível de expressão do arquétipo do herói (CAMPBELL, 1995). Na realidade, cada posição ego-outro na consciência tem uma forma característica do arquétipo do herói.

Seguindo Freud, descrevo a formação das defesas, da patologia, da Sombra e do mal, fixação das funções estruturantes normais. É o conceito de fixação, de defesa, de complexo e de Sombra que nos permite compreender como o arquétipo patriarcal foi capaz de criar e de organizar tantos feitos geniais do bem na civilização e ao mesmo tempo realizar tanta carnificina, destruição e horror, dentro do mal (BYINGTON, 2006 p. 15-46).

Após muitos milhares de anos, durante os quais a organização patriarcal modelou fronteiras, sociedades e culturas, a espécie humana conquistou a Terra, reinou sobre ela e transformou a maioria das espécies de sua fauna e de sua flora. Sua forma extrema de dominação foi a guerra e o genocídio, que mancharam com sangue, matança, coragem, covardia, vergonha e horror os mais gloriosos ideais da história "civilizada".

A organização patriarcal moldou de tal maneira uma visão de mundo sistematicamente hierárquica que as sociedades modernas estão profundamente divididas entre ricos e pobres, entre a elite econômica, política e militar e a maioria do povo, mesmo nas democracias. As minorias foram estigmatizadas, dominadas e, quando rebeladas, frequentemente dizimadas. A visão de mundo patriarcal separou rigidamente as polaridades e estabeleceu uma clara discriminação, favorecendo um polo e desfavorecendo outro, de acordo com a sua capacidade de poder e agressão. As polaridades homem-mulher e adulto-criança foram fortemente afetadas. O poder físico dos homens e dos adultos estabeleceu claramente uma relação de dominação e opressão nas sociedades, com a dominação patriarcal, que varia, mas que foi e ainda é flagrantemente presente em todas elas.

Apesar da lenta implantação da alteridade nas dimensões econômica, política e social em busca do socialismo democrático, o controle patriarcal ainda resiste intensamente à implantação da liberdade, igualdade, sustentabilidade, e amor social propiciado pela posição dialética do arquétipo da alteridade.

 

4. A implantação do arquétipo da alteridade. Os mitos de Buda e de Cristo

Após milhares de anos de dominação patriarcal, durante os quais nações e impérios foram formados, escravizados e destruídos, classes sociais foram firmemente estabelecidas. A rígida mentalidade de tradição, família e propriedade - e desigualdade - foi incorporada à consciência coletiva.

Com o tempo, a dominação patriarcal e seu herói fizeram-se extraordinariamente poderosos. Sua sombra de derramamento de sangue, devastação da natureza e das relações sociais tornou-se, a cada século, mais ameaçadora para a sobrevivência da espécie (LOVELOCK, 2000). A exaustão progressiva das reservas naturais, a superpopulação, a crescente capacidade destrutiva dos armamentos, os privilégios da elite e a pobreza da maior parte das sociedades, a poluição da natureza, as disfunções climáticas, a corrupção e o crime organizado começaram a ameaçar nossa sobrevivência. A grande questão revelada na dimensão patriarcal deveu-se, exatamente, a seu poder de organização, que havia assegurado sua bem-sucedida expansão. A solução de conflitos pela agressão e, em casos extremos, pela guerra tornou-se a demonstração clara da natureza da dominância patriarcal. Era óbvio que o poder destrutivo crescente, adquirido por nações rivais, inviabilizaria um dia a expressão criativa dos conflitos mundiais.

Uma colisão emblemática ocorreu no começo de nossa era, quando o gigantesco Império Romano ocupou o Oriente Médio e escravizou Israel. Ambas as culturas expressavam formas de desenvolvimento patriarcal organizado extremamente diferentes entre si. Roma havia subjugado uma grande parte do mundo pelo poder militar. Israel havia acumulado uma das mais antigas tradições de feitos militares, de cultura diferenciada e refinamento espiritual, todos registrados no Antigo Testamento, baseados na união com Deus e incompatíveis com a opressão por outra cultura.

O confronto armado e a iminência do genocídio dos israelitas criaram uma tensão extraordinária no Self cultural de Israel, o qual ativou com muita intensidade dois arquétipos e duas representações heroicas do mito do Messias, ambas tradicionais na cultura judaica (BRIERRE-NARBONNE, 1933).

O arquétipo patriarcal messiânico no misticismo judeu foi ativado com base na tradição patriarcal gloriosa, estruturada desde o êxodo do Egito, da revelação dos Dez Mandamentos e da longa jornada para a Terra Prometida. A glória militar veio das monarquias brilhantes de Saul, Davi e Salomão. Em muitas profecias messiânicas patriarcais, o messias patriarcal é o retorno do próprio Rei Davi (BRIERRE-NARBONNE, 1933).

Essa forte tradição patriarcal dominou o Sinédrio, o governo da comunidade israelita. Dessa forma, a maioria do povo seguiu a tradição patriarcal identificada com a rebelião armada contra Roma. Ela ansiava pelo arquétipo do herói messiânico patriarcal que inclui a conotação gloriosa da morte sacrificial na batalha.

Contudo, um herói messiânico extraordinariamente diferente também foi ativado no Self cultural judeu. Ele pertencia à tradição messiânica judaica, mas em vez de solucionar conflitos pela agressão e pelo poder, professava a compaixão e a interação pacífica na elaboração do conflito, Ele pregava a relação afetuosa e compassiva para enfrentar a discordância e a substituição do poder pelo amor, para evitar a repressão (BRIERRE-NARBONNE, 1933).

Essa posição da relação ego-outro para elaborar o conflito humano pertence claramente a um arquétipo diferente daquele da posição polarizada da organização ego-outro do arquétipo patriarcal. Chamei-o arquétipo da alteridade porque alter significa "o outro" em latim e tem uma raiz comum com as línguas latinas.

O arquétipo da alteridade expressa-se pelo ego-outro na posição dialética quaternária. Ele é fundamentalmente diferente, mas reúne tanto a posição insular binária ego-outro do arquétipo matriarcal, coordenado pela sensualidade e pelo desejo, como a posição ternária polarizada do arquétipo patriarcal, coordenado pela hierarquia, baseada no poder e na dominação. Entretanto, a fim de operar plenamente dessa forma complexa e profunda, a inteligência da alteridade necessita abranger a capacidade estruturante dos arquétipos matriarcal e patriarcal e de todas as demais polaridades. A posição ego-outro do arquétipo da alteridade é quaternária porque é coordenada pela compaixão e pela igualdade das diferenças, tanto do ego como do outro. O ego tem o direito de discordar do outro e também de apontar a sombra dele. Da mesma maneira, o outro pode discordar do ego e também apontar a sua sombra. O arquétipo da alteridade abrange os arquétipos da anima e do animus descritos por Jung como os arquétipos condutores (psicopompos), aqueles que coordenam o desenvolvimento no processo de individuação para transcender a dominação patriarcal do Self individual e do Self cultural. Isso o torna o arquétipo da segunda metanoia da teoria arquetípica da história.

Continuando o caminho de Erich Neumann na descrição da formação arquetípica da consciência (NEUMANN, 1995), vemos que ele descreveu a coordenação da consciência coletiva pelo arquétipo matriarcal, seguido pelo arquétipo patriarcal e os sucedeu pelo que ele chamou de mito da transformação, ilustrado pelo mito egípcio de Osíris. Embora Neumann tenha sido muito criativo, trazendo o mito de Osíris para ultrapassar o mito patriarcal, por meio do tema da morte e do renascimento, ele se desviou da sequência mitológica na cultura ocidental. Assim, apesar de ter se mantido na perspectiva arquetípica para descrever a transformação cultural pós-patriarcal, Neumann ignorou o papel central do mito cristão na cultura ocidental e, dessa maneira, perdeu o sentido da história real.

O mito que coordenou predominantemente a implantação do arquétipo patriarcal na cultura ocidental foi ilustrado, de forma exuberante, pelo Antigo Testamento. Sua transformação com a implantação do arquétipo da alteridade foi ilustrada pelo Novo Testamento e pelo mito de Cristo. Escolhendo o mito de Osíris para expressar essa transformação, Neumann não seguiu a conexão histórica factual entre mito e cultura.

Embora os mitos expressem arquétipos, que, como sabemos, são universais, mitos têm uma sequência histórica e não podem ser interpretados fora dela, como fez Neumann. Quando ele escolheu o mito de Osíris para expressar a transformação da dominância patriarcal na cultura ocidental, trouxe brilhantemente o arquétipo da transformação, com o seu tema de morte e ressurreição, para abordar a ultrapassagem da dominância patriarcal. No entanto, com isso, ele se desviou do caminho mitológico histórico real da cultura ocidental. Embora Neumann tenha sido, como de costume, brilhantemente criativo, ele se perdeu ao sugerir que o mito egípcio de Osíris expressa a implantação do arquétipo da alteridade na formação mitológica da consciência ocidental. O mito dessa transformação é o mito de Cristo. É óbvio que o Novo Testamento é o caminho mitológico que continua e transcende o Antigo Testamento.

O mito de Cristo e o de Buda mostraram o desenvolvimento histórico da consciência no Ocidente e no Oriente para transcender a dominação patriarcal.

O mito de Buda expressou a implantação cultural da posição dialética ego-outro do arquétipo da alteridade na Índia e no Oriente, por intermédio das funções de compaixão e desapego do desejo, 500 anos antes do mito de Cristo.

A implantação do arquétipo da alteridade pelo mito de Buda não foi tão trágica nem tão brutal quanto aquela trazida pelo mito heroico do cristianismo, que precisou crucificar o herói para sua implantação. A explicação pode estar no fato de a Índia apresentar uma aceitação da exuberância do arquétipo matriarcal muito maior que a cultura ocidental e de o Buda ter sido o nono avatar de Vishnu. O oitavo avatar, vivido no mito de Krishna, já havia desenvolvido a relação dos opostos (ego-outro) num alto grau dialético, principalmente o masculino e o feminino, no casamento de Krishna com a pastora Rahda. Sua relação amorosa igualitária vai muito além da limitação da relação de opostos (ego-outro) na posição patriarcal tradicional polarizada e hierarquizada. Desse modo, a Índia já havia preparado grandemente a revelação do relacionamento dialético dos opostos pela compaixão do mito messiânico de Buda. Outro fator importante é que a exuberância do arquétipo matriarcal na mitologia hindu é muito menos reprimida do que no Velho Testamento.

A primeira era arquetípica, na teoria arquetípica da história, durou 140 mil anos e terminou na revolução agropastoril. Daí em diante, desenvolveu-se a segunda era arquetípica, com a dominação patriarcal que concebi como a primeira metanoia na teoria arquetípica da história.

O conceito de metanoia cultural segue a concepção junguiana de metanoia, empregada para descrever a crise arquetípica individual do meio da vida, no processo de individuação. Eu o uso aqui, também, na transformação cultural porque considero a metanoia como a mudança da dominância arquetípica no processo de desenvolvimento da consciência, tanto individual como coletiva.

A ativação mitológica do arquétipo da alteridade expresso no mito de Buda e no de Cristo foi intensificada, respectivamente, há 2.500 e há 2 mil anos. Sua integração na consciência coletiva está no início da segunda metanoia. Essa integração é vista no exercício da posição ego-outro no padrão de alteridade dialética democrática, que oscila regressivamente com a dominância patriarcal polarizada e com a posição matriarcal sensual.

A primeira metanoia foi muito distinta da segunda, em função dos efeitos concretos decisivos da revolução agropastoril.

A segunda metanoia ainda está se iniciando, em função da dificuldade do arquétipo da alteridade de incluir e ultrapassar os padrões matriarcal e patriarcal. A dificuldade está, acima de tudo, em desprender-se da visão de mundo mágico-mítica amplamente presente no padrão matriarcal e de transcender o apego ao controle patriarcal.

O conflito Israel-Roma, em seu confronto mais intenso, incluiu a crucificação de Jesus, herói da alteridade. O conflito terminou 37 anos depois com o previsível massacre genocida do heroísmo patriarcal messiânico israelita, seguido pela segunda destruição do templo de Salomão e a Diáspora (dispersão) do povo judeu (70 d.C.).

Dentro da temática arquetípica da Ressurreição do Messias heroico da alteridade, Helena, mãe do imperador Constantino (272-337 d.C.), foi a Jerusalém em 310 d.C. e converteu-se ao cristianismo. Voltando a Roma, influenciou a conversão de seu filho. Diz a lenda que, em 312 d.C., na véspera da batalha da Ponte Mílvia, entre Constantino e seu irmão Magêncio, pela liderança do império, Constantino teve um sonho e viu no céu uma cruz de fogo rodeada pelas palavras "com este sinal vencerás" (in hoc signo vincet). Após esse sonho, Constantino ordenou que se pintasse uma cruz no escudo de seus soldados. Tendo derrotado seu irmão e unificado o império, Constantino, o Grande prosseguiu na aceitação da fé cristã e, no Edito de Milão, em 313 d.C., interrompeu a perseguição aos cristãos. Daí em diante, a cristandade cresceu enormemente, tornando-se a religião oficial do império sob o imperador Teodósio, em 350 d.C. Aquilo que havia sido perdido para o poder patriarcal na crucificação foi recuperado pelo milagre da fé da alteridade, na Ressurreição. Esse milagre expressa a função arquetípica transcendente do Self (JUNG, 1983, p. 131-193).

O fato de a Igreja ter como modelo a tradição imperial romana influenciou, decisivamente, na patriarcalização defensiva do cristianismo. Eu a considero defensiva porque a essência da alteridade dialética da mensagem cristã foi fixada, deformada e dominada regressivamente em muitas dimensões pela posição patriarcal polarizada. Pessoas foram presas, torturadas e mortas durante muitos séculos em nome do Cristo (BYINGTON, 1991).

Os perseguidos cristãos tornaram-se perseguidores de hereges cristãos. A palavra grega hairesis vem do verbo hairein, que significa escolher, referindo-se àqueles que discordam dos padrões doutrinários. Embora as perseguições tenham sido institucionalizadas somente na Inquisição, em 1231, pelo papa Gregório IX, e o direito de se usar a tortura para a obtenção de confissões tenha sido estabelecido em 1252, sob o papa Inocêncio IV (ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, INC, 1974), sinagogas foram queimadas em Israel em 350 d.C. e o bispo espanhol Prisciliano foi condenado como herege e queimado ainda em 385 d.C. (ENCYCLOPÆDIA BRITANNICA, INC, 1974). É muito significativo que a última decapitação de uma mulher por bruxaria tenha ocorrido em Glarus, na Suíça, em 18 de junho de 1782 (ZILBOORG; HENRY, 1941). Isto faz com que o homicídio orientado pela Inquisição, dentro da Igreja, em nome de Cristo, tenha durado 1.432 anos.

Apesar da Santa Missa, com a paixão de Jesus, ser celebrada integralmente na Igreja Católica até os dias atuais, a Inquisição e o Santo Ofício ilustram a patriarcalização defensiva do mito cristão atuada durante muitos séculos.

Após a função da Ressurreição expressa no mito, o arquétipo da alteridade continuou a integrar-se à consciência coletiva na Igreja dividida. Apesar do aspecto patriarcalizado defensivo que coordenou as alianças políticas da Igreja, as ações militares das Cruzadas, a repressão genocida dos albigensis e cataris e a vida interior nos monastérios buscavam profundamente compreender o significado do sofrimento de Jesus, a dor de Seus ferimentos e a razão pela qual Ele se deixou prender, torturar e crucificar.

Após cinco décadas de elaboração, cheguei à conclusão de que a explicação foi de que Jesus se deixou crucificar para denunciar, repudiar e transcender a crueldade da repressão patriarcal. Penso que Seu sacrifício não deva ser comparado ao oferecimento em holocausto de Isaac, por Abraão. Ao contrário, pois enquanto Abraão estava em total acordo e submissão ao Deus patriarcal no holocausto de Isaac, Jesus, por meio de Seu sacrifício, denunciou e separou-se do Deus patriarcal e da repressão do Velho Testamento para transformá-lo na Trindade com o Seu sacrifício, Sua morte e Sua Ressurreição.

Na Trindade, o Filho sacrificou-se para salvar e para transformar o pai, mas não para substituí-lo com o parricídio, conforme costume na tradição patriarcal, mas pela compaixão, para separar-se e reunir-se com Ele dentro da relação dialética quaternária e igualitária do arquétipo da alteridade.

No segundo milênio da nossa era, a implantação cultural do mito cristão teve continuidade com a extroversão. Os monastérios tornaram-se universidades. O método experimental e a relação com o erro seguiram o padrão dialético que havia sido vivido e praticado na confissão durante a elaboração do pecado. Muitos começaram a elaborar o pecado como um evento psicológico traumático (fixação, de Freud), que poderia ser curado pela confissão e pelo arrependimento (por meio do trabalho psicológico). O exame de consciência da vida monástica treinou a mente para reconhecer a sombra como pecado e erro e elaborar suas fixações, como condição para redenção. Simultaneamente, os monges mais experientes, que atuavam como guias espirituais, admitiam que eles também eram sujeitos à tentação e ao pecado que os separavam do Cristo (CRUZ, 2007). Desse modo, a função ética passou a ser vivida na estruturação da consciência pela posição dialética quaternária do arquétipo da alteridade, o que, séculos depois, tornou-se um padrão para a elaboração dos erros da ciência e das fixações, dentro do método científico e da transferência na psicoterapia dinâmica (BYINGTON, 1983).

O conflito entre a patriarcalização defensiva do mito e a posição quaternária dialética do arquétipo da alteridade, que expressa o mito na sua integridade, passou a ser vivido na interpretação cotidiana da relação entre a Terra e o sol. O conflito ocorreu inicialmente no estudo dos céus, exatamente onde as projeções de Deus estavam fortemente centralizadas.

Em 1543, Nicolau Copérnico (1473-1543) descreveu uma nova relação entre a Terra e o sol, contrária à da tradição milenar adotada como verdade pela Igreja. Discordando da astronomia tradicional, que confirmava as aparências e as Escrituras, Copérnico descreveu a Terra girando em torno de si e do sol. Ele contradisse a Igreja, com o heliocentrismo, o que era uma heresia. E, mais grave e mais importante que isso, ele baseou sua formulação da verdade no método da observação da natureza, o que incluía, necessariamente, a modificação permanente e a correção das posições do ego e do outro durante a busca da verdade (elaboração). Isso significou que a busca pela verdade deveria admitir e corrigir o erro (pecado), tanto em relação ao ego como ao outro. Esse procedimento era completamente diferente da prática esotérica do conhecimento, orientada pela mentalidade mágico-mítica da posição insular matriarcal desde tempos imemoriais. A principal mudança foi inovar o método tradicional de busca da verdade, baseado na revelação esotérica e na aparência, para a observação direta da relação das forças dentro dos fenômenos.

O método de Copérnico (1543) coincidiu com o método dialético, praticado por séculos nos monastérios: o exame de consciência para identificar o pecado e resgatar, por meio da confissão e do arrependimento, aqueles símbolos que separavam os cristãos de Cristo. Tanto os monges introspectivos como os cientistas extrovertidos estavam se relacionando com o pecado e com o erro, dentro do padrão dialético quaternário do arquétipo da alteridade. Os monges estavam protegidos pela introversão secreta dos monastérios; os cientistas, não, porque publicavam suas ideias abertamente, para a consciência coletiva. Copérnico estava perfeitamente consciente do risco que corria com sua heresia. Ele esperou por seu leito de morte, em 1543, para publicar sua última versão de Da Revolução das Esferas Celestes, na qual descrevia o sistema heliocêntrico. O método de Copérnico não era apenas "uma" heresia. Era a "maior de todas as heresias". Era tão grande que derrotou a interpretação geocêntrica canônica dos céus. Assim fazendo, invalidou cientificamente o direito da religião de estabelecer a verdade da realidade, e abriu o caminho para a separação da religião do Estado em muitas nações modernas.

A Igreja continuou a combater e a perseguir os cientistas até ser finalmente derrotada na Revolução Francesa (1789 d.C.). A batalha entre a heresia científica e a Igreja durou 246 anos. Infelizmente, até hoje, a maior parte dos historiadores da ciência e da religião vê o conflito entre ciência e religião como um conflito entre fé e razão. Muito pelo contrário! O conflito foi uma batalha mitológica dentro da fé, entre a essência do mito cristão, que era a posição dialética da alteridade, e sua patriarcalização defensiva, expressa pelo direito canônico criado pelo Santo Ofício na Inquisição.

A integração cultural do arquétipo da alteridade, entretanto, ainda não foi devidamente associada com o mito cristão. Minha concepção é que a ciência foi a maior de todas as heresias e a mais profunda expressão do arquétipo da alteridade. A ciência separou-se da Igreja porque continuou a expressar a essência do mito, enquanto a Igreja o patriarcalizou e o deformou.

A tragédia cultural da separação entre a ciência e a Igreja (1789) foi o Self cultural ocidental ter sofrido uma dissociação patológica entre as dimensões subjetiva e objetiva. A ciência igualou a verdade à dimensão objetiva e desprezou a dimensão subjetiva como erro, irracionalidade, superstição e mesmo charlatanismo. Dessa forma, a ciência criou a dissociação defensiva materialista e expulsou a dimensão subjetiva da universidade. Tragicamente para o humanismo, junto à dimensão subjetiva, outras funções estruturantes foram separadas da perspectiva científica, como a ética humanista, o sentimento, a intuição, a esperança, a mediunidade e a fé. Com a globalização, a dissociação materialista, o positivismo e o materialismo dialético foram disseminados para o resto do planeta em conjunto com a perspectiva científica deformada e dissociada.

A dissociação materialista desenvolveu a dimensão objetiva de maneira extraordinária e criou a fissão atômica, com sua capacidade genocida. Infelizmente, porém, o desenvolvimento da dimensão subjetiva dentro do humanismo científico ficou muito atrás da dimensão objetiva e não conseguiu impedir o genocídio de Hiroshima e Nagasaki.

A Organização das Nações Unidas realiza o trabalho valioso de reunir o objetivo e o subjetivo para proteger os direitos humanos, apesar de permanentemente desafiada por resistências superlativas.

No século XIX, houve muito progresso na cura da ferida subjetivo-objetivo, presente na dissociação entre o Self cultural e o Self planetário. O estudo da dimensão subjetiva, nas dimensões psicológicas normal e patológica, foi de grande valia. Em todas as disciplinas (como medicina, sociologia, antropologia, arqueologia, economia, educação e política), encontramos a disputa pelo controle entre a posição patriarcal, geralmente fixada e defensiva, e a posição dialética quaternária do arquétipo da alteridade, frequentemente também fixada e defensiva (BYINGTON, 2004). A posição patriarcal polarizada é frequentemente defensiva quando disfarçada em relação dialética quaternária de alteridade, para parecer democrática. Geralmente, a alteridade dialética apresenta-se defensiva na economia, no sindicalismo defensivo, na demagogia e no populismo que formam a maior deformação social, econômica e política da modernidade.

A implantação progressiva do arquétipo da alteridade está contribuindo para o desenvolvimento da consciência, tema central da psicologia simbólica junguiana. Enfatizo a formação da nova identidade do homem, da mulher, do masculino, do feminino, do pai, da mãe, da criança, do adulto, do casamento, da sociedade e das suas fixações e formação de defesa e de sombra, de modo a compreender e a possibilitar a implantação criativa da posição dialética e quaternária do arquétipo da alteridade, aqui vista como o caminho simbólico que afasta a humanidade da miséria e da destrutividade individual e coletiva, em direção ao amor, à liberdade, ao bem-estar social, à sustentabilidade, à igualdade, à compaixão e à autorrealização.

 

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Recebido em: 25/03/2019
Revisão: 16/05/2019

 

 

1 Escrito em 1983, e posteriormente em 2015, aumentada e aperfeiçoada até esta última versão em 2016, para ser publicada na Junguiana 34, revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, São Paulo, 2016. p. 37-49.

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