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Junguiana

versão On-line ISSN 2595-1297

Junguiana vol.38 no.1 São Paulo jan./jun. 2020

 

Feridas psíquicas, Jung e o narcisismo

 

Heridas psíquicas, Jung y narcisismo

 

 

Rosana Rubini

Psicóloga e mestre em psicologia (PUC-SP). Membro analista da SBPA/IAAP. e-mail <rosanarubini@hotmail.com>

 

 


RESUMO

O artigo tem como meta pensar as feridas psíquicas e o narcisismo no campo da psicologia analítica e sua importância no processo de análise. O conceito de narcisismo e seu surgimento na psicanálise freudiana difere da forma como o tema é tratado por Jung. Observamos como sua ótica sensível e profunda nos auxilia a refletir sobre as feridas psíquicas.

Palavras-chave: Feridas psíquicas, Narcisismo, Jung, Energia psíquica, Eros.


RESUMEN

El artículo tiene por objeto pensar en las heridas psíquicas y el narcisismo en el campo de la psicología analítica y su importancia en el proceso de análisis. El concepto de narcisismo y susurgimiento en el psicoanálisis freudiano difieren de la forma en que Jung trata el tema; observamos cómo su perspectiva sensible y profunda nos ayuda a reflexionar sobre las heridas psíquicas.

Palabras clave: Heridas psíquicas, Narcisismo, Jung, Energía psíquica, Eros


 

 

Ser ferido, ter feridas, causar ferimento ao outro é próprio do ser humano e atravessa toda a história da humanidade. Nosso ponto de partida é a dimensão arquetípica da ferida e todo o rol de consequências causado por elas em nossa psique, em nosso comportamento, no trato com nossas emoções, com o desenvolvimento de uma resiliência ou de um transtorno psíquico.

Na Psicologia Junguiana falamos de feridas de várias maneiras. Como feridas psíquicas, narcísicas, maternas, paternas, primais ou de amor. Vários autores falaram direta ou indiretamente sobre elas que, a meu ver, são os objetos de todo o trabalho de análise e o motor do processo de individuação.

Começarei contando o mito de Narciso e Eco e falando sobre o narcisismo, conceito revelado na psicanálise freudiana e tratado, ao longo dos anos, por inúmeros teóricos da medicina e da psicologia em suas diversas abordagens. Há uma relação clara entre o que chamamos de feridas psíquicas com as formulações teóricas do narcisismo, uma vez que o conceito se refere a um processo fundante da relação do indivíduo com seu mundo interno e externo e que perdura ao longo de toda a vida. Qualquer abalo que se inscreva nesse processo pode ser vivenciado e registrado psiquicamente como ferida.

O mito de Narciso e Eco foi narrado pelo poeta latino Ovídio (43 a.C./17 d.C.) em uma de suas obras mais famosas, Metamorfoses, composta de quinze livros com poemas que contam feitos de heróis e deuses mitológicos com o intuito de explicar a origem do mundo, das plantas, dos animais e da vida em si (OVÍDIO, 2017).

Narciso era filho da ninfa Liríope que foi violada pelo rio Céfiso. Quando nasceu era tão lindo que sua mãe, preocupada que sua beleza fosse uma ofensa a algum deus e considerada uma hýbris - um descomedimento - consultou o velho e cego Tirésias que tinha o dom da mantéia, da adivinhação. Viveria muito o mais belo dos mortais? Tirésias respondeu concisamente: "Sim, se ele não se vir". O drama de Narciso estava na "visão", a mesma visão que Tirésias perdera por castigo de Hera e, Zeus, para compensar-lhe, havia concedido o dom da mantéia, da "visão de dentro", da profecia.

Por causa de sua beleza, muitos jovens e ninfas se apaixonaram por Narciso, que desprezava a todos, insensível. A ninfa Eco, muito tagarela, foi punida por Hera por ter tentado distrai-la para que Zeus pudesse deitar-se com outras ninfas. A deusa protetora dos casamentos e defensora dos amores legítimos disse-lhe: "Ser-te-á reduzida a faculdade dessa língua pela qual fui enganada, e muito reduzido o uso da tua voz" (OVÍDIO, 2017, p. 187). Eco estava condenada a não mais falar, só poderia repetir as últimas palavras que ouvisse. Como muitos outros, a ninfa apaixonou-se por Narciso e o seguia sem que fosse vista. Ele, que caçava com amigos, distanciou-se do grupo e passou a chamar por eles.

"Dos sócios seus na caça extraviado

Narciso brada: Olá! Ninguém me escuta?

Escuta, lhe responde a amante Ninfa.

Ele pasma: em redor estira os olhos;

E, não vendo ninguém: Vem cá, lhe grita;

Convite igual ao seu parte dela.

Volta-se, nada vê: Por que me foges?

Clama; Por que me foges, lhe respondem.

Da mútua voz deluso, insiste ainda:

Juntemo-nos aqui. Frase mais doce,

Nem lha espera, nem quer; delira, e logo,

Juntemo-nos aqui, vozeia em ânsias

De o pôr por obra; da espessura rompe,

Vem de braços abertos, anelando,

Tão suspirado objeto, alfim colhê-lo.

Ele foge; fugindo ilude o abraço,

E Antes, diz, morrerei, que amor nos una.

Ela, imóvel, co'a vista o vai seguindo,

E, ao que ouviu, só responde: Amor nos una (BRANDÃO, 1989, p. 177-8).

Eco, rejeitada e cheia de dor isolou-se, deixou de comer, de dormir e aos poucos foi definhando até restar somente voz e ossos. Por fim, transformou-se em um rochedo que repete os sons do que se diz. Narciso iludia a todos sem nunca corresponder ao amor. Um dos desprezados pediu vingança a Nêmesis, deusa da indignação e punidora da hýbris, rogando que Narciso amasse e não fosse correspondido. A súplica foi atendida.

Havia uma fonte de águas muito limpas, numa região isolada e intocada, onde Narciso foi descansar e matar sua sede. Aproximando-se do espelho das águas viu a própria imagem e, vendo o que tantos outros viram, sua beleza excepcional, ingenuamente por ela se apaixonou. E ficou ali, tentando capturar a imagem que sonhava ser o objeto de seu amor, tentando abraçá-la e beijá-la em vão. Sem comer e sem dormir, enlouquecido pelo amor não correspondido, morreu. E no lugar de seu corpo apenas uma flor amarela de pétalas brancas ficou. Era o narciso (OVÍDIO, 2017, p. 187-97).

Qual foi a hýbris de Narciso? Seu descomedimento foi a beleza, mas a qual deus Narciso ofendeu? A Eros, deus das ligações; Narciso é punido por não querer se envolver, se relacionar com o outro.

O mito explicita as dimensões simbólica, arquetípica e psicológica da questão do narcisismo e de sua polaridade complementar, o ecoísmo. São duas faces de uma dinâmica psicológica que todos nós vivenciamos. Tanto Narciso quanto Eco ofendem o deus Eros; o primeiro por não querer a relação com o outro e a segunda por não a conseguir consigo mesma. Psicologicamente, tanto a relação consigo mesmo quanto com o outro sofrem consequências nefastas na história de ambos.

Dissemos anteriormente que o drama de Narciso estava na visão; a visão é uma função sensorial pela qual os olhos põem os homens e os animais em relação com o mundo externo, nos faz perceber, avaliar, discernir e, também, imaginar, sonhar, devanear. Falamos, portanto, de uma forma metafórica, sobre perceber o mundo externo e o interno. Segundo o mito, todos, rapazes, moças, ninfas, viam Narciso, mas ele não via ninguém, nem a si mesmo; não se conhecia, nunca havia visto sua própria imagem e colapsa quando a vê e se apaixona supondo ser um outro. Essa paixão o obriga a se relacionar e não sendo correspondido, não encontrando "eco" no outro, sucumbe.

Eco, ao contrário de Narciso que permanece em si mesmo, repete, ressoa o outro. Originalmente, antes de ser punida por Hera, a ninfa tagarelava, falava incessantemente para seduzir, para distrair a deusa tirando sua atenção do marido, fazendo-a ficar distraída com sua verborragia. Ora, Hera é uma regente que serve ao estabelecido ou estabelece novas formas e ordens. Enquanto Eco tagarela e Hera se mantém distraída, Zeus gera e cria novos seres, novas possibilidades (BERRY, 2014, p. 141). A ninfa tem, portanto, papel fundamental na geração do novo protagonizada por Zeus. A tagarelice da ninfa é uma fala vazia, sem forma, que visa a distração e não a atenção e a reflexão.

A punição de Hera impõe a Eco uma forma através da repetição; essa repetição pode ser um esforço pela continuidade, pela permanência das palavras que assim podem ganhar outros sentidos como vimos anteriormente no trecho citado por Brandão. A repetição também pode ser uma busca de reconhecimento ou ainda a expressão de uma essência (BERRY, 2014, p. 143-4). Ela nos obriga, de uma maneira ou de outra, a nos ouvirmos, o que pode ser apontado por um outro - como por exemplo, na análise - ou percebido por nós mesmos. Essa escuta de si pode levar a uma reflexão e é exatamente o que falta a Eco, refletir, prestar atenção em si mesma.

Em síntese, o mito de Narciso e Eco trata da relação eu-outro, sendo que esse outro pode existir dentro ou fora de nós. A forma como percebemos e lidamos com esses "outros" internos ou externos ao longo da vida foi o que deu origem ao conceito de narcisismo e suas diferentes concepções.

O conceito de narcisismo é de suma importância na psicologia por se referir a aspectos fundamentais da natureza humana. O termo tem interesse também no âmbito da cultura que o utiliza de diferentes maneiras. As mais comuns se referem a um indivíduo vaidoso, bastante preocupado com sua imagem - estética ou socialmente - ou a alguém cujos interesses pessoais estão acima de tudo e que não empatizam, ou mesmo não enxergam os outros. Nesta última acepção, o narcisismo confunde-se com o individualismo e/ou com o egoísmo.

No começo do século XX, Freud já usava o termo narcisismo em vários de seus escritos, mas somente em 1914, com o texto "Introdução ao Narcisismo", ele explica as várias acepções em que o considera e o insere como um conceito da psicanálise (FREUD, 2010). Ao longo do texto utiliza o conceito em diferentes sentidos: como perversão sexual, como uma etapa do desenvolvimento normal (narcisismo primário), como um tipo de relação objetal e como estando relacionado à autoestima (MONTELLANO, 2006). Após sua morte em 1939 e, principalmente, a partir da década de 1950, vários autores se dedicaram ao tema. O conceito de narcisismo deu a Freud o instrumento para estudar questões da vida cotidiana como a paixão, a escolha de objeto, a hipocondria, a dor mental e questões psicopatológicas como na análise do caso Schreber, no texto sobre Leonardo da Vinci, além de outros temas como psicose e homossexualidade.

Observando que aspectos da atitude narcisista ocorriam em muitos outros casos, concebeu uma libido narcísica que teria um lugar no desenvolvimento sexual humano e, assim, o termo, nesse sentido, não se referiria a uma perversão, mas a "um complemento (voltado ao eu) daquilo que Freud denominava instinto de autopreservação" (MONTAGNA, 1996). Descreve um narcisismo primário e normal, onde a libido tem um papel no desenvolvimento sexual regular do ser humano e um narcisismo secundário, no qual a libido é retirada dos objetos e se volta para o eu. Apesar de a noção de narcisismo secundário ser proveniente da observação de Freud acerca das esquizofrenias, ele não a limitou aos casos de psicose estendendo sua observação a todos os seres humanos.

As transformações que o conceito de narcisismo trouxe para a teoria psicanalítica foram muitas; dentre as mais importantes estão a segunda teoria das pulsões e a formulação da teoria do complexo de Édipo estrutural.

Willy Baranger, psicanalista argentino de origem francesa, levanta diferentes utilizações do termo narcisismo na psicanálise (MONTAGNA, 1996). Ele agrupa as diferentes acepções em três grupos: narcisismo como uma das formas da libido, o objeto e a identificação nos estados narcisistas e narcisismo como valorização/desvalorização. Neste último grupo estariam as chamadas "feridas narcísicas" que se referem a tudo o que venha a diminuir a autoestima do eu ou seu sentimento de ser amado por objetos valorizados e também o chamado "narcisismo das pequenas diferenças".

Sobre esta última acepção cabem aqui algumas observações. Para a psicanálise, a aceitação imediata da alteridade, do outro e suas diferenças é permeada por uma série de mediações que se devem ao narcisismo. Em 1917, em um texto sobre o tabu da virgindade, Freud (2013) cita um antropólogo social britânico chamado Alfred Ernest Crawley (1869-1924) que cunhou a expressão "taboo of personal isolation". Seu livro The mystic rose é central na composição do citado artigo de Freud. Em seu texto lemos:

"Em palavras que pouco se diferenciam da terminologia habitual da psicanálise, Crawley afirma que cada indivíduo se separa dos outros mediante um "taboo of personal isolation", e que justamente as pequeninas diferenças, dentro da semelhança geral, motivam os sentimentos de estranheza e hostilidade entre eles. Seria tentador perseguir essa ideia e derivar desse "narcisismo das pequenas diferenças" a hostilidade que em todas as relações humanas combate vitoriosamente os sentimentos de solidariedade e sobrepuja o mandamento de amor ao próximo (2013, p. 370).

No texto "Psicologia das massas e análise do eu", de 1921 (FREUD, 2011), Freud coloca que as antipatias e aversões não disfarçadas em relação a estranhos que estão próximos de nós, aquilo que é diferente no outro e me incomoda, são a expressão de um narcisismo que se sente ameaçado como se a diferença o criticasse. Esse suposto narcisismo é tão rígido e conservador que qualquer desvio trazido pelo outro é visto como uma afronta; é como se dissesse "tudo que é diferente de mim me ameaça". O reconhecimento do diferente se opõe ao narcisismo e, para que o outro seja reconhecido como tal, há de ocorrer necessariamente uma mudança psíquica (REINO, ENDO, 2011). Ora, essa ideia é por demais interessante para não ter sido desenvolvida sob a ótica do pensamento junguiano. Voltarei a este ponto mais adiante.

Além dessas acepções do termo, temos o que hoje chamamos Transtorno da Personalidade Narcísica (DSM-5 e CID-10/F60.81), que é definido quando uma série de critérios são atendidos. Não é o caso de nos atermos aqui a este quadro psicopatológico. Apesar do consenso sobre a descrição fenomenológica da personalidade narcisista do DSM-5, há muitas diferenças e discordâncias quanto à teoria, ao diagnóstico e ao tratamento clínico. Para nosso propósito é suficiente apontar que há uma concordância de que o conceito de narcisismo deve incluir a descrição de aspectos do desenvolvimento normais e patológicos. Interessa-nos a dinâmica narcísica e suas feridas que estão presentes nos indivíduos independentemente deste diagnóstico. Na literatura da psicologia junguiana encontramos autores que se referem, principalmente, ao que foi chamado de narcisismo primário, uma etapa universal do desenvolvimento normal do ser humano.

 

1. Jung e os termos "ferida" e "narcisismo"

Só encontramos um trecho nas obras completas de Jung em que ele usa a expressão "ferida psíquica" (JUNG, 2011b, p. 336). Falando sobre os fundamentos psicológicos da crença nos espíritos, entende a ferida como ligada à formação dos complexos. O surgimento ou a formação de um complexo tem como origem uma experiência emocional que deixa como que uma impressão gravada, uma ferida psíquica.

"(...). Certos complexos surgem depois de experiências dolorosas ou desagradáveis da vida do indivíduo. São experiências pessoais de natureza emocional, que deixam feridas psíquicas duradouras atrás de si. Uma experiência desagradável é capaz de sufocar, por exemplo, qualidades preciosas de uma pessoa. Isso dá origem a complexos inconscientes de natureza pessoal [...] Uma parte dos complexos autônomos se originam destas experiências pessoais (JUNG, 2002, par. 594) (grifo meu).

A ideia de uma ferida psíquica que estaria na gênese de um complexo autônomo nos leva à possibilidade de que toda ferida estará relacionada a um complexo de alguma forma. O complexo se constitui como um emaranhado de ideias e emoções que se referem a um determinado tema e que foram reprimidos, esquecidos ou que nunca chegaram a ser conscientes, como um "nó de energia" (SILVEIRA, 1988, p. 46). Assim, uma experiência emocional muito dolorosa deixará uma ferida psíquica que se agrupará a formações inconscientes já existentes sempre que o ego e a consciência não forem capazes, por algum motivo, de lidar com esses conteúdos.

Faz-se necessária uma breve explanação sobre a questão da energia psíquica e seus movimentos, uma vez que este é um dos pontos de divergência teórica entre Jung e Freud e está relacionado ao desenvolvimento da ideia de narcisismo.

Em Símbolos da Transformação, sua tese é sobre a progressão e regressão da libido que permite uma analogia com as ideias de narcisismo primário e secundário. Nesta obra, Jung justifica sua escolha pelo termo "energia psíquica" em substituição ao termo "libido" argumentando que, além da sexualidade, outros instintos humanos são também de fundamental importância e que sobre sua natureza e dinâmica psíquica sabemos muito pouco. A observação de seus pacientes esquizofrênicos o fez questionar se a perda do contato com a realidade seria o resultado da retração da libido sexual, opinião defendida por Freud. Percebia que os pacientes apresentavam uma perda de qualquer interesse pelo mundo exterior e não somente o interesse sexual. A libido como energia psíquica tem um caráter plástico que permite sua aplicação a diferentes áreas de interesse e não só a sexual. Em suas palavras: "É mais prudente por isso, ao falarmos de libido, entender com este termo um valor energético que se pode transmitir a qualquer área, ao poder, à fome, ao ódio, à sexualidade, à religião etc., sem ser necessariamente um instinto específico" (JUNG, 1989, par. 197). Sua concepção de energia psíquica pode ser comparada ao modelo energético das ciências físicas no qual a energia possui diferentes formas de manifestação: calor, luz, eletricidade etc. A questão da libido como energia psíquica tem tamanha importância que foi um dos determinantes do fim do relacionamento entre Jung e Freud e mereceu uma outra obra: A energia psíquica.

Nesse livro o autor considera a psique como um sistema energético relativamente fechado (JUNG, 2012a, par. 34), ou seja, que tem um potencial que permanece o mesmo em quantidade através de suas múltiplas manifestações durante toda a nossa vida. A energia psíquica obedece ao princípio da equivalência assim como a energia física, ou seja, se uma quantidade de energia "desaparece", "surge um valor correspondente sob outra forma" (JUNG, 2012a, par. 35). Se o interesse por um objeto deixa de existir por algum motivo, a energia que alimentava esse motivo tomará outros caminhos: aparecerá em manifestações somáticas, em sonhos, poderá reativar conteúdos adormecidos no inconsciente, irá manifestar-se como sintoma. Todos esses fenômenos são expressões da mesma energia transformada. A energia psíquica movimenta-se em dois sentidos: a progressão e a regressão. A progressão é o movimento que ela faz em direção ao meio ambiente com vistas à adaptação. Se a atitude necessária à adaptação não for alcançada, a progressão estanca e há um represamento da energia que se caracteriza pela desagregação dos pares de opostos e pelo consequente aumento de tensão que leva ao conflito. O conflito é um estado em que a energia está represada e as polaridades estão com valores iguais. Se escolhemos um dos lados, simplesmente, há uma dissociação, em função de um "desacordo interno". A possibilidade não atendida é reprimida e gera sintomas que perturbam a psique indo contra a adaptação (JUNG, 2012a, par. 61). A energia psíquica, então, muda o sentido do movimento e se inicia o processo de regressão; o fluxo energético se volta para o inconsciente, reativando conteúdos que foram excluídos da consciência por serem perturbadores dos esforços de adaptação ao mundo exterior. Esse material inconsciente ganha, com a regressão, um quantum de energia que o aproxima da consciência através dos sonhos ou de toda espécie de sintomas. Mas, acrescenta Jung, dentre esses conteúdos do inconsciente também se encontram as sementes de outras e novas possibilidades de vida que não tinham energia suficiente para chegar à consciência (JUNG, 2012a, par. 62-3). A conscientização desse material inconsciente traz a possibilidade de considerá-los, confrontá-los e integrá-los. Com isso, dissolvem-se estagnações, removem-se bloqueios e a energia psíquica volta a fluir na direção do exterior. Recomeça nova fase de progressão.

Qualquer "parada", estagnação da energia psíquica, seja em progressão ou regressão, desde que temporária, faz parte do funcionamento psíquico que ocorre ordinariamente. Se houver uma dissociação do ego em relação ao Self ou uma fixação inconsciente - incesto - e uma impossibilidade de reorganização da consciência com a elaboração dos conteúdos inconscientes pelo ego, temos a possibilidade de neurose ou mesmo de psicose. É através das transformações da energia psíquica e da formação de símbolos, que se processa, na sua essência, o desenvolvimento da psique.

Montellano argumenta que a viga mestra do pensamento de Jung é constituída por dois conceitos que nos permitem compreender a psique e o movimento da energia psíquica: arquétipo e individuação (MONTELLANO, 1996, p. 86). A ideia de que o inconsciente é constituído por arquétipos e que estes coordenam o processo de individuação traz um contraponto ao conceito de narcisismo. As noções de Self e de Arquétipo Central irão colaborar, através de ampliações teóricas feitas por autores como Michael Fordham, Erich Neumann, Carlos Byington, dentre outros, para esclarecer o desenvolvimento do ego e da consciência em sua articulação com o todo da personalidade desde o início até o fim da vida.

Portanto, o termo "narcisismo" não é muito usado por Jung; é encontrado somente quatro vezes em sua obra (JUNG, 2011b, p. 482) e em três delas é usado com referência crítica à obra de Freud. Em Tipos Psicológicos, o termo é usado quando Jung está explicando a definição de imagem de alma (imagem anímica). Diz ele que quando há uma projeção da anima "surge uma vinculação afetiva absoluta com o objeto" (JUNG, 1991, par. 844). Se o conteúdo anímico que pede passagem não for projetado "cria-se um estado de relativa inadaptação que Freud descreveu em parte como narcisismo" (JUNG, idem). Isso quer dizer que, quando a projeção em um objeto externo não ocorreu, a progressão da energia psíquica, que visa a adaptação ao mundo externo, cessa e ela passa a regredir, voltando-se para o mundo interno do indivíduo. É a essa regressão da energia psíquica que Jung se refere aqui com o termo narcisismo.

Em uma conferência proferida em 1924 chamada "O problema amoroso do estudante", falando sobre as várias acepções que podem ser atribuídas à palavra amor, Jung escreve: "A palavra amor precisa ser mais ampliada ainda a fim de cobrir todas as perversões da sexualidade. Existe um amor incestuoso, um autoamor onanístico que merece o nome de narcisismo" (JUNG, 2012b, par. 204). Fica clara, nesta passagem, a acepção patológica que ele, assim como Freud, atribuiu ao termo.

Em outro texto chamado "A situação atual da psicoterapia", de 1934, o termo narcisismo é usado, dentre outros termos psicanalíticos, para tecer uma dura crítica a teoria freudiana.

Freud se baseia com frenética unilateralidade na sexualidade, na concupiscência ou, numa palavra, no "princípio do prazer". Tudo gira em torno da questão se alguém pode fazer o que gostaria. "Repressão", "sublimação", "regressão", "narcisismo", "incesto", "satisfação dos desejos" etc. são meros conceitos e pontos de vista relacionados com o drama do "princípio do prazer". Parece até que nesta doutrina a concupiscência da natureza humana foi elevada a princípio fundamental de sua psicologia (JUNG, 2012b, par. 340).

Somente quando trata do fenômeno da transferência através das gravuras do texto alquímico Rosarium Philosophorum é que Jung emprega o termo de uma outra maneira. Usa a expressão "o diabo do narcisismo". Isto é interessante, pois o que poderia inicialmente parecer novamente uma crítica a este termo, que talvez para ele estivesse tão ligado a Freud e sua teoria, revela-se um tipo de puxão de orelha que este "diabo" (ou dáimôn) dá num eu que não percebe as necessidades da alma. Neste sentido, atesta a "necessidade" do narcisismo, do voltar-se para si mesmo e atender às próprias demandas. Apesar da expressão aparentemente pejorativa, coloca-se contra a conotação desfavorável atribuída ao termo:

"O consciente, embora não se identifique com a tendência inconsciente, confronta-se com ela e tem que levá-la em conta, de um modo ou de outro, para desempenhar seu papel na vida do indivíduo, por mais difícil que isto seja. Se o inconsciente não se expressar de alguma forma, através de palavras, ação, inquietação, sofrimento, consideração, resistência, a antiga cisão reaparece, com todas as consequências muitas vezes imprevisíveis que o desprezo do inconsciente pode acarretar. Se, ao invés, as concessões ao inconsciente forem excessivas, ocorrerá uma inflação da personalidade, no sentido positivo ou negativo. Como quer que se encare a situação, ela sempre será um conflito interno e externo: um dos pássaros já aprendeu a voar, o outro, ainda não. A dúvida é a seguinte: por um lado um pro discutível, por outro, um contra que é preciso acatar. Todos gostariam de escapar a esta situação, por certo desconfortável, mas só para descobrirem depois que o que foi deixado para trás eram eles mesmos. Viver fugindo de si mesmo só traz amargura, e viver consigo mesmo requer uma série de virtudes cristãs, que, no caso, devemos ter em relação a nós mesmos. Estas virtudes são: paciência, amor, fé, esperança e humildade. É importante beneficiar o próximo com elas, não resta a menor dúvida, mas logo vem o diabo do narcisismo, dá-nos um tapinha nas costas e diz: "Bravo! Muito bem!" E como esta é uma grande verdade psicológica, ela tem que ser invertida em relação a outras tantas pessoas, a fim de que o diabo tenha algo a censurar. Mas se for preciso ter essas virtudes para conosco mesmos, isso nos torna felizes? E se for eu mesmo o receptor de minhas próprias dádivas, se for eu mesmo o menor entre os meus irmãos que devo acolher dentro de mim? E se tiver que reconhecer que estou necessitado de minha própria paciência, de meu amor, de minha fé e até de minha humildade? Que o diabo, meu opositor, aquele que sempre em tudo me contraria, sou eu mesmo? Podemos realmente suportar-nos a nós mesmos? Não se deve fazer aos outros o que não se faria a si mesmo. E isto é válido para o mal como para o bem. [...] Foi extraído da Confessio Amantis de John Gower, o verso que usei como epígrafe na introdução: "Bellica pax, vulnus dulce, suave malum" (uma paz bélica, uma doce ferida, um mal suave). Com essas palavras, o antigo alquimista formula a quintessência de sua experiência. Eu nada poderia acrescentar à incomparável simplicidade e síntese destas palavras. Elas contêm tudo o que o eu pode reclamar para si do opus. Elas lhe clareiam a obscuridade e o paradoxo da vida humana. Sujeitar-se e abandonar-se ao antagonismo fundamental da natureza humana significa aceitar as tendências que se entrecruzam a si mesmas no psiquismo (JUNG, 2012c, par. 522-3) (grifos meus).

O que Jung levanta neste trecho de sua obra é fundamental: a consciência tem que levar em conta as manifestações e tendências do inconsciente, caso contrário, colhe consequências nefastas. "Totalidade" para a grande maioria das pessoas se restringe à consciência. Muitos não têm a mais vaga ideia da existência de "algo" que chamamos inconsciente e de seu enorme poder. Aquilo que se manifesta como sintoma, como incômodo e que muitas vezes se refere a antigas dores, acontecimentos, nossas feridas psíquicas, é a insistência de algo desconhecido (inconsciente) em sinalizar que "alguma coisa está fora da ordem", como diz a canção de Caetano Veloso. Não observar essa sinalização nos machuca de uma forma ou outra, é uma negligência que cometemos contra nós mesmos. Obviamente, no curso de uma vida, isso é inevitável, pois se trata do diálogo ordinário entre duas instâncias - consciência e inconsciente. Mas a observação de nós mesmos - em todos os aspectos, físico, emocional, intelectual, social etc. - é algo que exige, além das virtudes cristãs apontadas por Jung, disciplina, treino, exercício. Na verdade, essa é uma exigência para que possamos "aplicar" essas virtudes. Exercitar a paciência, o amor, a humildade é um enorme trabalho. Ter fé e esperança em nossos dias e em nosso país, em nós mesmos e em relação ao nosso próximo, às vezes, é bastante difícil. Mas aqui, vale a regra da sobrevivência: quando a comissária de bordo de um avião orienta sobre o que fazer em caso de emergência, explica que, em caso de despressurização da aeronave, máscaras de oxigênio cairão automaticamente sobre nossos assentos e que devemos colocá-las em nosso rosto antes de ajudar outras pessoas. Se não estivermos vivos, não poderemos ajudar ninguém.

Parece possível que Jung não usasse com frequência o termo narcisismo por associá-lo à psicanálise e por ter encontrado outra maneira de falar sobre as questões que envolvem este tema. São questões que mereceram sua atenção, porém sob pontos de vista diferentes. Schwartz-Salant esclarece:

"O termo narcisismo surgiu bem cedo na teoria psicanalítica, e o fez de forma particularmente pejorativa. Inicialmente, indicou o amor-próprio num grau patológico e uma impenetrabilidade associada, carregando um prognóstico terapêutico pessimista. Ser narcisista era, com efeito, ser mau. Era um julgamento segundo o qual a pessoa, não apenas estava voltada para si mesma, mas também estava fora de alcance. Esse decreto do pensamento psicanalítico se estendia à meditação, à introversão e à fantasia criativa, razão por que dificilmente causa surpresa o fato de Jung raramente usar o termo" (1995, p. 9).

A partir desse esclarecimento, fica evidente que determinadas colocações de Jung foram mal recebidas e mal-entendidas, e ainda o são. Como atender às "necessárias" virtudes cristãs em relação ao próximo e aplicá-las a nós mesmos? E como aplicá-las sem a reflexão, a introversão e a fantasia? O senso comum talvez dissesse: "Mas isto é de um egoísmo (narcisismo!) ultrajante; somente pessoas egoístas (narcísicas!) dedicam o amor, a paciência, a fé, a humildade a si mesmas! O que aprendemos na família, nas religiões, nos 'bons costumes' é que devemos pensar no 'próximo', ser caridosos com ele". E então ficamos com Jung e sua teoria tachados de "individualistas" e o narcisismo, os golpes sofridos e suas feridas relegados a uma área extremamente sombria que não deve ser estimulada, cuidada, sob o risco de nos tornarmos extremamente voltados para nós mesmos e nossos interesses e perdermos o outro de vista.

Mas, como nos mostra o mito, devemos considerar tanto Narciso quanto Eco e a dificuldade está nas duas faces dessa mesma dinâmica psicológica que é a relação com o outro. Ora, esse é um dos principais problemas (sintomas) da sociedade contemporânea: ser individualista, não se importar com o outro. Estimula e aplaude a exposição (milhares de fotos compartilhadas pelas redes sociais), o "sucesso", o poder, mergulhados em um caldo de alegria, êxtase, festas, viagens, condenando o que se julga diferente de mim, de minhas opiniões, crenças e posturas. O diferente é enfadonho, talvez deprimido, o "não fazer nada" criticado. Vemos um individualismo, um narcisismo (pejorativamente falando) nesses comportamentos e posturas. Como cuidar do corpo, do sucesso, ser bonzinho, caridoso, poder viajar, comprar meus desejos? Há uma dificuldade de entender que precisamos nos cuidar. Não cuidar somente do corpo para atender aos padrões de beleza e saúde ecoando as expectativas da maioria. Cuidar da psique, da alma e seus anseios, das partes escuras e escondidas que muitas vezes nos acordam no meio da madrugada em sobressalto. Esse "individualismo" é vazio, não é um olhar atento e reflexivo para nós mesmos, é um "não se ver".

Algumas religiões pregam a bondade, a caridade, a tolerância com o próximo e, se bem empregadas e desenvolvidas, trarão a devida reciprocidade e um lugar assegurado no céu. Mas o que devo fazer com minha raiva, inveja, dor, ciúme? O que faço com minha fome? Pregar a primazia do "próximo" em detrimento de nós mesmos não tem funcionado. Entre as quatro paredes do consultório do analista é que ouvimos os lamentos, as dores, é onde a vulnerabilidade de cada um teima em aparecer mesmo que sob intenso protesto. Penso que esta é uma linha muito tênue a ser compreendida e que envolve o conceito de "outro" que adotamos. Há um "outro" fora de nós, outros seres humanos com quem habitamos este mundo. Mas também há "outros" dentro de nós que habitam diferentes mundos e que estão em potencial a ser desenvolvido. Como contemplar o outro "externo" se eu não for capaz de ao menos reconhecer um outro "interno"? A grande maioria das pessoas tem verdadeiro pânico em vislumbrar algo que seja da ordem do estranho, do desconhecido, do fora de controle, e que abale a ideia que tem de si mesmas. Cuidar-se, portanto, é uma tarefa difícil, bastante espinhosa... e implica uma certa introversão. Conhecer a natureza humana envolve inúmeros paradoxos: aquilo que é bom pode revelar-se ruim, o prazeroso pode tornar-se dor, o controle desvelar-se em intenso caos. "A ambivalência do arquétipo é bem conhecida a partir das pesquisas de Jung. E essa ambivalência, como vimos, é precisamente a principal característica do narcisismo" (SCHWARTZ-SALANT, 1995, p. 45).

Uma paz bélica, uma doce ferida, um mal suave é o paradoxo que o eu vivencia num processo de ampliação da consciência em que a acomodação nunca é totalmente possível e o desassossega, incomoda e impulsiona a seguir adiante.

Aqui podemos voltar à questão do narcisismo das pequenas diferenças. Se a consciência surge a partir de uma inerência inconsciente e o complexo do ego se desenvolve a partir da função transcendente que intermedeia sua relação com o Self ao longo de toda a vida, compreendemos que o narcisismo está embasado arquetipicamente (MONTELLANO, 1996). Assim, também o narcisismo das pequenas diferenças. No entanto, o impulso anímico de relacionar-se, de desejar o diferente, nos levaria a possibilidade de aceitar a alteridade, de nos engajar com o outro interno e externo e suas diferenças conforme o sistema de valores e a ampliação da consciência de cada um. Essas diferenças que me afastam do outro por medo do diferente e que podem se manifestar através do preconceito, racismo, xenofobia, homofobia, machismo etc. permanecem na medida em que esses aspectos narcísicos se mantêm inconscientes e/ou sombrios. A diferença pode causar fascínio, mas também inveja, repulsa, vergonha, estranhamento. Perceber o que a diferença do outro causa em mim, me tira da percepção usual, de um certo automatismo que equivale diferente a ruim. Essa consideração atenta do diferente e daquilo que provoca em cada um de nós, pode nos levar a perceber que cada diferença é um diferente caminho de individuação no outro e, talvez também, em mim. Olhar para dentro e perceber o que sinto e penso sobre a diferença é uma reflexão desejável e necessária.

Jung escreveu claramente sobre o que ele compreendia por reflexão:

O termo "reflexão" não deve ser entendido como simples ato de pensar, mas como uma atitude. A reflexão é uma atitude de prudência da liberdade humana, face à necessidade das leis da natureza. Como bem o indica a palavra "reflexio", isto é, "inclinação para trás", a reflexão é um ato espiritual de sentido contrário ao do desenvolvimento natural; isto é, um deter-se, procurar lembrar-se do que foi visto, colocar-se em relação e em confronto com aquilo que acaba de ser presenciado. A reflexão, por conseguinte, deve ser entendida como uma tomada de consciência (2011a, par. 235, nota 9) (grifo meu).

Jung defende que "os fatores psíquicos que determinam o comportamento humano são sobretudo os instintos enquanto forças motivadoras do processo psíquico" (JUNG, 2002, par. 233) e enumera cinco instintos: fome, sexualidade, impulso à ação, reflexão e criatividade. Para ele, os instintos no ser humano, diferentemente do que acontece nos animais, sofrem uma psiquificação e podem, ocasionalmente, "ficar sem sua característica mais essencial que é a compulsividade" pela modificação forjada no encontro com o dado psíquico (JUNG, 2002, par. 235). Passível de psiquificação, o instinto pode responder de maneira especificamente humana a determinadas situações.

Mas, como tudo na psique, o instinto tem um potencial de expressão patológica. Tudo que é demais ou de menos pode trazer desequilíbrio. Narciso, quando se vê refletido nas águas da fonte de Téspias, se apaixona pela própria imagem. Ofende ao deus Eros por não se ligar, não se relacionar com um outro. Ao invés disso, liga-se a si mesmo, a seu reflexo, num incesto intrapsíquico no qual a energia psíquica não se move em direção a mais nada que não seja a bela imagem refletida na fonte. Narciso não come, não dorme, não se relaciona, não pensa em mais nada e se entrega à morte.

Narciso indicaria este desenvolvimento patológico no instinto de reflexão: a atividade da reflexão (voltar-se para si mesmo) domina e exclui a necessidade de alimentação, de sexualidade comum, da atividade, da entrada de qualquer pensamento ou impulso novos (BRANDÃO, 1989, p. 184).

Considerar atentamente o outro - interno ou externo - e refletir sobre o que sinto e penso não é algo fácil e automático. Jung disse que "[...] a compulsividade é substituída por uma certa liberdade, e a previsibilidade por uma relativa imprevisibilidade" (JUNG, 2002, par. 241). A liberdade e a imprevisibilidade são por demais assustadoras para a consciência que sempre prefere o conhecido, o previsível e, portanto, o confortável. O processo de individuação e o processo analítico são uma obra contra a natureza e o esforço necessário para que haja uma transformação através da intervenção consciente é imenso. Se este esforço não ocorre, o processo segue naturalmente, à revelia da intervenção consciente, como um destino. É justamente isto que ocorre no mito de Narciso, seu destino já havia sido profetizado, "só viveria se não se visse". O esforço a ser feito está em função de que a individuação seja uma "obra" e não um "destino" profetizado pelo sintoma, pela neurose, pela psicose. Não importa o tamanho da ferida; importa o que somos capazes de fazer com ela e a partir dela. O chamado narcisismo das pequenas diferenças é importante demais para não ser considerado teórica e vivencialmente. É o causador de guerras, violência, abusos e todo o tipo de dores individuais e coletivas e só pode ser tratado mediante e de acordo com o desenvolvimento da consciência de cada um de nós.

 

2. Eros, deus das ligações

Se o paradoxo é inerente ao processo de ampliação da consciência e a reflexão é a ferramenta necessária nesse processo, qual é o ingrediente fundamental, também paradoxal, que precisamos para que a 'receita' dessa ampliação não desande? Eros, o amor.

Na estória de Narciso, narrada pelo mitógrafo grego Cônon (cerca de 30 a.C.), o jovem é descrito como 'extremamente belo, mas orgulhoso para com Eros e em relação àqueles que o amavam'. Eis aí a grande 'hamartía' de Narciso que, como Hipólito, ultrapassou o métron (o que Liríope temia) e, encastelado em sua beleza, comete uma hýbris, uma violência contra Eros, contra o amor-objeto e contra o envolvimento erótico com o outro (BRANDÃO, 1989, p. 180).

Temos, então, uma relação no próprio mito entre o mortal Narciso e o divino Eros. Assim também ocorre na psique: é através da relação com um outro, da relação erótica (promovida por Eros) com um outro interno ou externo que podemos consumar algo. Daí temos o caráter paradoxal das feridas que são simultaneamente entrave e abertura para o desenvolvimento psíquico e o caminho de individuação. Se ficamos narcisicamente paralisados, "orgulhosos para com Eros", sem reconhecer aqueles que querem se relacionar conosco - sejam eles pessoas, sonhos, símbolos, sintomas, acontecimentos - cometemos uma hýbris, uma ofensa a Eros, vamos contra a possibilidade do desenvolvimento psíquico, contra nossa alma.

Há uma canção de Renato Russo, chamada "Monte Castelo" (MANFREDINI JUNIOR, 1989), que em sua letra junta um poema de Camões com uma passagem da Bíblia e que pode ser associada com a citação de Jung sobre as virtudes reproduzida acima. Vejamos:

Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria

É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece

O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer

Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria

É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder

É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence, o vencedor
É um ter com quem nos mata a lealdade
Tão contrário a si é o mesmo amor

Estou acordado e todos dormem
Todos dormem, todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face

É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade

Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor eu nada seria
(MANFREDINI JUNIOR, 1989).

O que o poeta evidencia é a natureza paradoxal do amor e sua necessidade para a vida humana: sem amor eu nada seria. A impossibilidade de "ser" sem amor nos fala da essencialidade desse "ingrediente" em nossas vidas. O poeta, já na primeira estrofe, nos remete ao "Banquete" de Platão (PLATÃO, 1991), em que o amor é um intermediário (dáimôn) entre os deuses e os homens, como que um gênio ou um anjo: "Ainda que eu falasse a língua dos homens/E falasse a língua dos anjos/Sem amor eu nada seria". É também uma forma de conhecimento na medida em que, ainda segundo Sócrates/Platão, é amor pelo belo e aspira à sabedoria, como um filósofo. Sendo filósofo está entre a sabedoria e a ignorância: "É só o amor/Que conhece o que é verdade".

O poema traz a contradição tão inerente à individuação. Quem já amou alguma vez na vida não pode discordar da contradição contida em cada verso do poeta luso: querer e não querer, estar contente e não se contentar, estar sozinho e preenchido pela emoção, ser leal àquilo que nos faz sofrer, sentir dor e prazer, estar enlouquecido por uma dor que não dói concretamente.

A ideia trazida por Platão do amor, Eros, como dáimôn nos fala de uma característica muito antiga da religião popular grega que é "a crença em espíritos sobrenaturais um pouco menos antropomorfizados do que os [deuses] Olímpicos [...] um certo dáimôn está ligado a uma pessoa ao nascer e determina, para o bem ou para o mal, o seu destino" (BRANDÃO, 2000, vol. I, p. 278) Assim, o amor pode seu bom ou mau, "é ter com quem nos mata, lealdade / tão contrário a si é o mesmo Amor".

Não falamos aqui do amor romântico, entre duas pessoas, mas de todos os tipos de amor que uma pessoa precisa ao longo da vida e que lhe são essenciais: o cuidado materno, o reconhecimento profissional, o incentivo para aprender, a amizade, a espiritualidade. Renato Russo amalgama o soneto de Camões e o capítulo 13 da Primeira Epístola aos Coríntios (BÍBLIA SAGRADA, 2015). São poemas de tempos ancestrais, paradoxo arquetípico do amor.

A Primeira Epístola aos Coríntios (BÍBLIA SAGRADA, 2015) é uma carta do apóstolo Paulo aos cristãos da cidade de Corinto na atual Grécia. É uma carta de conselhos e orientações, como que um "manual" de como um cristão deve se comportar. Um dos trechos mais famosos da carta é o que fala sobre a importância do amor:

Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e ainda tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e não tivesse amor, nada seria [...] não folga com injustiça, mas folga com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá [...] (BÍBLIA SAGRADA, 2015, primeira epístola aos Coríntios, capitulo 13).

Em algumas traduções, como na Bíblia de Jerusalém, encontra-se a palavra "caridade" no lugar de amor pelo fato de se tratar do ágape, do grego, amor caridoso. Segundo a escritura, a fonte do ágape está em Deus, é a natureza mesma de Deus e se encontra também no Filho, Jesus Cristo, e no Espírito Santo que o derrama no coração dos cristãos. É um amor "baseado na sinceridade e na humildade, no esquecimento e no dom de si, no serviço e no mútuo sustento, deve-se provar por atos e observar os mandamentos do Senhor, tornando-se a fé efetiva" (BÍBLIA SAGRADA, 2015, p. 2009, nota e). Entre os cristãos primitivos, ágape era a refeição com que se celebrava o rito eucarístico. Ou seja, este amor é a comunhão, do latim communiōne: participação mútua, uma refeição, um alimento para a alma. Podemos pensar na aproximação entre a relação do homem com Deus, aconselhada por Paulo, da relação entre o ego e o inconsciente, ou seu centro organizador, o Self. A definição do ágape contém, idealmente, os ingredientes necessários ao processo de análise: sinceridade consigo mesmo, humildade para reconhecer erros, esquecer ou deixar no passado aquilo que não posso modificar, reconhecer meus dons, trabalhar (muito!) e sustentar a mim e às demandas da alma, provar minhas mudanças através de meus atos e observar os "mandamentos" do inconsciente, tornando-se a fé efetiva. Ser caridoso e amoroso consigo mesmo, mesmo que os "outros" não tenham sido. Mas tudo isso é muito difícil. É um processo que se inicia com o nascimento e se conclui com a morte.

Aqui temos a chave dada por Jung para cuidar das feridas: as virtudes - paciência, amor, fé, esperança e humildade. É preciso que nos conheçamos o suficiente para perceber nossa própria demanda de amor, de atenção; só assim seremos capazes de receber nossas próprias dádivas que serão o bálsamo para tratar as feridas infligidas por um outro ou por nós mesmos, o outro que há em nós.

 

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Recebido em: 27/05/2020
Revisado em: 06/07/2020

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