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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

"O Amor", a pandemia e o analista confinado

 

"El amor", la pandemia y el analista confinado

 

 

Victor Palomo

Psiquiatra, analista junguiano, membro da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica (SBPA). Mestre e Doutor em Letras pela Universidade de São Paulo (USP). email: <victorpalomo@uol.com.br>

 

 


RESUMO

No presente artigo, o autor parte da análise do poema "O amor", de Vladímir Maiakóvski, em que o sentimento amoroso é usado como estratégia revolucionária, para estabelecer relações com a desigualdade brasileira, a pandemia motivada pela disseminação do Coronavírus e o possível lugar do analista nesse contexto.

Palavras-chave: "O amor", Maiakóvski, poesia, pandemia, psicoterapia.


RESUMEN

En el presente artículo, el autor parte del análisis del poema "El amor", de Vladímir Maiakóvski, en el cual el sentimiento de amor se usa como estrategia revolucionaria, para establecer relaciones con la desigualdad brasileña, la pandemia motivada por la propagación del Coronavirus y el posible lugar del analista en este contexto.

Palabras clave: "El amor, Maiakóvski, poesia, pandemia, psicoterapia


 

 

Mas o pensamento é escravo da vida, e a vida é o tolo do tempo, e o tempo que lança seu olhar sobre o mundo inteiro deve, ele mesmo, parar (William Shakespeare).

No ano de 1981, a cena teatral carioca exibiu um dos espetáculos que marcaram a efervescência dos ânimos consecutivos à anistia política de 1979, compulsoriamente sancionada pelo então ditador João Figueiredo: O percevejo, de Vladímir Maiakóvski. Encenada pelo diretor Luís Antônio Martinez Corrêa, a partir de uma tradução indireta feita por ele mesmo e revisada com base no original russo pelo professor Boris Schnaiderman, a montagem alcançou sucesso não somente pela inventividade do dramaturgo brasileiro, mas pelo vigor do texto do poeta russo que se opunha ao esvaziamento dos ideais revolucionários nas classes estudantil e operária de seu país, engendrado pelo poder stalinista que dominava a Rússia da segunda metade dos anos 1920.

O poeta e dramaturgo nascido na atual Maiakóvski, Geórgia, em 1893, e morto após atirar em si próprio em Moscou, em 1930, cantou a palavra poética como arma revolucionária. Lírico, político e exagerado, ele defendeu, até o falecimento, os ideais do levante russo de 1917, sendo, todavia, muitas vezes acusado de escrever com dicção demasiadamente personalista, o que resultaria numa obra "incompreensível para as massas", título de um poema-defesa escrito três anos antes do seu desaparecimento. Não é possível adentrar no texto da comédia O percevejo sem rememorar que Maiakóvski é um dos signatários do manifesto futurista "Bofetada no gosto público"1, publicado em 1912, em que se lê: "Somente nós somos o rosto do nosso tempo. A corneta do tempo ressoa na nossa arte verbal" (TELES, 1986). Juntamente com outros jovens artistas russos, inspirados nas "palavras em liberdade"2 do programa futurista de Marinetti - que, lamentavelmente e em oposição ao Cubofuturismo russo, caminhará em direção convergente ao fascismo mussoliniano - Maiakóvski alentava-se com a possibilidade civilizatória, e quiçá salvífica, do poder que a palavra assume quando organiza, em torrente poética, o conjunto imagético de um específico momento da História. Como um instrumento de sopro que clama ao gosto personático ("o rosto") que amplie seus ouvidos aos clangores ("a corneta do tempo") da anima3, a arte verbal do poeta ressoa mundos no mundo e os anima.

O percevejo é uma comédia fantástica montada a partir de um amontoado de situações pequeno-burguesas. O entrecho apoia-se na personagem beberrona Prissípkin, um operário dissidente que ascende socialmente ao se tornar noivo de uma comerciante e foge das trincheiras de trabalho após o suicídio de Zoia, uma colega com quem se relacionava afetivamente. Um incêndio no aguardado casamento com Elzevira, a noiva burguesa, extermina todos os personagens da peça. Passam-se cinco décadas e o cadáver de Prissípkin é encontrado congelado numa tina de água. Ele é ressuscitado juntamente com um percevejo, modelo 1928, que rasteja pela parede. Uma terrível epidemia assola a cidade e, provavelmente, sua causa esteja no álcool consumido pela população. Ou talvez seja motivada pelo Percevejus normalis, caçado incessantemente pelas ruas e que se encontra guardado no cofre do zoológico. Tal qual esse inseto, o homo sapiens redivivo não se ajusta à vida citadina e prefere a morada no zoo, junto aos outros animais. Após uma sequência de cenas em colagem, a cidade vai reconhecer essa estranha figura descongelada e delirante do ex-operário que, diante dos espectadores, numa cena patética e até mesmo trágica, revela-se não mais um homem, mas um inseto, o Philistaeus vulgaris (MAIAKÓVSKI, 2009). Os elementos característicos da mundividência maiakovskiana aparecem em cena: os escapes circenses, a ironia ferina contrária ao aburguesamento da vida e ao fetiche do consumo desenfreado. O homem ressuscitado num mundo globalizado somente encontra o lugar legítimo para sobrevivência na jaula de um zoológico, ao lado de um inseto, eleito seu fiel companheiro. A bem da verdade, os percevejos foram pragas perigosas e transmissoras de doenças, motivando campanhas sanitárias na época da Revolução Russa (SCHNAIDERMAN, 2008).

O final do espetáculo foi modificado na montagem de Luís Antônio Martinez. No ambiente político que acenava com o término do período ditatorial, evitou-se o desfecho amargo do texto original ao ser acrescentado, sempre com visão política fiel aos propósitos de Maiakóvski (2018), um excerto de um laudatório poema do mesmo autor, escrito em 1923: "Sobre Isto". Cantando o amor com acento revolucionário, a epidemia, o estranhamento e o desenraizamento de Prissípkin são redimidos pelo texto poético que reclama pelas transformações das consciências em oposição ao tempo que as escraviza. Se a repetição do trabalho escravocrata as confina, o amor se impõe como antídoto para as veleidades arbitrárias dos sistemas políticos que reavivam as defesas hipervigilantes de cidadãos atônitos e os exclui da fruição da beleza e da consciência da passagem do tempo como poéticas de liberdade. Tal poema, simultaneamente uma declaração de amor dedicada pelo poeta russo recluso a sua amada Lilia Brick, foi adaptado para uma letra de canção por Nei Costa Santos e Caetano Veloso e musicada pelo poeta baiano. A evocação cantada de "O amor", que transpunha a semântica final do texto de O percevejo para uma camada desassossegada e utópica, encerrava o espetáculo assomando-se como uma das mais belas composições do cancioneiro popular brasileiro:

Talvez
Quem sabe um dia
Por uma alameda do zoológico ela também chegará
Ela que também amava os animais
Entrará sorridente assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Ela é tão bonita que na certa eles a ressuscitarão
O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo o que não pudemos amar na vida
Com o estelar das noites inumeráveis

Ressuscita-me
Ainda que mais não seja
Por que sou poeta
E ansiava o futuro

Ressuscita-me
Lutando contra as misérias
Do cotidiano
Ressuscita-me por isso

Ressuscita-me
Quero acabar de viver
O que me cabe, minha vida
Para que não mais existam
Amores servis

Ressuscita-me
Para que ninguém mais tenha
Que sacrificar-se
Por uma casa, um buraco

Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme

E o pai
Seja pelo menos o universo
E a mãe
Seja no mínimo a Terra
A Terra, a Terra (VELOSO et al., 1981).

Uma das funções precípuas da linguagem é presentificar o mundo, torná-lo tangível por meio do som e do sentido. Daí o uso, pelo poeta, de indicadores de leitura que na letra sustentam o primeiro e segundo versos: "Talvez", "um dia". O que poderia soar agônico, como o eco de uma locução hipotética ("quem sabe"), aqui se dilui pela asseveração (otimista?) que anuncia a chegada de uma entidade: "ela". A sequência fônica, cantada quase como um sussurro, permite um efeito visual em que se enxerga uma imagem que se esgueira "por uma alameda do zoológico". Ora, o significado dessa imagem que poderia apressadamente ser apreendido literalmente pela pressa da fala ordinária e serial, é aqui subordinado pela analogia: "ela" é a possibilidade de reflexão revolucionária que flui pelas veredas da imaginação. Jung percebeu que a atividade reflexiva está inexoravelmente associada ao psiquismo e que tal conjunção resulta de uma mediação do arquétipo da anima: "Através da reflexão, a 'vida' e sua 'alma' são abstraídas da Natureza e dotadas de uma existência à parte" (1986, § 235). Hillman (1995a) cita essa passagem e comenta que a anima assim compreendida seria tanto a possibilidade de abstração por meio da reflexão como também pode personificar a vida e a alma numa forma refletida. Essa interioridade refletida, da qual convém lembrar a etimologia de "reflexão" - curvar-se ou voltar para trás, indica um sentido contrário ao desenvolvimento natural. Retomando Jung (1986), refletir é colocar-se em relação a um confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve ser entendida como uma tomada de consciência.

A reflexão assim mediada voltará encarnada pela anima, transitando do zoológico dos instintos humanos - ainda que esses sejam mais constitutivos da alma do que aparentem - à consciência das atrocidades do mundo infame, vil e nadificado pelos ditos políticos abjetos que o exasperam. Essa anima pode ser revolucionária se conscientizada pela palavra poética, animada pela força das vísceras que reagem às emoções atrozes de um mundo desconcertado pela sociedade do desempenho: "o coração destroçado já/ Pelas mesquinharias". No caminho argumentativo que Jung sugere sobre o ato de refletir, o homem-mercadoria exausto pode elaborar esta conflitiva - assim intui o poeta - se endereçar à função sentimento4 a possibilidade de discriminação da tensão inerente entre o estado de natureza (a animalidade) e a civilização. "Alcançar tudo que não podemos amar na vida" suscita, ademais, a revisão das desigualdades abissais engendradas por um processo civilizatório modernizador que nos deixa perplexos, imóveis e infelizes, mobilizando a violência constitutiva dos instintos predatórios da besta humana.

O conceito de civilização não tem um sentido unívoco. Todavia, sabemos que aparece na história das ideias associado estreitamente à acepção moderna de progresso. Ligada semiologicamente ao abrandamento dos costumes, à educação do espírito, à glorificação da polidez, das ciências e da aquisição de bens materiais que qualifiquem o bem-estar da vida humana, a hermenêutica originária de "civilização" implica a superação positivada da condição de barbárie e a aquisição das benesses próprias a uma suposta civilidade. Tornar algo civil implica o contraste com sua antinomia: a selvageria constitutiva do estado de natureza (STAROBINSKI, 2001). Tal perspectiva não emergiu de forma linear, antes teria resultado de uma confluência de discursos que a enformaram e, ao mesmo tempo, de oposições que desconfiavam enfaticamente das suas intenções, como se pode depreender do estudo de parte dos textos do movimento romântico. No ensaio As raízes do romantismo, Isaiah Berlin (2015) esquadrinha as poéticas contrárias aos ideais de formalidade, nobreza e simetria iluministas que são em parte rachadas pelos arautos românticos, para quem o individualismo, o voo ao infinito e o inconsciente tornam-se temas prevalentes. O primitivismo, o exótico, o grotesco, os poderes das trevas, o irracional e o indizível punham em suspeita a empreitada civilizatória amalgamada ao progresso, anunciada, naquele momento, pelas revoluções burguesas do século XVII.

A derrocada da civilização moderna estava anunciada: algum elemento dentro dela trabalhava de forma oposta, tornava-a idiossincrática. Esse mal-estar fora apontado por Freud (2013) quando questiona se haveria alguma forma possível para conciliar os interesses individuais e coletivos na vida em sociedade. Esse conflito parece insolúvel porque amor e agressividade, forças arquetípicas, se digladiam no palco cotidiano, desvelando que se a ciência ofereceu avanços contra algumas ameaças presentes na vida dos homens, não os fez mais felizes. Um furor agressivo escapa do zoológico e, não domesticado, faz do homem um caçador implacável do outro, sugerindo que a proposição iluminista de civilização seria inexequível, devido às disposições internas erráticas dos sujeitos que a compõem.

Talvez, quem sabe, canta Prissípkin, a despeito das mesquinharias do mundo moderno e da agressividade própria ao animal humano, poderemos alcançar o que nos foi furtado amar na vida por meio da pujança da imaginação erótica, "ela" que chegará sorridente e nos ressuscitará numa civilização decadente. Aqui as imagens de Eros referem-se a uma possibilidade de ligação do mundo e com o mundo por meio da palavra poética: "Ressuscita-me/ ainda que mais não seja/ Porque sou poeta/ e ansiava o futuro". O mundo morre quando privado de esperança na fantasia e, se psique é fantasia, como evidencia Jung (1987), apossamo-nos do poder da palavra como uma forma resiliente para podermos divisá-lo menos desigual e injusto. Talvez, quem sabe... Poesia aqui é resistência. Uma poesia que repousa num solo mítico ou mitopoético. Poesia como o direito humano à fabulação que resgata o sujeito da pulsão sórdida que o impele desenfreadamente à obviedade tola e sedutora dos templos de consumo, armadilha que faz com que a coisa adquirida não mais se descole da subjetividade reduzida à deslavada condição de mercadoria, em inquietante liquidação, ou ainda humilhada pela ânsia patética da compra do estado de felicidade.

"Ressuscita-me/ lutando contra as misérias do cotidiano", grita o vate. A poesia é discurso que enfrenta as injunções do poder dominante. Cabe indagar, todavia, qual tipo de estado poético seria esse. Acredito naquele visceralmente atrelado à pulsação do coração, ao sentimento apressadamente lido como utópico, ingênuo ou até demagógico, diriam os mais ásperos e desesperançados. Esta é a reflexão que, sustentada pela função sentimento, direciona a aquisição de consciência que recorda o aspecto erótico da vida como estratégia revolucionária, conduz-lhe como conhecimento imposto pelo coração e dele não se distancia. Esta é a fera que hiberna nos zoológicos de vidro das sociedades em decadência e que, descongeladas tal como Maiakóvski compôs Prissípkin, articula seu canto profundo que toca as correntes subterrâneas da imaginação mitopoética, caso seja possível considerá-la como um compromisso político. Atino ao papel político da função sentimento, a um pensamento do coração que possa encorajar a luta em favor da mitigação das desigualdades. Refiro-me às funções estruturantes da empatia e da compaixão, mobilizadas pela palavra poética quando renuncia às arbitrariedades e às injustiças do mundo desconcertado - ou as denuncia.

A poesia rediviva será arma revolucionária contra as ditaduras, canta Maiakóvski em "O amor", pois o conteúdo de um poema não se reduz à mera expressão de emoções e de experiências individuais. Essas cobiçam uma escuta coletiva quando o poeta, encantoado pela solidão e pelo desespero, protesta contra uma situação conjuntural hostil, opressiva e alienada, enunciando um mundo, ou o sonho de um mundo, em que não se tivesse que lutar para adquirir "uma casa, um buraco". Essas imagens ganham força no poema devido a sua alta voltagem metafórica, posto que a casa seja nosso lugar no mundo, nosso direito ao abrigo para que nos abriguemos no deleite da imaginação e da fantasia. Com essa função humanizadora, concede-se valor cognitivo às séries estilísticas advindas da imaginação poética: imaginar coincide com uma forma de conhecimento - a reflexão - quando promove uma inflexão que fomenta uma ruptura com o mundo das aparências, deslocando-nos das imposições do mundo coisificado. Aqui a palavra é serva da anima, visceralizada, à imagem de uma fera do zoo e flui no discurso a favor da fruição das belezas do mundo, sendo indicadora de disposições psíquicas que podem abrandar as vilezas desse mesmo mundo. O "amor" não se furta a seu canto político, como Maiakóvski vocifera em "Sobre isto" (2018, p. 82):

Maldizendo as camas,

    erguendo-se do estrado,

para que o amor preencha a imensidão.

Para que no dia,

  em que envelhecer de dor,

não suplique como um mendigo.

Esse protesto constitutivo da poesia lírica está na base das argumentações de alguns autores comprometidos com as agruras do século XX, como, particularmente, Adorno no ensaio "Palestra sobre lírica e sociedade". Diz o filósofo alemão (2006, p. 69): "A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna, e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida". Há uma fratura histórica que dissocia o eu lírico da natureza, da anima visceral, e esta instância escapadiça - o eu - pode se empenhar na devoção à anima por meio da atividade imaginativa implícita ao discurso poético. As altas composições poéticas devem "sua dignidade justamente à força com que nelas o eu desperta a aparência da natureza, escapando à alienação", prossegue Adorno (2006, p. 71). O subjetivo assim se converte numa função objetiva social pelo encadeamento de imagens caras à linguagem poética amalgamada à natureza.

O retorno de Prissípkin ao zoológico, cantando "O amor" ao final da versão brasileira do espetáculo de Martinez Corrêa, guarda essa evidente ressonância romântica, à guisa de reivindicação, quando o herói se desola com a tragicomédia humana e decide se consagrar à fantasia poética, para que doravante "o pai, seja pelo menos o Universo/ E a mãe/ Seja no mínimo a Terra". Num contexto distópico em que a palavra poética se desvanece em desesperanças, o canto dissolve as muralhas narcísicas do eu e impõe a abertura de suas portas a uma sonoridade coletiva: a um Pai e uma Mãe coletivos. Essa poética toca a dimensão mítica e utópica em que um pai e uma mãe se descolam de uma acepção personalista e, agora instâncias universais, mitigam as desigualdades que implodem a imaginação já esmorecida pela constatação de que, à humanidade, foi rogado um destino impossível.

***

"O século trinta vencerá": esse verso ecoa incomodamente sobre o cenário desolador do planeta Terra confinado e acossado pelas ameaças da pandemia motivada pela disseminação no novo Coronavírus. Fustigados pelas fantasias de morte iminente de nós mesmos e das pessoas que amamos, incomodamo-nos com as desencontradas notícias e os divergentes boletins epidemiológicos publicados pelos serviços de saúde, aturdidos, em diferentes países. Inquietamo-nos justamente pela necessidade imperativa de isolamento social que imobiliza o presente e oprime as esperanças de uma vida futura em que se possa considerar, ao menos brevemente, a possibilidade de tocar o outro e expressar, pelo registro tátil dos mandamentos afetivos - imagem tão cara a nós, os brasileiros -, a solidariedade e o calor que acolhem o desespero do outro ou lhe conferem, ainda que momentaneamente, a condição de abrigo.

Não se pretende aqui romantizar a ameaça à vida coletiva que nos assola e anuncia os iminentes empobrecimentos e desempregos em massa, com quedas progressivas das bolsas de mercado e desespero de trabalhadores e donos de sistemas de produção. Seria ingênuo e contraproducente. Contudo nos cabe, ainda que brevemente, se não inventariar, ao menos registrar que os debates sociológicos e filosóficos registram linhas não necessariamente concordantes sobre a epidemia global. O filósofo esloveno Slavoj Zizek (2020), por exemplo, sugere que a cooperação global aumentará com o definitivo declínio, que já fora há anos alarmado, do sistema capitalista pautado no lucro de grandes bancos e empresas como a de produção de automóveis. Para ele, autor de um texto de intervenção - Pandemia: Covid-19 e a reinvenção do comunismo - a emergência do vírus tem caráter revolucionário, porque estamos descobrindo, de chofre, que precisamos uns dos outros. Precisamos de uma solidariedade internacional e de uma cooperação globalmente coordenada, reinventando a lógica do velho comunismo. Essa percepção favoreceria a implantação de políticas públicas de saúde de alcance mais ampliado do que as que temos assistido ao longo dos últimos anos: "a Organização Mundial da Saúde sempre o repetiu: e, em vez disso, não existia nada similar nem mesmo dentro da União Europeia".

Zizek percebe que a crise reivindica ações sanitárias, econômicas e de saúde mental. Sobre essa última, o pensador esloveno remonta ao estudo de Elizabeth Kübler-Ross e o célebre ensaio Sobre a morte e o morrer. Nesse trabalho, a autora delimita as fases de um processo de luto que implicariam numa negação ("Não é verdade, trata-se de uma paranoia coletiva"); raiva ("Os chineses, que possuem o controle da produção de mercadorias, também poluem o meio ambiente"); negociação ("Conseguirei viver, vou cuidar da minha casa"); depressão ("Não suportarei, não tenho energia suficiente para o confinamento") e a aceitação ("Posso morrer e a crise implicará a revisão dos rumos das vidas em coletividade"). Nas situações que envolvem trauma, essas etapas assomam-se dramáticas, não respeitando uma sucessão linear e que, muitas vezes, conduzem os atores envolvidos ao pânico: o medo em sua expressão paroxística. Em acréscimo, Zizek faz o diagnóstico de que somos paralisados por uma paranoia particular que se estabelece usual ao agregar aqueles que partilham da mesma ideia, fazendo-se um estado coletivo de desconfiança que ameniza a condição delirante: assim deve ser, se nos parece.

"Ressuscita-me, quero acabar de viver o que me cabe": o texto de Zizek se pretende prognóstico e tenta supor como será a vida que nos restará, assumindo, talvez, certo tom profético que matiza sua própria enunciação. A maior ilusão é a de que, após o pico da disseminação viral, a vida voltará à normalidade. Como se Prissípkin descongelasse e saísse às ruas para celebrar o mundo que também se congelara. A vida socioeconômica e das trocas afetivas se modifica ao longo das situações de crise e esse fato provocará alterações nas situações elementares da vida cotidiana. Como e quando iremos aos cinemas, apertaremos as mãos e abraçaremos os amigos, trocaremos um beijo fortuito com alguém que seduzimos e por quem nos deixamos seduzir em uma balada, sentaremos na poltrona de um avião ou ocuparemos o assento de um ônibus sem medo? No momento, apenas os olhos se desvencilham, assustados e pidões, sobre a linha superior das máscaras que nos defendem do outro, conotando a saudade dos rostos que se mostraram outrora e agora impositivamente se escondem, espavoridos.

Essas respostas talvez não sejam enunciadas num futuro breve. Imbuídos por uma cognição analítica derrotista, muitos suspeitamos incrédulos que os discursos não serão exatamente animadores e que nossos corpos se submeterão ao impacto do controle estatal ainda por um período mais longo de quarentena do que delineado pelas previsões da mídia otimista. Essas produções narrativas anunciam o tempo da angústia, do isolamento compulsório e das conjecturas alarmistas sobre os destinos da vida em sociedade. "Hegel escreveu que a única coisa que podemos aprender com a história é que não aprendemos nada com a história, então duvido que a epidemia nos deixará mais sábios" (ZIZEK, 2020, p. 35), comenta o filósofo de Liubliana, em tom pessimista. A nova normalidade será erigida sobre as "ruínas de antigas vidas" e nos implica indagar o que há de errado nos sistemas produtivos e de vida social atuais para sermos pegos, despreparados, por essa pandemia. A simples mudança das formas de atendimento à saúde não esgotará o tema. A epidemia do Coronavírus não assinala apenas o limite da globalização de mercado; ela assinala também o limite ainda mais fatal do populismo nacionalista que insiste na soberania plena de Estado, motivo pelo qual Zizek lembra que a crise ressuscita alguns temas das antigas bulas comunistas, o que desencadeou ferrenha crítica por parte de seus colegas.

O renomado filósofo italiano Giorgio Agamben, de forma surpreendente, qualificou como "frenéticas, irracionais e inteiramente infundadas" as medidas adotadas contra a "alegada" epidemia do Coronavírus. Como os dados não pareciam, à época do artigo "A invenção de uma epidemia" (2020), serem robustos suficientemente para provocar uma situação de pânico, corremos o risco - alerta - de que o estado de exceção se transforme no paradigma de uma nova governabilidade. As medidas de higiene produzem uma inautêntica militarização do Estado e o cerceamento das liberdades de deslocamento por parte dos cidadãos, fatos preocupantes num regime democrático. O artigo faz parte da coletânea Reflexões sobre a peste: ensaios em tempo de pandemia (AGAMBEN, 2020), espécie de diário de quarentena, cujas provocações incomodam-se sobre como o Estado lidará com o biopoder, tema que tangencia o direito individual à liberdade. Governos, instituições de saúde e parte da população naturalizaram a gestão da vida em nome da sobrevivência. A governabilidade impõe aos cidadãos medidas que tentam minimizar riscos, num limiar que separaria a humanidade da barbárie. No prefácio a esses textos coligidos, a professora Carla Rodrigues (2020) destaca que não se trata exatamente de uma situação de exceção, mas da explicitação do que agia de forma camuflada e se evidenciou com a declaração de pandemia. Ou seja, de que a defesa da vida é reivindicada para o triunfo de um projeto de controle baseado na biopolítica, com autoridades localizadas em muitas esferas do Estado e em organismos supraestatais responsáveis pela vigilância, inteligência artificial e também pelas forças policiais e militares que operam a serviço dessa lógica.

"Para que ninguém mais tenha que sacrificar-se por uma casa, um buraco". O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em A cruel pedagogia do vírus (2020), alinha-se à tese de que à medida que o neoliberalismo se fez voz hegemônica do capitalismo e acomodou-se à lógica do setor financeiro, o mundo tem vivido um permanente estado de crise. O que seria uma contradição etimológica, porque o que é crítico é passageiro, excepcional. Quando a crise se torna permanente, constitui a perspectiva por meio da qual se enxerga o restante. Nos últimos 40 anos, tal permanência tem por objetivo legitimar a escandalosa desigualdade social e concentração de riquezas, o que boicota medidas eficazes para tentar impedir a iminente catástrofe ecológica. A pandemia, nesse contexto, agrava uma situação endêmica de privação vivida pela maioria da população mundial.

Boaventura delineia o tripé que organiza as sociedades desde o século XVII: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Essas instâncias que nos conduzem a um sem-número de submundos seriam dotadas da prerrogativa da invisibilidade e nos impõem a crise e a derrocada que experimentamos. Com verve crítica aguçada, o português responde a Agamben que teremos que distinguir o futuro não apenas entre estado de exceção, mas também entre estado de exceção democrático e estado de exceção antidemocrático. Refuta, também, parte da argumentação de Zizek, para quem o "comunismo global" seria um possível caminho para a pós-pandemia. Tal argumentação soa descabida em tempos de "exceção excepcional". E aconselha: os intelectuais, no momento, devem alinhar-se às necessidades mais elementares dos cidadãos comuns, entender suas inquietações. Como se fosse necessário direcionar suas intenções retóricas e poéticas para situações de retaguarda e não de vanguarda: "Em muitos países, [a vanguarda] são os pastores evangélicos [...], apologistas da dominação capitalista, colonialista e patriarcal" (SANTOS, 2020, p. 14).

"E o pai/ seja pelos menos o universo/ E a mãe, seja no mínimo a Terra". Nesse caminho argumentativo, Santos enumera algumas possíveis lições, a começar pelo fato que a pandemia não mata tão indiscriminadamente quanto se julga, mas afetará arrasadoramente as regiões mais desfavorecidas de cuidados médicos-sanitários no mundo. Segunda, neste momento de crise globalizada, o sistema capitalista entrará em descrédito: poderá subsistir como um dos sistemas em voga, mas não como o que dita a lógica do Estado e da sociedade. Terceira lição desalentadora: o colonialismo e o patriarcado mostram-se incomodamente vivos desse momento-limite. Quarta, que as sociedades forçosamente terão que buscar alternativas para os modos de vida comuns. A última lição é que nos últimos 40 anos vivemos uma quarentena política, cultural e ideológica face às imposições de um sistema capitalista fechado em si mesmo. E numa visada que se aproxima do grito poético de amor revolucionário escrito por Maiakóvski há quase cem anos, o eminente pensador português conjectura, em visada politicamente otimista, destacando a potência transformadora da imaginação como função cognitiva:

A quarentena provocada pela pandemia é afinal uma quarentena dentro de outra quarentena. Superaremos a quarentena do capitalismo quando formos capazes de imaginar o planeta como a nossa casa comum e a Natureza como a nossa mãe originária a quem devemos amor e respeito. Ela não nos pertence. Nós é que lhe pertencemos. Quando superarmos esta quarentena, estaremos mais livres das quarentenas provocadas por pandemias (SANTOS, 2020, p. 26).

No Brasil de 2020, somos atropelados por um governo reacionário, misógino, homofóbico, apreciador de torturadores, partidário de ideais eugenistas e alheio às aquisições recentes da ciência e da tecnologia. Ao se alinhar com a tradição mandonista, patrimonialista, autoritária e corrupta que engendrou a formação do Estado brasileiro, o atual governo presidencial desdenha do número de mortos pela Covid-19 e tenta organizar uma (des)atenção ministerial à saúde comprometida com a macroeconomia, desqualificando evidências científicas sobre a pandemia produzidas no país e no mundo. Munida pelo ódio de um discurso paranoide e violento, a atual gestão governamental desastrosa desconhece o país em sua pluralidade, numa cegueira e surdez cínicas com efeitos programáticos de manutenção das desigualdades e que conta, no momento, com o apoio de um terço do eleitorado. Triste e desalentador. Sobretudo, se considerarmos o silenciamento de boa parte da dita parcela esclarecida da população, que aparenta perplexidade e ofuscamento, como se a crueldade dos riscos da pandemia somada à malevolência do desgoverno turvassem as visões, secassem as gargantas e paralisassem as penas.

***

Tento organizar essas linhas no lugar enunciativo do analista importunado pelas dúvidas sobre os desdobramentos da pandemia, inquieto e (i)mobilizado pela angústia própria a questões que não são respondidas pelas vozes do presente e talvez não permitam o endereçamento a experiências pretéritas. Não me apraz superpor estados de exceção motivados por pestes ao longo da história ao estado atual de pandemia, esforço que me parece frágil e desprovido de rigor metodológico. Nosso tempo e nossa condição de desespero ativam outro sentimento do mundo. Interrogo-me quais seriam seus componentes, quais conjuntos psicológicos, a saber, quais matrizes arquetípicas poderiam colaborar para que possamos rascunhar esse sentimento.

O tema da espera e seu antípoda - o desespero - surgem numa livre associação e parecem anunciar sua centralidade. Vivemos na sociedade do desempenho, cujo valor atribuído aos sujeitos numa economia de mercado remete ao reconhecimento dos seus atos e das ações vinculadas a excelência com que seu ofício é efetuado. Somos performativos. Entretanto, frente ao nevoeiro recessivo que se anuncia, os lugares narcísicos dos discursos serão obrigados a se adaptarem, ou se assujeitarem, à minorização dos seus efeitos. Há de se aprender a estar no tempo sem a pretensão de controlá-lo, sem que a performatividade e a vaidade exibicionistas remetam-nos a uma zona penumbrosa na qual a arrogância dos dispositivos de poder dissipem as possíveis funções insubmissas da palavra com intenção revolucionária. A hora é de entrar num acordo com o tempo e, creio, talvez não seja o tempo da saudade, nem da previsibilidade obsessiva do devir, do tempo do futuro, mas a fruição do tempo de agora. Essa perspectiva é estranha ao homem do desempenho, posto que sua ação cotidiana seja resultado, justamente, da renúncia a esse estado contemplativo: estar no tempo, dentro do tempo, no coração dele.

E por falar em saudade, devo confessar uma anima saudosa e dionisíaca. Sinto saudades de um país que nunca existiu, de um lugar maiakovskiano em que o amor pudesse lutar e fosse divulgado como arma revolucionária. No atual contexto distópico, sucumbo ao aparente posicionamento ridículo quando reativo o contexto utópico de um Brasil imaginado por gênios do século XX, contemporâneos a Maiakóvski, revolucionários também, especialmente quando propunham a fusão entre a arte e a vida nas suas poéticas, respectivamente, arlequinal e antropofágica: Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Sinto saudades dessa dicção esperançosa, bastante ácida e crítica, mas em parte significativa ancorada numa anima otimista, que apostava que o campo da estética poderia ser capaz de emancipar o homem. E também de abrasileirar o Brasil, compilar suas singularidades em cotejamento com os ensinamentos do mundo. Naquele momento - há cem anos - uma anima subversiva e festiva tentava delinear nossa fisionomia. Por exemplo, na poética de Oswald de Andrade (2001), quando declara que nunca houve catequese, o que fizemos foi Carnaval. Dionisismo e brasilidade, eixos temáticos que me soam um tanto deslocados num contexto de confinamento sanitário ameaçado à sujeição dos ditames levianos, totalitários, abjetos e genocidas de um presidencialismo vil.

Mas a hora requer partilhar o sensível, confiar à palavra um lugar de resistência. Sentado à mesa do apartamento onde moro e atualmente trabalho, penso numa imagem que possa dar materialidade ao lugar do analista nesse contexto adverso. Ocorre-me a imagem arquetípica do criador ferido Hefesto, deus da mitologia grega. Deus do trabalho, do ofício da imaginação e da arte. Colecionador de feridas motivadas por abandonos por parte do pai, da mãe, da amada Afrodite, Hefesto dirigia-se à sua oficina, na base do vulcão Etna, de onde nasciam joias, armaduras e belezas. Esse conjunto de imagens se opõe à ideação do enclausuramento, associando-se, antes, ao espaço de concentração, de criatividade, de tenacidade que podem ser mobilizados quando, em condições de isolamento, imaginamos um espaço de imersão. Qual o alquimista da palavra. Ainda que restrito a um contexto pequeno-burguês ao qual não me furto à crítica e tomado pela consciência do alcance dessa troca, somente essa perspectiva de liberdade pode reunir sensibilidade e intelecto, prazer e razão que atenuem a dimensão satúrnica de divisar o mundo por meio de uma tela. Tenho apenas um computador e um sentimento do mundo e desejo participação, desejo uma palavra engajada, comprometida com a transformação do mundo, para que o próximo amanhecer se distancie do que profetizou Carlos Drummond de Andrade, quando anunciou no poema "Sentimento de mundo": "Esse amanhecer/ mais noite que a noite" (2012, p. 9).

O tempo é de humildade e da busca das palavras que comuniquem esse sentimento participativo. Ou talvez que bradem sua impossibilidade. Há o medo da morte e de que morram nossos entes queridos. É verdade que o temperamento saturnino é afeito aos sujeitos que lidam com as palavras, aos pensadores, aos poetas e aos artistas. E por que não acrescentar a essa lista, o saturnismo é também caro aos analistas. Em condição dissonante ao saturnismo, o mitologema de Hefesto, fechado em sua cratera com focalização criativa, com "concentração construtiva", parafraseando o escritor italiano Italo Calvino (1993), ilumina, creio, um pouco da tarefa reclusa que nos foi imposta pelas vicissitudes da natureza. Distante de uma interpretação melancólica, a ideia de trabalho sugerida pelo conjunto psicológico que os gregos antigos denominaram Hefesto, não é a da transformação literal da matéria, mas das transposições de sentidos da matéria de que é composta a alma, um trabalho tenaz e contundente, fundado, nessas circunstâncias, na reconfiguração do tempo medido. A coragem demanda a devoção a esse trabalho, que pode transcender seus efeitos da esfera privada para a pública. Ainda que possa parecer, inadvertidamente, uma condição desavisadamente alienada, o ofício analítico que aposta na função poética da palavra configura uma experiência estética com intenção política. Como se "ela", a imaginação poética revolucionária, viesse pelas alamedas do mundo e ressuscitasse o homem para um tempo mais justo. Sobre essa premissa, não escapo de citar uma passagem de Jacques Rancière (2009, p. 65), no ensaio A partilha do sensível, que converge com esse argumento: "A partilha democrática do sensível faz do trabalhador um ser duplo. Ela tira o artesão do 'seu' lugar, o espaço doméstico do trabalho, e lhe dá o 'tempo' de estar no espaço das discussões públicas e na identidade do cidadão deliberante".

Refiro-me, nesse ponto, à urgência em apostar no poder poético insurgente da palavra quando apartada do lugar alienado do trabalho repetitivo. Procuro na tela que me comunica ao mundo algum sentimento de esperança e me desolo. Tenho o privilégio de, num país pobre e deseducado, poder submeter-me a um regime de quarentena preventivo à contaminação do Coronavírus. O operário do gigantesco prédio que se ergue à minha frente é privado desse direito, assim como a cozinheira do restaurante vizinho ao meu domicílio, por exemplo. Todavia, inquieto e constrangido, indago-me sobre o lugar do analista num estado de exceção e me concentro na escuta da canção de Caetano sobre um poema de Maiakóvski, em que o amor é pronunciado com intenção transgressora. Numa carta a sua amada, o poeta russo conclui: "O amor é o coração de tudo" (MAIAKÓVSKI, 2018, p. 171). O amor é a palavra-liberdade, o sentimento que pode conferir escapes imaginativos ao trabalho com a alma, como direito à experiência estética em oposição dialógica ao cotidiano enclausurado e alienado. Talvez, quem sabe, um dia...

Jacques Rancière defende essa possibilidade de partilhar o sensível, caso não se oponha, por exemplo, à atividade imaginativa da arte e à potência ascendente do trabalho operário: "É como trabalho que a arte pode adquirir o caráter de atividade exclusiva" (2009, p. 68). As práticas artísticas não são uma exceção às outras atividades do sistema de produção, mas a reconfiguram. E aqui arte é transformação da matéria, da matéria psíquica. O cuidador da psique como artista. Recordo-me do pavilhão de Israel na Bienal de Veneza de 2019, cuja instalação era um ambulatório médico - o Field Hospital X (FHX) -, montado por Aya Bem Ron (2020), pesquisando como a arte pode agir e reagir ao encarar as doenças sociais e os valores corrompidos do mundo contemporâneo. As artes da cura e as artes plásticas - e da palavra - reunidas, metáfora inextricável para encaminhar os questionamentos da atividade heféstica do analista. A realidade adversa teria seu amargor atenuado pelo poder poético e imaginativo da palavra quando suas carências se satisfazem sem a rendição ao trabalho alienado, recusando as facetas "do mundo destroçado já/pelas mesquinharias".

A experiência estética atua, nesse contexto, como caminho político que conduz à liberdade. Em chave utópica, Maiakóvski cantara o poder da palavra poética:

Ressuscite-me -

    quero viver a vida até o final!

Para que o amor não seja escravo

   de casamento,

     luxúria,

       pão (2018, p. 82).

Em registro também utópico, o espetáculo de Martinez Corrêa celebrava a ressurreição de Prissípkin como metáfora do brasileiro confinado nos anos de chumbo, cantando "O amor" como melodia encantatória e revolucionária, para que ninguém mais tivesse que lutar por uma casa, um buraco. Num contexto distópico, anos antes, 1960, Carolina Maria de Jesus aposta no poder transformador e salvífico da palavra5, confiando a seu diário poético, escrito na privação de uma favela, as agruras de um sentimento do mundo vivido e lamentado no Quarto de despejo:

29 de maio. Até que enfim parou de chover. As nuvens desliza-se para o poente. Apenas o frio nos fustiga. E várias pessoas da favela não tem agasalhos [...] Percebi que chegaram novas pessoas para a favela. Estão maltrapilhas e as faces desnutridas. Improvisaram um barracão. Condoí-me de ver tantas agruras reservadas aos proletários. Fitei a nova companheira de infortúnio. Ela olhava a favela, suas lamas e suas crianças paupérrimas. Foi o olhar mais triste que eu já presenciei. Talvez ela não mais tem ilusão. Entregou sua vida aos cuidados da vida (JESUS, 2018, p. 46).

Carolina ocupava-se de si e resistiu pela função poética e política conferida à palavra. A muitas Carolinas desse país não é dado o direito de isolamento social preventivo em um contexto de pandemia. Fazer alma, cuidar do outro - ofício do analista - é provocar, como sugeriu Jung (1986), essa reflexão. Tal ação implica o confronto com o cenário de desigualdades que presenciamos e, parafraseando Adorno, o uso contumaz da lírica de protesto como garantia para o direito humano de fabular, a serviço da aquisição de uma consciência crítica e que não se dissocie da experiência estética, tocadas pelo vigor e pela força da vontade política infensa à alienação. Assim o corpo confinado ressuscita e a alma não se esvazia!

 

Referências

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Recebido em: 26/05/2020
Revisado em 28/06/2020

 

 

1 No poema "Inspiração", que abre o livro Pauliceia desvairada (2013), publicado por Mário de Andrade em 1922, há um verso que estabelece relações de intertextualidade com o manifesto russo: "Bofetadas líricas no Trianon... Algodoal!..." (2013, p. 77).
2 No "Manifesto técnico da literatura futurista", F. T. Marinetti sugere que somente "o poeta assintático e de palavras soltas poderá penetrar a essência da matéria e destruir a surda hostilidade que a separa de nós" (TELES, 1986, p. 98).
3 A noção de anima é central na obra de Jung. Em latim, significa alma ou psique. Predomina, na literatura junguiana clássica, com o sentido da dimensão arquetípica feminina que se opõe às disposições de uma consciência predominantemente masculina. Essa proposição foi ampliada e revisada por muitos autores, como Gaston Bachelard ou James Hillman, para quem a anima refere-se a imagens do desejo, do humor, da sensibilidade criativa e pertence à interioridade, ou é a perspectiva arquetípica por meio da qual essa interioridade do sujeito é desvelada, revelada e conhecida.
4 Jung (1987) considera como característica da função sentimento a capacidade da consciência de apreciar as emoções, ordená-las e articulá-las segundo valores e sentidos. James Hillman (1995b) a considera o conteúdo e o procedimento da psicoterapia.
5 A edição feita por Audálio Dantas preservou a força da poética original, inventiva e subversiva de Carolina, inclusive pela preservação das imperfeições gramaticais.

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