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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

 

Carlos Amadeu Botelho Byington (1933-2019) Excelência e honorabilidade

 

 

 

"Imagine toda a matéria do mundo concentrada dentro de uma cabeça de alfinete. Sinta a força da compressão para conter toda essa energia. Veja que chegou um momento, há 13,7 bilhões de anos, quando aconteceu o Kairos do nascimento deste universo. Imagine neste milagre um grito de Deus, uma explosão que revelou toda a energia a disposição e que está presente até hoje na sua expansão, numa velocidade maior que a da luz" (Carlos Byington).

 

O quanto aprendi com Byington

Maria Zelia de Alvarenga

E-mail: mza@boitata.org

Quando, em 1988, escrevi minha monografia de conclusão do curso de formação na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA), na qual eu propunha a temática sobre o processo transferencial como uma realidade forjadora de consciência reflexiva, citei Byington, em meu texto, por mais de 30 vezes, como referência para o embasamento de minhas proposições.

Ao reler, recentemente, meu trabalho, dei-me conta do quanto a figura do professor, mestre inspirado, pensador profícuo e emérito escritor, contribuiu para a forja do meu processo de formação como analista junguiana.

Byington falava de Psicologia Analítica, falava de Jung, de filosofia e de História, falava da Vida, com o que concorreu, em muito, para a elaboração de um fenômeno comigo ocorrido, alguns anos antes de minha admissão à SBPA.

Estando eu atendendo em meu consultório, em São Jose dos Campos, em meados da década de 1970, servindo-me de um sofá equivalente à improvisação de um divã, uma vez que meu referencial de processo analítico era eminentemente oriundo da psicanálise, o insólito aconteceu. Ao mesmo tempo em que me mantive ouvindo o que minha cliente falava, pois tinha consciência de ouvi-la e mantive memória do que foi dito, fui invadida por um pensamento que desconhecia absolutamente ser meu, como se fora proposição de enunciado de verdade maior que dizia: "Todo ser humano, independentemente da idade, cultura ou formação, tem resposta para toda pergunta que for capaz de formular a si mesmo".

Diante deste aforismo me coloquei, desde então, e muitas vezes de forma cômica, a não responder perguntas a mim dirigidas, quando em minha condição profissional. Por outro lado, este fenômeno me preparou para que, no futuro, eu pudesse me servir da condição de colaborar para que o outro pudesse encontrar suas próprias respostas. E, desde então, o enunciado socrático me acompanhou como instância da minha psique.

Durante o curso de formação pude constatar que poucos foram os professores e/ou supervisores imbuídos dessa premissa, que considero extremamente profícua e pertinente, pois tenho a plena convicção de que ser analista implica concorrer para que o outro descubra, em si e por si mesmo, respostas às perguntas que possa formular.

A constatação de que todo ser humano pode encontrar em si mesmo respostas às perguntas que possa formular decorre, com certeza, da proposição socrática, do método maiêutico.

No tempo do meu curso de formação Byington, certamente movido por essa proposição, ensinava com a determinação de quem intuía que o aluno tinha respostas às suas próprias questões e que, quando trabalhado e bem desafiado, conseguia expor ideias que até então desconhecia possuí-las.

Byington, ao longo dos anos, em que esteve junto com tantos outros, comandando o processo de formação na SBPA, formulou teorias e as desenvolveu, com a criatividade de mestre, seu mister pedagógico. Ao longo de seu trabalho como escritor deu grande importância à educação das crianças e dos jovens no sentido da inclusão do trabalho emocional para enriquecer os recursos de formação psicopedagógicos.

Assim sendo, o processo de formação na SBPA, decorrência de trabalho dele, bem como, inegavelmente, de mestres fundadores que ainda hoje compõem o curso de formação, e entre eles cito, com louvor e profunda admiração Iraci Galias e Nairo de Souza Vargas, propõe seminários, supervisões e análise como trabalho concomitante, num grupo fechado que junto caminha, ao longo de anos de jornada, estruturando relações afetivas de companheirismo, intimidade e colaboração que nenhum outro curso proposto pelas incontáveis sociedades de Psicologia Analítica, no mundo, realiza.

A proposição de que o curso de formação se realize num campo permeado pela amorosidade configura condição precípua para que o estar com o outro me faz crescer, me faz aprender, me faz descobrir o que eu sempre soube, ou seja, eu sou quando em relação!

Assim, mestre, tive o prazer de contar com sua presença em minha formação. Muito obrigada.

 

A última lição do mestre

Ana Maria Cordeiro

E-mail: anamacor@uol.com.br

Conheci o dr. Byington antes de conhecê-lo. Sua fama o precedeu, e com ele aprendi muitas coisas.

Era uma pessoa que inspirava respeito, não só pela criatividade e erudição, mas pelo próprio "jeito" dele. Quando ele chegava, ficava claro que não se tratava de um qualquer. Alguém de envergadura, uma autoridade especial estava lá.

Para mim, era natural quase temê-lo, além de gostar muito do jeito carinhoso e atento com que tratava os trainees.

Uma pessoa grandiosa, que não abaixava a cabeça em nenhuma circunstância. Nenhuma mesmo.

Mas, nos últimos tempos, ele resolveu carregar um cabo de vassoura. Talvez como bengala, talvez como cajado, ou como bastão para mostrar algo em suas aulas. Sei lá, mas era estranho vê-lo, tão respeitável e sábio, com aquele cabo de vassoura na mão.

Se fosse para apoiar o corpo já debilitado pela doença, ele teria um sem número de bengalas, as mais sofisticadas possíveis. Certamente isso lhe foi oferecido, mas ele queria o cabo de uma vassoura.

E nem precisava ser uma vassoura de estimação, bastava que fosse o cabo de uma qualquer. Eu soube que, em sua última palestra na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), ele pediu à equipe organizadora que arrumasse um cabo para ele, o que provocou espanto e a "decapitação" de uma anônima vassoura da equipe da faxina.

A resposta mais fácil para essa idiossincrasia, se é que podemos chamá-la assim, é: isso deve ser esquisitice de velho.

Diante de coisas incongruentes, estranhas ao que idealizamos sobre as pessoas, traduzir essa imagem como "mania de velho" chega a ser até confortável. Rapidamente reduzimos o incômodo e, aliviados, vamos em frente.

Mas a imagem do mestre empunhando um cabo de vassoura insistiu em ficar me instigando.

Não posso, por respeito e incompetência, interpretar esse ato do Byington, nem questionar suas motivações. No entanto, ele era um homem de símbolos, era capaz de ver além do ordinário das coisas, ao contrário, em muitos sentidos, ele era e via o extraordinário.

Ele, assim como Jung, me ensinou que qualquer vivência que nos desconcerta, nos incomoda, nos espanta, está carregando um símbolo.

Então, por que o mestre empunhando um cabo de vassoura me tocou? Quais símbolos estão pedindo para serem vistos?

Eu me dei conta de que aquele cabo de vassoura carrega em si toda a história do trabalho invisível das mulheres, também invisíveis em todas as casas, escolas, hospitais, onde quer que existam pessoas precisando de limpeza e de ordem.

As vassouras habitam a parte escondida das casas, onde ninguém entra para visitar ou conhecer, no entanto só elas percorrem todos os lugares. Elas são anônimas e essenciais.

Naquele cabo de vassoura, eu vi a menina negra numa fazenda distante varrendo os restos do almoço dos senhores. Eu vi a mãe limpando o quarto de seu filho que está fora, tentando a vida em outro lugar. Vi minha avó, vi todas as avós, vi minha mãe e as meninas que limpavam o meu colégio em troca de estudar sem pagar.

Um trabalho infinito de manutenção do conforto. Um trabalho de persistência, dedicação, que só é visto quando não feito. Íntimo e essencial, tímido, introvertido. Um trabalho feito essencialmente por mulheres.

Claro que podemos falar do trabalho dos garis, em sua maioria homens, que limpam as ruas e praças. A vassoura nesse caso sai de casa, mas continua a serviço da manutenção dos espaços, desta vez, públicos.

As vassouras são instrumento do feminino, mesmo aquelas usadas pelas feiticeiras que cruzam o céu de nossa imaginação. Vale lembrar que esse aspecto do feminino foi demonizado e praticamente eliminado do nosso cotidiano, mas jamais esquecido.

O mestre empunhando o cabo de vassoura trouxe para si esse feminino normalmente ignorado. Ele trouxe todas as mulheres em sua missão de construção diária e incessante das condições para o conforto e a saúde de cada um. Ele incorporou o feminino pequeno, oculto, sutil, pouco exuberante e, desvalorizado, visto como menor.

Nessa mesma palestra da PUC-SP, uma professora de psicologia analítica, minha amiga, perguntou se a vassoura era para que ele fosse embora voando. Byington respondeu com seu modo pausado de falar: "é uma boa maneira de ir embora".

E ele se foi. Voando em grande estilo.

Torço para que ele tenha encontrado em seu voo feiticeiras sábias, com quem, alegremente, esteja aprendendo as fórmulas de poções e as artes da magia!

Um mestre, no meu entender, é aquele que além de ensinar nos faz perguntar.

O mestre e seu cabo de vassoura, e as respostas que procurei a partir desse fato: que linda lição.

A última, por enquanto...

Byington visto e reconhecido como grandioso, para mim, tornou-se grande, porque inteiro.

Muito obrigada, mestre!

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