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Junguiana

versão impressa ISSN 0103-0825

Junguiana vol.37 no.2 São Paulo jul./dez. 2019

 

A alma masculina e a função estruturante da sensibilidade. Um estudo da Psicologia Simbólica Junguiana1

 

 

Carlos Amadeu Botelho Byington

Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador

 

 

A descrição de Jung do Arquétipo da Anima no homem e do Arquétipo do Animus na mulher foi muito útil para chamar a atenção teórica e prática para a existência da bipolaridade do gênero na personalidade.

Durante o processo de individuação, é importante para o Ego saber que existem, no seu Self, símbolos do sexo oposto, que lhe orientam para a conjugalidade e a criatividade de um modo geral.

Foi assim que se tornaram célebres imagens culturais do "eterno feminino", que inspiram os homens para buscar a glória, como Dulcinéia, de Dom Quixote; Beatriz, de Dante; Joana D'Arc, dos soldados franceses, ou o abismo, como a feiticeira Circe e as sereias que quase destruíram o grande Ulisses. Da mesma forma, registrou-se o fascínio arquetípico das mulheres por figuras masculinas, como Dom Juan e Casanova, cientistas, artistas e líderes políticos e religiosos.

Autores pós-junguianos, como Hillman e Whitmont, sentiram a necessidade da representação bipolar dos arquétipos do gênero na personalidade para neles enraizar não só o contrapolo sexual do Ego, mas também o gênero do próprio Ego. Assim, postularam a inclusão da Anima e do Animus, tanto na personalidade do homem como na da mulher.

Concordo com a necessidade da concepção bipolar de todos os símbolos e arquétipos, mas sou da opinião que devemos manter o Arquétipo da Anima exclusivo na personalidade do homem e o Arquétipo do Animus na da mulher, para que tenhamos um arquétipo específico que represente a diferença genética do homem e da mulher, exatamente como nos cromossomos do gênero.

Por isso, a Psicologia Simbólica Junguiana, por mim conceituada, propõe que o Arquétipo da Anima e o Arquétipo do Animus sejam bipolares, inclusive quanto ao gênero, e que façam parte do Arquétipo da Alteridade, que articula a relação dialética do Ego e do Outro na Consciência. Com isso quero dizer que as imagens da Anima do homem podem ser projetadas tanto numa mulher como com num homem, o mesmo acontecendo com o Animus da mulher, independentemente de serem homo ou heterossexuais.

Desta maneira, podemos compreender melhor a importantíssima diferença entre a homoafetividade e a homossexualidade, posto que a homoafetividade inclui a amizade entre as pessoas do mesmo sexo e não necessita ser sexualizada. Com essa conceituação, é possível também percebermos a atração e mesmo o fascínio propiciados pelos Arquétipos da Anima ou do Animus por pessoas do mesmo sexo, que podem até mesmo gerar uma conduta homossexual defensiva e inautêntica, que fixa e limita o desenvolvimento. Assim sendo, concebo uma heterossexualidade normal e outra defensiva, e igualmente uma homossexualidade normal e outra defensiva, diferenças estas de grande importância no trabalho clínico e na caracterização teórica da normalidade e da patologia.

A bipolaridade da Anima e do Animus são muito importantes também para compreendermos duas grandes fases na transição da infância para a adolescência.

Baseado em mitos de dominância matriarcal e patriarcal, assim catalogados pela primeira vez por Bachofen, Erich Neumann descreveu o desenvolvimento histórico da Consciência Coletiva através dos mitos de dominância do Arquétipo Matriarcal, seguidos dos mitos de dominância do Arquétipo Patriarcal. Em vez de Arquétipo da Grande Mãe, prefiro a denominação de Arquétipo Matriarcal, pelo fato de este arquétipo ser também bipolar e englobar o masculino e o feminino. A evidência desta bipolaridade está na exuberância dos deuses da natureza, como Uranos e Cronos, que atuam ao lado das Deusas Mães, o que impede abrangê-los sob a denominação de "Grande Mãe".

A conceituação do Arquétipo da Alteridade pela Psicologia Simbólica Junguiana permitiu ver que sua expressão histórica sucede a dominância patriarcal e que os principais mitos que o expressam são o Mito do Buddha, no Oriente, e o Mito Cristão, no Ocidente. Seguindo o que Neumann fez com o Matriarcal e o Patriarcal, e buscando o equivalente do Arquétipo da Alteridade na personalidade individual, percebemos que ele se torna dominante pela primeira vez na adolescência e volta a ser dominante na metanoia.

É no estudo da adolescência que vamos usufruir da compreensão da bipolaridade do Arquétipo da Alteridade e dos Arquétipos da Anima e do Animus, que dele fazem parte.

Como descreveu Neumann em seu livro "A Criança", na fase matriarcal, do nascimento aos 2 anos de idade, forma-se a identidade de gênero da criança, e na fase patriarcal, dos 3 aos 12 anos, acontecem a socialização e a formação moral. Na transição para a alteridade, na adolescência, ocorrem a separação da família e a abertura para a sociedade. Nessa transição, vemos claramente duas subfases: a primeira, de homoafetividade, e a segunda, de heteroafetividade.

A fase de homoafetividade que marca o começo da adolescência e a formação da "patota" cria os clubes do Bolinha e da Luluzinha, que fortalecem a identidade sexual. Nesta fase têm lugar vivências iniciáticas da identidade do homem e da mulher, que variam de cultura para cultura. Pelo fato de as identidades homo, hétero e bissexual se definirem nessa época, suas disfunções podem trazer fixações que confundem a identidade sexual na vida adulta e que serão outra vez elaboradas e redefinidas na metanoia.

A homoafetividade tem a função de reforçar a identidade antes de passar à heteroafetividade, que porá à prova a identidade de maneira muito intensa. O reconhecimento da força estruturante da Anima e do Animus na homoafetividade é importante porque ela explica a intensidade da formação de relações simbióticas nessa fase e, até mesmo, sua exacerbação extraordinária pela constelação dos Arquétipos do Herói e da Heroína, que podem chegar às raias da paixão, com intenso fascínio e admiração. Estas pessoas podem buscar orientação psicopedagógica e terapêutica, e é muito importante que elas não sejam automaticamente consideradas homossexuais, pois, às vezes, o são e, às vezes, não. Há situações em que é difícil distinguir uma pessoa que é homossexual de outra que entra na homossexualidade para não perder uma amizade.

Com o desenrolar da adolescência, a Anima, o Animus e a Alteridade constelam-se ainda mais, e a heteroafetividade se intensifica. Mesmo em adolescentes homossexuais, vemos a busca de parceiros de tipologia complementar, o que comprova a bipolaridade da Anima e do Animus.

Estas considerações são preparatórias para compreendermos o que quero dizer com o título da palestra ser: A Alma Masculina e a Função Estruturante da Sensibilidade.

A Psicologia Simbólica Junguiana considera todas as coisas símbolos estruturantes e todas as funções da vida, funções estruturantes. Todos os símbolos e funções estruturantes são arquetípicos e, por isso, podemos perceber os arquétipos pelas imagens arquetípicas (símbolos estruturantes), como descreve Jung, como também pelas funções da vida (funções estruturantes).

Assim sendo, a sensibilidade é uma função estruturante arquetípica. Sua caracterização é difícil, pois, afinal, toda a matéria viva é sensível. Em vez de buscar defini-la por sua presença na personalidade do homem, que é o título da palestra, vamos começar pelo seu cerceamento, por sua ausência e pelo que ela foi impedida de ser.

Podemos dizer que, durante o período de aproximadamente dez milênios em que se formou e se desenvolveu a civilização, a sensibilidade do homem foi intensamente reprimida. Ela foi reprimida em função do papel atribuído ao homem na família e na organização social de dominância patriarcal. Sendo o papel do homem e o da mulher codificados em função das atividades do lar e da sociedade, e sendo as funções do lar atribuídas à mulher, o homem permaneceu com o poder social, a competição profissional para prover a família, o exército e a guerra. Quando definimos e criticamos o machismo, o despotismo, a rudeza, a promiscuidade e o cafajestismo do homem patriarcal, geralmente nos referimos ao que ele tem e exerce de forma poderosa e distorcida, e quase nunca percebemos o que ele não tem e que sofre por não ter e, pior, o que ele não tem e nem pode sentir que não tem, porque, se o fizer, estará depondo contra o seu papel de homem. É surpreendente, porém - e isto eu só fui descobrir no meu próprio processo de individuação -, que estas características que o homem patriarcal está impedido de ter e de exercer constituem a sua sensibilidade. Ela é tão proibida que a insensibilidade passou a fazer parte do papel do homem patriarcal, ou seja, por mais educado e refinado que seja, ele, no fundo, é compelido a ser insensível e casca grossa em muitos aspectos de sua vida afetiva e profissional.

Ainda não pude lhes transmitir fenomenologicamente o que é a função estruturante da sensibilidade do homem, pois, como estamos vendo, ela foi reprimida durante milênios. No entanto, sabemos que a repressão nunca é absoluta, e geralmente boa parte do material reprimido é projetado. Normalmente projetamos nosso inconsciente para depois introjetá-lo e formar nossa Consciência, mas projetamos também o que reprimimos para aperfeiçoar a repressão, negando ainda mais o que estamos proibidos de integrar. É como se disséssemos: "Vejam, isso não pode ser de forma alguma uma qualidade minha, pois ela é, sem dúvida, uma característica do outro". Nesse caso, quando analisamos as projeções, descobrimos a identidade de quem as projetou. Mas isso não é tão fácil assim, pois as projeções se misturam com as características do seu alvo, o que dificulta muito o seu conhecimento. Assim, aconteceu que, ultimamente, ao começarmos a descobrir a sensibilidade do homem, passamos a examinar cuidadosamente suas projeções para chegarmos a sua verdadeira natureza. Por esse caminho tortuoso, mas produtivo, descobrimos as depositárias das duas grandes projeções históricas associadas à repressão da sensibilidade do homem: a mulher e a homossexualidade. Sabemos isso porque o homem patriarcal podia ser tudo, menos "mulherzinha" e gay. Mas, o que haverá de comum entre eles que explique a sensibilidade do homem?

As funções estruturantes que a mulher exerceu na família patriarcal foram o aconchego e o carinho para com os filhos, o acolhimento da sua vulnerabilidade e do seu sofrimento, sua dedicação e zelo, sua ternura e delicadeza, a cultura dos sentidos do paladar para cozinhar, as prendas domésticas para costurar e decorar a casa, a paciência e resignação diante de situações de impotência, seu espírito de sacrifício e tantas mais, que todos bem conhecemos.

E os homossexuais? O que é que eles têm em comum com a mulher, que o homem patriarcal é proibido de exercer? Eles cultivam tanto o afeto e a alegria, que, na sociedade americana, foram intitulados gay. Vestem-se com vaidade e de forma cuidadosa, criativa e até chocante e espalhafatosa. Basta vermos o terno e gravata do homem patriarcal, e sua semelhança estereotipada com a farda militar, para vermos uma diferença marcante do mundo gay. A distância da alegria também é marcante porque o homem patriarcal é sisudo, emburrado, e vive com raiva e cansado pelo peso da responsabilidade, devido a todo o poder que amealhou. Some-se a isso a frustração e a inveja defensiva da imensa sensibilidade que está proibido de ter e que observa de longe na mulher e nos gays, e nos damos conta de que ele é assim tão sério porque é infeliz. Nesse sentido, sua gravata é a coleira que o estrangula com as suas obrigações. É curiosamente simbólico que a primeira coisa que faz o homem patriarcal, quando se permite um momento de lazer e descontração, é afrouxar o nó da gravata.

O desconhecimento do que é a sensibilidade do homem ainda é tão grande que Jung, que enfatizou tanto a bipolaridade psicológica no homem e na mulher, referiu-se frequentemente à Anima como a parte feminina do homem. Mas, quando procuramos a definição de feminino no dicionário e encontramos "algo pertencente à mulher", ficamos frustrados, pois achávamos que descobriríamos o que era a sensibilidade do homem e acabamos voltando à mulher. Nesse sentido, é fácil falarmos da sensibilidade do homem quando ele sonha com uma mulher ou se apaixona por ela. Mas, se ele se veste criativamente, gosta de cozinhar e de escrever poesia, é humilde, delicado com as pessoas, inclusive com outros homens, tem prazer em decorar a casa e de se perfumar, dizer que isto é coisa de mulher evade a busca do conhecimento do que é a sua sensibilidade. Não é raro que os gays também se percam nesse caminho, pois, na hora de "saírem do armário", como dizem, e de assumirem quem são, frequentemente falam com trejeitos, desmunhecam e até rebolam, tudo com jeito de mulher. Como se, na hora de se libertarem e realmente mostrarem sua sensibilidade como homens que são, ainda não soubessem do que ela se trata.

Sérgio Buarque de Holanda foi quem mais se aproximou de uma definição da sensibilidade, quando descreveu o brasileiro como o homem cordial, ou seja, com o jeito do coração. Aí chegamos muito perto do homem sensível. Mas então vêm aqueles que associam o homem cordial com o sedutor, o jeitinho brasileiro, o malandro, o corrupto, o cafajeste, o promíscuo, o vagabundo, o canalha, e desaparece outra vez a sensibilidade como função estruturante da alma masculina.

Afinal, ainda não sabemos bem o que é a sensibilidade do homem, mas estamos cada vez mais perto de concluir que é pelo fato de não poder exercer sua sensibilidade que o homem patriarcal não sabe amar. Senhor de um imenso poder, ele engana bem. Apresenta-se hoje cada vez mais politicamente correto, incorporando o que soa melhor, venha da esquerda ou da direita. Aprendendo com as reivindicações femininas tudo o que as mulheres desejam num homem, ele está se dirigindo para perceber o caminho da descoberta e da expressão da sua sensibilidade.

No entanto, no meio da viagem, sempre que surge a grande prova do exercício da sensibilidade, ele vê que o território em que se encontra é uma região imensa, promissora, mas ainda desconhecida. Ao buscar sua sensibilidade, o homem começa a descobrir o amor e percebe que essa é a terra prometida, a terra do leite e do mel, com a qual muitos de seus antepassados sonharam, mas que somente alguns poucos foram eleitos para lá chegar.

Eu lhes disse que um dos problemas para conhecermos o conteúdo de nossas projeções ocorre porque elas se misturam com a natureza do alvo sobre a qual foram projetadas. Assim, aconteceu que o nosso viajante, ao chegar perto de sua sensibilidade, descobriu que ele só a conhecerá mesmo no território do amor, e que essa vivência depende do encontro da mulher, da companheira de viagem. Surpreso, ele se dá conta também que a sua descoberta depende do amor, porque, para conhecer a sua sensibilidade, necessita que ela também o faça. E a surpresa seguinte é que tudo o que projetara nela e que era proibido para ele, e que ele agora começa a integrar, não completa a sensibilidade dela, pois... o que faz falta a ela estava projetado nele. Iniciativa, criatividade, poder, conhecimento, realização, independência, autossuficiência, autoestima, e até superioridade estavam projetados nele, e ela necessita também de boa parte disso para saber quem é.

Nosso homem continua sem saber como é a alma masculina, mas pelo menos ele já sabe que ela é feita de sua sensibilidade projetada desde tempos imemoriais nas mulheres e nos gays. Mas agora ele já está mais animado em sua busca. Ele descobriu que ela se realiza no amor e que, por isso, ele não pode lá chegar sozinho, pois necessita da mulher para acompanhá-lo. Descobriu também, para consolo do seu complexo de inferioridade, que a mulher e os gays, em quem depositara tudo o que não tem, também não são completos, pois ainda não encontraram nem realizaram plenamente a sua sensibilidade, mas também a estão buscando e descobrindo.

Concluindo, quero lhes dizer que a alma masculina depende da função estruturante da sensibilidade tanto quanto a alma feminina, mas que cada um tem que descobri-la e realizá-la a sua maneira. A Sombra da humanidade é muito grande e chega atualmente a ameaçar nossa sobrevivência, mas a possibilidade de as pessoas buscarem sua alma seguindo os caminhos de sua sensibilidade dentro do amor nos enche de esperança.

Muito obrigado!

 

 

Recebido em 03/08/2019
Revisado em 09/10/2019

 

 

1 Palestra proferida no VI Encontro Jung & Corpo, realizado no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo, em outubro de 2005.

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