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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

 

O arquétipo da alteridade em época de big data. Uma perspectiva da Psicologia Simbólica Junguiana

 

The archetype of alterity in times of Big Data. A Perspective of Jungian Symbolic Psychology

 

El arquitecto de la alteridad al tiempo de grandes datos. Una perspectiva de la Psicología Simbólica Junguiana

 

 

Maria Helena R. Mandacarú Guerra

Psicóloga. Mestre em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da USP. Psicoterapeuta junguiana. Professora de Psicologia Analítica no curso Jung e Corpo, do Instituto Sedes Sapientiae, São Paulo. e-mail: <mhrmguerra@gmail.com>

 

 


RESUMO

Baseando-se na Teoria Arquetípica da História, de Carlos Byington, a autora aborda alguns momentos e movimentos do Self cultural do Ocidente, procurando mostrar as expressões normais e sombrias das dinâmicas entre os arquétipos patriarcal e matriarcal. A autora reflete também sobre a manifestação do arquétipo da alteridade em nossos dias, exemplificando pelo avanço tecnológico a presença da criatividade e da sombra deste arquétipo.

Palavras-chave: teoria arquetípica da história, arquétipo matriarcal, arquétipo patriarcal, arquétipo da alteridade, sombra, big data


ABSTRACT

Based on Carlos Byington's Archetypal Theory of History, the author presents particular moments and movements of the Western cultural Self, seeking to show the normal and dark expressions of the dynamics between the patriarchal and matriarchal archetypes. The author also highlights the use of technology as an example of how the alterity archetype manifests its creative and defensive aspects nowadays.

Keywords: Archetypal Theory of History, matriarchal archetype, patriarchal archetype, alterity archetype, shadow, big data


RESUMEN

Basándose en la Teoría Arquetípica de la Historia de Carlos Byington, la autora analiza algunos momentos y movimientos del Self cultural de occidente, buscando mostrar las expresiones normales y sombrías de las dinámicas entre los arquetipos patriarcales y matriarcales. La autora también reflexiona sobre la manifestación del arquetipo de la alteridad en nuestros días, ejemplificando por el avance tecnológico la presencia de la creatividad y de la sombra de este arquetipo.

Palavras clave: Teoría Arquetípica de la Historia, arquetipo matriarcal, arquetipo patriarcal, arquetipo de la alteridad, sombra, big data.


 

 

Para Carlos, que me mostrou novos caminhos.

Em sua Teoria Arquetípica da História, chamada inicialmente de Teoria Simbólica da História, Byington (1983) procurou enfatizar a importância dos arquétipos que embasam nosso Self cultural, marcando determinadas épocas e interferindo diretamente em nossas vidas individuais. Ainda que a influência deste pano de fundo arquetípico nem sempre seja percebida com clareza, ela está lá.

A título de exemplo, voltemos ao final do século XIX, quando têm início os estudos sobre a histeria. No hospital Salpêtrière, em Paris, Charcot deparou-se com este fenômeno que costumava confundir os médicos, pois suas manifestações clínicas eram muito variadas. Um verbete publicado por Freud originalmente em 1888, e reeditado em 1953 na revista Psyche, de Stuttgart, resume bem como foi vista a histeria no início da medicina.

O nome "histeria" tem origem nos primórdios da medicina e resulta do preconceito, superado somente nos dias atuais, que vincula as neuroses às doenças do aparelho sexual feminino. Na Idade Média, as neuroses desempenharam um papel significativo na história da civilização; surgiam sob a forma de epidemias, em consequência de contágio psíquico, e estavam na origem do que era fatual na história da possessão e da feitiçaria. Alguns documentos daquela época provam que sua sintomatologia não sofreu modificação até os dias atuais. Uma abordagem adequada e uma melhor compreensão da doença tiveram início apenas com os trabalhos de Charcot e da escola do Salpêtrière, inspirada por ele. Até essa época, a histeria tinha sido a bête noire da medicina. As pobres histéricas, que em séculos anteriores tinham sido lançadas à fogueira ou exorcizadas, em épocas recentes e esclarecidas, estavam sujeitas à maldição do ridículo; seu estado era tido como indigno de observação clínica, como se fosse simulação e exagero [...] Na Idade Média, a descoberta de áreas anestésicas e não-hemorrágicas era considerada prova de feitiçaria (FREUD, 1953, p. 486).

Esta referência à histeria, considerada originalmente uma doença associada ao aparelho sexual feminino, ao útero (hystéra, em grego), com menção à sintomatologia igual àquela que, na Idade Média, foi considerada feitiçaria e levou mulheres ao exorcismo e à fogueira, nos permite pensar a relação entre os arquétipos matriarcal e patriarcal. Segundo Byington (2008), o arquétipo matriarcal é o arquétipo da sensualidade, da espontaneidade e do lúdico. Este arquétipo opera na posição insular, quer dizer, quando de sua manifestação, os conteúdos psíquicos emergem em ilhas e, portanto, não se comunicam entre si. No espectro saudável da expressão deste arquétipo encontramos o respeito ao próprio ritmo, a simbiose normal, a conexão com o prazer e a leveza da vida. No âmbito da patologia, encontramos, por exemplo, as adições, os distúrbios alimentares associados à ingesta excessiva, à promiscuidade sexual e às dependências. Também é característica do funcionamento exuberante do arquétipo matriarcal a multiplicidade de sintomas diversificados e mutantes dos transtornos dissociativos, antigamente chamados quadros histéricos.

Ao longo da história, acreditou-se que as mulheres, bem como as divindades femininas, ocuparam lugar de destaque e domínio em uma sociedade primeva ou em um período pré-histórico. Esta hipótese guiou os trabalhos de Bachofen (1992) e, posteriormente, de Neumann (1955), que identificaram o arquétipo matriarcal às mulheres e às deusas. No entanto, Byington (2008) propõe que o arquétipo matriarcal seja visto como um dinamismo pertencente à mulher, ao homem e às culturas, sempre presente em grau variável e complementar ao arquétipo patriarcal.

O arquétipo patriarcal, também pertencente à mulher, ao homem e às culturas, é por sua vez o arquétipo da lei, da ordem, da organização, e seu funcionamento acontece na posição polarizada, a qual propicia a hierarquia entre os polos e sua consequente classificação em termos das polaridades superior-inferior, certo-errado, bem-mal, dentre outras. Assim como o arquétipo matriarcal foi identificado com a mulher, o arquétipo patriarcal foi identificado com o homem. Deste modo, já que nos últimos 10.000 anos houve, no Ocidente, a prevalência quase hegemônica do arquétipo patriarcal, a história acabou sendo escrita por homens para contar os feitos de outros homens.

Assim, a dominância do arquétipo patriarcal foi traduzida pela manutenção do poder nas mãos dos homens, aos quais era permitido comandar a política, os negócios, a igreja, a vida familiar e, last but not least, viver livremente, inclusive sua sexualidade.

Por outro lado, muitas das expressões normais do arquétipo matriarcal foram consideradas sombrias, menos importantes, e tinham que ser reprimidas, especialmente pelas mulheres, identificadas que foram com este arquétipo. A relação homem-mulher foi moldada por esta hierarquia, o homem sendo entronado como superior e conferida à mulher a posição subalterna, de obediência, repressão, submissão e impossibilidade de expressão de seu ser profundo, a menos que isto ocorresse nos cuidados da casa, do marido e dos filhos.

Em virtude da influência destas disposições arquetípicas no Self cultural do Ocidente, houve uma enorme incidência dos então chamados quadros histéricos, observados predominantemente em mulheres, pois eram elas as pessoas reprimidas, cerceadas, controladas pelos valores sociais que as impediam de viver livremente, não apenas a sexualidade, mas o caminho da autorrealização.

Foi a Revolução Francesa que trouxe para a história mais recente do ocidente uma tentativa de reintrodução do arquétipo da alteridade. Sendo este o arquétipo que embasa as relações simétricas, a consideração e respeito pelo outro, a compreensão e aceitação do direito à expressão das diferenças, o lema "liberdade, igualdade, fraternidade" trouxe para o nosso Self cultural a importância destes valores. Para que o arquétipo da alteridade possa ser exercido em sua plenitude, as expressões dos arquétipos matriarcal e patriarcal devem ser colocadas lado a lado em grau de importância, vistas como complementares e passíveis de serem relacionadas de modo dialético. Naquela época, não apenas as mulheres, mas também as crianças passaram a ser reconhecidas como pessoas que têm direitos.

No entanto, logo após a Revolução Francesa houve um recrudescimento da dominância do arquétipo patriarcal (expressa por Napoleão e suas guerras) e novamente as mulheres foram condenadas à subserviência e relegadas à condição de inferioridade, menosprezadas e desrespeitadas no que tange a seu potencial de desenvolvimento intelectual e cultural, à sua autonomia e à liberdade de ser.

Mas a desvalorização do arquétipo matriarcal pela dominância do arquétipo patriarcal, é preciso que se diga, não atingiu apenas as mulheres e as crianças, mas também os homens. Se a eles era permitido enfrentar e dominar o mundo externo, sua sensibilidade deveria ser reprimida e tão desconsiderada como eram as mulheres. Deste modo, suas emoções, fragilidades, angústias, delicadezas, não encontravam lugar de expressão. Para o homem patriarcal, os valores exerciam-se na honra, na palavra dada, no brio, na razão e, claro, no domínio e no poder.

Ainda sob efeito do pós-guerra, a partir dos anos 1950 e 1960 o Self cultural do ocidente viveu outra revolução. Com o advento da pílula anticoncepcional e a flexibilização dos costumes, teve lugar a revolução sexual. Lembro-me de quando surgiu, então, o movimento hippie, com seus slogans - faça amor, não faça a guerra; power to the people; black is beautiful; flower power -, sua música (rock and roll), suas roupas coloridas, cabelos compridos para os homens e experimentos com substâncias psicoativas. Com esta renovação do Self cultural, diferentes expressões do arquétipo matriarcal, antes vividas na sombra, retornam do exílio e passam a ser vivenciadas, aceitas e valorizadas. E, ao se reunirem com o arquétipo patriarcal, fica aberto o espaço para que o arquétipo da alteridade mais uma vez emerja no Self cultural, fazendo surgir a luta pelos direitos das mulheres e dos negros - e posteriormente, das minorias.

O que assistimos no Self cultural do Ocidente nos últimos séculos foi um afrouxamento da dominância do arquétipo patriarcal e o fortalecimento do arquétipo matriarcal, com a consequente presença do arquétipo da alteridade. Mas como isto se traduz? Por exemplo, quando Jung (1978) descreve a anima e o animus, ele claramente fala a partir de um lugar de dominância do arquétipo patriarcal, que julgava ser o homem racional, objetivo, ligado ao Logos e à consciência, enquanto a mulher estava associada ao Eros, à subjetividade e ao inconsciente. Jung (ibid.) afirma até mesmo que, "para a mulher, o mundo além do marido acaba numa espécie de nevoeiro cósmico" (1978, par. 338). Hoje sabemos que homens e mulheres eram assim porque não lhes era permitido serem diferentes. Na verdade, não eram assim - estavam assim.

A maior presença do arquétipo matriarcal fica evidente na liberação dos costumes, da sexualidade, na maior liberdade de expressão das emoções, sem falar na possibilidade de a mulher começar a ser valorizada e passar a ter autonomia para buscar o mundo do trabalho, o desenvolvimento intelectual e financeiro, o conhecimento, a política e a liberdade pessoal.

A possibilidade de os arquétipos matriarcal e patriarcal serem conjugados permite e favorece a presença do arquétipo de alteridade. No campo dos relacionamentos conjugais, por exemplo, este arquétipo deixa de estabelecer rigidamente como e com quem devemos nos relacionar. Os modelos de casamento não são mais engessados e passam a ter inúmeras possibilidades, com os envolvidos morando juntos sem casar, casando e morando em casas separadas, tendo filhos de outros relacionamentos, unindo-se a pessoas do outro ou do mesmo sexo, casamentos monogâmicos ou abertos, enfim, uma grande variação, especialmente quando comparamos com os relacionamentos de dominância patriarcal, que vinham acompanhados de um padrão preestabelecido de funcionamento.

Ainda que nos nossos dias pessoas se manifestem anacronicamente contra, por exemplo, o respeito aos direitos dos homossexuais, a discriminação em função da sexualidade foi, no momento em que escrevo, julgada crime equivalente ao racismo. É o espírito da alteridade que, à revelia de alguns, se faz mais e mais presente, no respeito às diferenças, nos direitos das minorias, na preservação do planeta.

Embora ainda esteja distante o dia em que predominará na humanidade a consciência baseada no arquétipo da alteridade, os valores que ele embasa estão sendo cada vez mais considerados importantes, ainda que, por vezes, se restrinjam a compor parte da persona politicamente correta. Vejamos um exemplo. Mesmo que todos os brasileiros, na prática, não tenham o mesmo direito perante a lei, nossa Constituição afirma que sim. Fazer uma afirmação que expresse patriarcalmente que alguns têm mais direito que outros - lembremos que o arquétipo patriarcal funciona hierarquicamente - é completamente inaceitável frente a uma perspectiva de alteridade.

Sabemos, no entanto, que a sombra sempre nos acompanha de perto, seja no Self individual, seja no cultural. A ciência do Ocidente, ainda baseada na dicotomia ciências exatas e ciências humanas, oferece em relação às suas descobertas e inventos um campo de possibilidades tanto para a consciência e o desenvolvimento quanto para a sombra, a doença e a destruição. Ao mesmo tempo em que a medicina avança e propicia um aumento da longevidade, ela cria um contingente enorme de pessoas dependentes de medicação. Paralelamente ao desenvolvimento de técnicas de cultivo em larga escala, que poderiam auxiliar no combate à fome que assola milhões de pessoas1, foi disseminado o uso de agrotóxicos que ameaçam contaminar os consumidores e os lençóis freáticos. Enquanto a física nuclear auxilia no desenvolvimento de recursos que contribuem para diagnóstico e cura de doenças, as armas nucleares colocam em risco o planeta.

O arquétipo matriarcal, ao ser aceito no Self cultural ocidental, flexibilizou as regras e liberou os costumes. Porém, em um movimento de pêndulo, ao qual Jung (1960) chamou de enantiodromia, passou do polo reprimido para aquele em que não há limite, abrindo as portas para a permissividade e o desregramento, em que a licença para se fazer qualquer coisa dificulta a consideração por si e pelo outro, inclusive pelo próprio corpo.

Como todos os arquétipos, também o arquétipo da alteridade pode se expressar na luz ou na sombra. Se sob a perspectiva saudável este arquétipo considera e respeita o outro - no ensinamento cristão ele se traduz como amar o próximo como a ti mesmo -, em sua dimensão defensiva o outro é enganado, desrespeitado. Assim, a sombra deste arquétipo é vista principalmente na mentira, na demagogia, na corrupção, isto é, naquelas circunstâncias em que, por um lado, se sabe o que é o "correto" a ser dito, mas de outro, sabe-se que serão apenas palavras.

Se os casos de histeria poderiam ser considerados expressão da sombra do arquétipo matriarcal reprimido, hoje temos uma exacerbação dos quadros de defesas psicopáticas, ou, mais grave ainda, de psicopatias, devido à sombra do arquétipo da alteridade. Na perspectiva da Psicopatologia Simbólica Junguiana, a defesa psicopática é caracterizada pelo fato de a pessoa ter consciência do erro, do mal, e atuar deliberadamente nesta direção. É o comportamento doloso, em que a função estruturante da ética é cooptada pela sombra e atuada defensivamente (BYINGTON, 2017). Assim, repito, a sombra do arquétipo da alteridade está na base da defesa psicopática.

Se, por um lado, precisamos que o arquétipo da alteridade alicerce nossa relação com outros seres vivos, com a natureza e o planeta, até mesmo para que nossa espécie possa sobreviver, por outro vemos sua sombra crescer de modo descomunal, inclusive justamente ali onde fizemos grandes avanços. Refiro-me à evolução tecnológica.

A tecnologia a serviço da comunicação criou uma enorme teia que une os mais recônditos pontos da Terra, contribuindo para um mundo cada vez mais globalizado, no qual as trocas de informação e a interação social podem ser feitas virtualmente e, com isto, expandir-se enormemente. Dentre outros avanços, a evolução tecnológica originou a telemedicina, que permite realizações de ações médicas à distância, inclusive cirurgias. Pesquisas intensificam-se na busca de aprimorar cada vez mais o desenvolvimento da inteligência artificial e da internet das coisas, que é a conexão entre objetos e entre eles e o usuário. Dispositivos conectados à rede da internet das coisas estão a todo tempo emitindo, recebendo, trocando e cruzando dados. De fato, hoje produzimos mais dados do que podemos imaginar.

É extensa a literatura referente à utilização positiva dos chamados big data, conjuntos de dados que chegam em grande volume, velocidade e variedade e que necessitam ser processados e armazenados. Furlan e Laurindo (2016), em seu artigo Agrupamentos epistemológicos de artigos publicados sobre big data analytics, abordam diversas áreas em que os big data são estudados, como, por exemplo, comportamento humano e aspectos socioculturais, gestão de negócios, internet das coisas; Chiavegatto Filho (2015) desenvolve um trabalho a respeito do uso de big data na saúde pública; Galdino (2016) acrescenta à saúde a utilização dos big data em empresa de transporte aéreo e em segurança pública. Estes são apenas alguns exemplos da aplicabilidade positiva dos big data.

No entanto, uma das mais terríveis manifestações da sombra do arquétipo da alteridade emerge, nos nossos dias, exatamente no uso doloso da tecnologia avançada para introduzir sofisticadas técnicas de manipulação de dados visando prioritariamente o consumo e o poder. Como exemplo, temos o bombardeio de propagandas específicas que nos são dirigidas e a distribuição de notícias falsas e informações imprecisas e tendenciosas repetidas à exaustão visando transformá-las em verdade. Acrescenta-se a isto a velocidade em que são propositalmente propaladas com a intenção de dificultar que se reflita sobre elas. A expressão sombria do arquétipo da alteridade faz desfilar diante de nós um desprezível festival de manipulação e falta de ética de dimensão extraordinária, que atinge milhões de pessoas, revelando por um lado a abrangência da defesa normopática que assola a população e, por outro, escancarando a defesa psicopática/sociopática (ou, mais grave, a psicopatia/sociopatia) de pessoas que não hesitam em, "democraticamente", destruir a própria democracia.

Não fosse o arquétipo da alteridade estar ativado, não haveria preocupação em disfarçar a ganância e o desejo de controle e de poder, criando para tal fim a ilusão de que a democracia é preservada e que as pessoas fazem escolhas, quando na verdade não podem escolher, seja porque são privadas de dados objetivos e informações verdadeiras, seja porque estão atuando a defesa normopática, a qual impele as pessoas a agirem em uníssono, cada uma buscando ser como todas, em um processo inverso ao de individuação.

Quando me refiro à época atual como a época do big data, faço isto por considerá-lo um dos símbolos máximos do desenvolvimento da tecnologia e, exatamente por isso, aquele que precisa ser observado com bastante atenção, pois muitas vezes nos alcança sem que nos demos conta disso. E aí surge um grande problema, porque não temos consciência de sua presença, não o escolhemos e, portanto, não avaliamos adequadamente sua interferência em nossas vidas. Talvez ainda não consigamos dimensionar os efeitos de serem tornados públicos nossos dados pessoais e de serem devassadas informações sobre nossa intimidade. Desde uma mensagem no WhatsApp, um post no Facebook, uma foto colocada no Instagram ou em outra mídia social, uma pesquisa na web, ou apenas o fato de estarmos usando um telefone celular, a todo momento nossa vida alimenta um gigante banco de dados. Seja porque expomos voluntariamente nossa felicidade aparente, nossas ideias, a comida que preparamos, as gracinhas de nossas crianças, ou porque buscamos uma informação ou mantemos nosso celular ligado, nossos dados são constantemente computados e armazenados, para, em algum momento retornarem, até nós na forma de uma promoção imperdível de passagens aéreas, de atraentes artigos infantis, de uma sugestão de restaurante ou mesmo - e pior - de ideias que vão sendo lançadas, repetidas, incutidas, e que terminam por serem introjetadas e identificadas como nossas. Não mais necessitamos frequentar determinadas organizações para que sejamos submetidos à lavagem cerebral - ela pode ser feita a domicílio, enquanto navegamos inocentemente pela rede e lemos, distraidamente, mensagens com as quais nos bombardeiam e nos envolvem, sem que tenhamos tempo de refletir sobre elas e sobre sua veracidade. Como consequência, vamos nos alienando, nos distanciando de quem realmente somos, passando a viver em um estado hipnagógico, com a mente entorpecida, obnubilada, difusa, mergulhada na indiferenciação e, portanto, cada vez menos lúcida.

Assim, um dos efeitos sombrios que o mau uso deste recurso tecnológico produz em nossa época é diminuir nosso discernimento, nossa capacidade de pensar, pois restringe o tempo e o distanciamento necessários para questionar e avaliar tudo aquilo que chega até nós.

Embora, como vimos, o big data possa ser utilizado para impulsionar o desenvolvimento e contribuir para o bem-estar das pessoas, o uso defensivo, psicopático/sociopático deste vasto material é observado sempre que não há escrúpulo algum em mentir, manipular ou enganar, ou seja, sempre que a função estruturante da ética é dominada pela sombra e fica a seu serviço. Uma atitude defensivamente passiva e ingênua por parte das pessoas, especialmente daquelas apáticas ou normopáticas, complementa o funcionamento ativo e manipulador de quem busca se aproveitar do big data para ganhar dinheiro ou poder.

Urge, portanto, despertarmos do torpor em que caímos e buscarmos resgatar a expressão criativa e saudável do arquétipo da alteridade, que tem por característica o respeito e a consideração ao outro e, por isso, é o arquétipo da democracia.

 

Referências

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BYINGTON, C. A. B. Uma teoria simbólica da história: o mito cristão como o principal símbolo estruturante do padrão de alteridade na cultura ocidental. Junguiana: Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 8-63, 1983.         [ Links ]

_____. Psicologia simbólica junguiana: a viagem de humanização do cosmos. São Paulo, SP: Linear B, 2008.         [ Links ]

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Recebido em 03/08/2019
Revisado em 13/10/2019

 

 

1 Dados publicados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) em fevereiro de 2019 apontam que 257 milhões de pessoas passam fome na África.

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